Quem bate à porta? É o desemprego!
A crise atingiu a todos, mas de forma mais intensa os assalariados sem carteira de trabalho assinada, que estão, em grande medida, empregados em micro e pequenas empresas, nos serviços domésticos e pessoais. Contudo, há sinais de que a economia real voltou a criar postos de trabalho, melhorando o cenário para 2010
Eu não deixo você entrar…
Há anos, uma loja de departamentos veiculou uma propaganda na qual o frio batia à porta de uma residência e recebia a seguinte resposta, cantarolada por uma bela mulher: “Eu não deixo você entrar…”.
Que bom seria se pudéssemos cantar resposta semelhante quando o desemprego batesse à nossa porta. A réplica poderia vir em coro: “Nós não deixamos você entrar, o nosso sistema público de emprego é capaz de nos proteger”.
Com cara de espanto, o desemprego escutaria a segunda parte da resposta: “O Estado vai atuar. Vamos investir, crédito liberar, juros baixar e todos poderão trabalhar”.
O desemprego bateu à porta do mundo, inclusive à nossa, e vamos ver de que maneira o país ousou articular respostas que trouxeram resultados importantes.
Como o desemprego bateu à nossa porta?
Em setembro de 2008, a crise financeira internacional deslocou-se rapidamente para a economia real. O pânico se espalhou, o sistema financeiro mundial travou o crédito e as transações comerciais ficaram sem instrumentos financeiros operativos.
O descolamento entre os ativos financeiros e os reais gerou uma crise mundial de confiança, que rapidamente começou a reduzir o nível da atividade produtiva, jogando as economias em recessão.
No Brasil, apesar de o nosso sistema financeiro ser relativamente regulado, de haver equilíbrio nas contas públicas e da atuação segura do Estado, além de um significativo crescimento econômico nos últimos anos, os bancos conseguiram frear o sistema financeiro nacional, internalizando rapidamente a crise para a economia real. A liquidez desapareceu, o crédito se esvaiu e as empresas iniciaram um processo de ajuste no nível de atividade, com consequente impacto sobre o emprego.
Desde setembro de 2008 (gráfico 1), a curva descendente da variação do nível de ocupação total demonstra que, durante seis meses, o mercado de trabalho perdeu gradativamente vitalidade na geração de postos de trabalho.
As taxas anuais de variação do nível de ocupação diminuíram de 5,6% ao ano, em setembro de 2008 – quando o PIB do terceiro trimestre cresceu 6,8% em relação ao mesmo período de 2007 – para 1,1% em maio de 2009.
A taxa anual indica o movimento na ocupação sem os efeitos sazonais – por exemplo, as demissões típicas dos meses de janeiro e fevereiro – e, portanto, informa as tendências de curto prazo do mercado de trabalho e da relação delas com a produção. Por outro lado, a variação mensal indica a sazonalidade na criação de novas ocupações e novas vagas. Esse indicador está representado pelas colunas azuis do gráfico 1.
O aumento de 0,8% ao mês no nível de ocupação, registrado em setembro e outubro de 2008, passou para relativa estabilidade em dezembro (0,2%), diminuiu para -1,3% em janeiro e fevereiro, e em março, a queda registrada foi de -0,8%. Mesmo levando em conta a sazonalidade do início do ano, a inversão no comportamento da variação anual do nível ocupacional foi intensa, tendo em vista o curto espaço de tempo analisado.
O indicador do nível de atividade econômica do quarto trimestre de 2008 revelou uma dramática queda do produto interno bruto. Em comparação com o quarto trimestre de 2007, o PIB aumentou apenas 1,3%. No primeiro trimestre de 2009, verificou-se a redução de 1,8% em relação ao mesmo período do ano anterior.
Esse resultado demonstra que o desemprego chegou ao Brasil e transformou novamente em pesadelo o sonho da geração continuada de novos postos de trabalho e redução gradativa do desemprego de longa duração, presente em nossa sociedade.
A partir de novembro, verificou-se discreta redução do nível de ocupação dos assalariados com carteira assinada – menos intensa que a dos trabalhadores assalariados sem carteira. Já para os autônomos, o comportamento foi diferente, com quedas e aumentos no nível de ocupação no período.
A crise atingiu a todos, mas de forma mais intensa os assalariados sem carteira de trabalho assinada, que estão, em grande medida, empregados em micro e pequenas empresas, nos serviços domésticos e pessoais, e que, uma vez na situação de desemprego, não contam com parte da proteção que o sistema público de emprego oferece por intermédio do seguro-desemprego.
As ocupações na indústria são as mais atingidas pela crise. Em maio de 2009, houve redução de 7,5% no nível de ocupação em comparação com o mesmo mês do ano passado (gráfico 2).
Já a ocupação na construção civil, impulsionada pelo crescimento do crédito
imobiliário e dos investimentos do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento, cresceu entre junho e dezembro de 2008, diminuiu nos dois primeiros meses de 2009 e voltou a crescer em março. Em maio de 2009, o aumento registrado foi de 13,4% em relação ao mesmo mês do ano anterior.
Sinais de mudança nos últimos meses?
Parece haver sinais de mudança na dinâmica ocupacional, indicando que está para ocorrer uma alteração positiva na economia real. A partir de março deste ano, a queda da variação do nível anual de ocupação foi interrompida (gráfico 1). Por sua vez, a variação mensal do nível de ocupação voltou a ser positiva em 0,3% e 0,5%, em abril e maio de 2009.
Há sinais de que a economia real voltou a criar postos de trabalho e pode indicar a reação esperada e decorrente das medidas tomadas para gerar um movimento anticíclico.
E como ficará o desemprego em 2009?
A queda na atividade econômica reduziu o ritmo da criação de postos de trabalho. O desemprego cresceu acima do esperado para o início do ano. A taxa chegou a 15,3%, superior aos 14,8% registrados em maio de 2008. Se a crise não tivesse ocorrido, era de esperar uma taxa de desemprego menor neste ano.
Sazonalmente, nos primeiros meses do ano, observa-se redução do ingresso de pessoas no mercado de trabalho. Em 2009, a crise e seus efeitos tendem a adiar o movimento de crescimento da população economicamente ativa.
A retração na procura de trabalho não agrava os resultados do desemprego, mas quando os postos de trabalho voltarem a aparecer ou a necessidade se fizer presente, as pessoas reingressarão no mercado de trabalho em busca de um novo posto, elevarão o contingente da população economicamente ativa e, mesmo com ampliação do nível de ocupação, o desemprego pode crescer em termos relativos.
Analistas trabalham com a expectativa de que o país possa voltar a crescer entre 3% e 4% em 2010. Isso significa que no segundo semestre já pode haver sinais dessa mudança de patamar de crescimento, o que depende da continuidade de uma série de iniciativas públicas e privadas.
O Brasil em relação ao mundo
A crise atingiu o Brasil que todos já vivenciavam os dramas da queda da atividade econômica e do aumento do desemprego.
Nos Estados Unidos, em junho, foram fechados 467 mil postos de trabalho (em maio haviam sido 322 mil), elevando para quase 14,7 milhões o número de desempregados. Desde o início da crise, o país já eliminou 6,5 milhões de vagas.
Na zona do euro, hoje com 27 países, a taxa de desemprego continua a mais alta dos últimos 10 anos e atingiu 9,5% em maio. Na Espanha, por exemplo, a taxa de desemprego atingiu 18,7% nesse mesmo mês.
O desemprego gera queda na massa de rendimentos, diminui a renda real média, com sérios impactos para o mercado interno de cada país, o que agrava ainda mais a recessão. Trata-se de uma espiral para baixo, que cria inseguranças, desincentivos e atitudes protecionistas de toda a espécie.
No Brasil, entre dezembro e janeiro foram eliminados cerca de 756 mil postos de trabalho formal em todo o país. De fevereiro a maio os resultados passaram a ser positivos: foram criados em torno de 281 mil novos postos de trabalho. Será que além de entrarmos depois, iremos sair antes da crise? Se isso ocorrer, será um feito inédito. Bom para o país, melhor ainda para os brasileiros.
Em abril, a renda média dos ocupados apresentou variação positiva mensal de 0,3% e um incremento de 1,1% em relação ao mesmo mês em 2008. Já a massa de rendimentos teve queda até março deste ano, porém voltou a crescer em abril, permanecendo ainda em patamares superiores aos verificados no mesmo período do ano passado. O mercado interno agradece, a produção envia saudações, o emprego vibra.
O Brasil que atua diante da crise
É crucial manter – e mesmo ampliar – a massa de rendimentos como mecanismo de animação do mercado interno e, portanto, de vigor na própria dinâmica do mercado de trabalho.
É importante destacar que houve iniciativa e rapidez do governo ao colocar o Estado para atuar no enfrentamento da crise, ao construir ou revigorar as políticas com intencionalidade anticíclica.
As medidas iniciais visaram liberar liquidez, por meio da diminuição do compulsório dos bancos, das garantias alocadas pelo Banco Central, pelos aportes do BNDES, seguidas por ações de desoneração tributária, como a política de redução do IPI para automóveis, depois caminhões, linha branca etc.
Também foi significativo o aumento em mais de R$ 140 bilhões nos investimentos do PAC, bem como o programa de habitação para mobilizar a construção de 1 milhão de novas moradias para os mais pobres, entre outras medidas.
Governos estaduais também realizaram ações com importantes impactos. Assim como as empresas públicas, com destaque para a Petrobras, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, foram instrumentos de que o Estado brasileiro dispôs para formular e operar políticas dessa magnitude. Essas medidas atuam também no sentido de formar as expectativas dos agentes econômicos.
Recentemente foram anunciadas ações de fortalecimento da presença do Estado no apoio ao investimento privado, fundamentais para a perspectiva de médio e longo prazo. O investimento é o garantidor estrutural da taxa de crescimento e da geração de postos de trabalho.
Não se pode deixar de indicar o atraso na redução da taxa básica de juros, ao longo do segundo semestre, prática que só agravou os péssimos resultados do PIB no período.
Neste ano, o Banco Central começou um movimento de redução da taxa de juros, o que significa alívio fiscal e forte indicação de atividade econômica. Ainda existe espaço para avançar na redução dessa taxa, colocando o país no rol das nações que praticam taxas de juros compatíveis com o nível de rentabilidade da economia real.
Não se pode e nem se deve perder essa oportunidade, como contribuição até mesmo para posicionar a taxa de câmbio em patamares mais confortáveis para as relações comerciais brasileiras.
Quando o social segura a economia
Redescobriu-se o valor e o potencial do mercado interno brasileiro. Trata-se de um mercado de trabalho de mais de 90 milhões de ocupados.1 Basta ver a importância que o investimento e o consumo das famílias tiveram no crescimento econômico ao longo dos últimos quatro anos. Sobretudo no primeiro trimestre de 2009, o crescimento do consumo das famílias, de 1,3% em relação ao mesmo período do ano anterior, foi responsável por amortecer a queda do PIB.
As desigualdades sociais e econômicas, as crises que derrubaram várias vezes o país, o baixo crescimento dos anos 90, a estratégia de crescimento assentada fortemente no mercado externo, entre outros motivos, deixaram inerte o mercado interno. Há uma mudança relevante que precisa ser preservada.
A retomada do crescimento econômico continuado, que o país passou a experimentar desde 2004, fez saltar o número de trabalhadores com carteira assinada: passou de 25 milhões para mais de 40 milhões ao final de 2008. Cresceu o número de ocupados, aumentou a massa de rendimentos, o mercado interno foi fortalecido. Mas não é só isso. Há uma política negociada de valorização do salário mínimo que eleva o rendimento dos mais pobres em quase 50% em termos reais nos últimos anos, bem como os benefícios, aposentadorias e pensões. São bilhões de reais injetados na economia real, por meio do bolso do trabalhador, que transforma cada real em consumo de produtos gerados, em grande parte, internamente.
A política de transferência de renda por meio do programa Bolsa Família coloca mais R$ 12 bilhões na economia, gerando a possibilidade de um “novo” micro-orçamento, aquele dos totalmente excluídos que passam a ter a oportunidade de ingressar no mercado de consumo. Não é por menos que a taxa de crescimento do comércio no Nordeste é mais que o dobro da verificada no Sul ou Sudeste. O financiamento à pequena produção rural por meio do Pronaf – Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar coloca outros bilhões na produção de alimentos, garantindo oferta e preços baixos na mesa do trabalhador.
A inflação em queda é outro elemento fundamental nesse momento. Além de impedir a queda dos rendimentos reais e do poder de compra, essa situação ajuda o movimento sindical a buscar nas mesas de negociação a manutenção ou ampliação dos direitos presentes nas relações de trabalho. Pesquisa do Dieese indica que em 100 acordos ou convenções coletivas de trabalho, celebrados de janeiro a maio de 2009, os resultados são idênticos aos observados no ano passado ou até melhores, uma vez que 96% das negociações asseguraram pelo menos a recomposição das perdas ocorridas durante a data-base.
Se fosse possível uma conclusão
Crises não são novidade na vida deste país, e a nação acostumou-se a enfrentá-las. O movimento sindical, por exemplo, deu mais uma vez demonstração de que soube atuar para preservar o emprego. Negociou diretamente com as empresas e empresários acordos que preservaram empregos. Soube atuar nas macronegociações, propondo medidas de redução de impostos para a produção, e depois exigindo as contrapartidas sociais e trabalhistas ausentes nas primeiras reduções tributárias promovidas pelo governo federal. Demandou a ampliação do seguro desemprego, apoiou a ampliação dos recursos para a formação profissional, propôs medidas anticíclicas, como a construção de casas e saneamento. Fortaleceu a ação pela redução da jornada de trabalho e defendeu medidas contra a dispensa arbitrária, entre outras.
É preciso garantir, na medida em que a situação se normalizar, que os avanços conseguidos neste momento sejam preservados, como, por exemplo, o princípio das contrapartidas sociais e trabalhistas diante dos investimentos feitos com recursos públicos.
O mundo levará alguns anos para voltar a ter um crescimento adequado. Porém, ao desejar o crescimento, não se pode perder a oportunidade de afirmar que o modelo observado até então não interessa mais.
O crescimento deve levar o mundo, e o nosso país em particular, a alterar estruturalmente as situações de desigualdade de diferentes matizes, que geram tantos desequilíbrios, conflitos e injustiças.
Mas o desenvolvimento sustentável, esse desejo de viver bem a relação com os outros e com o meio ambiente, só será factível se o crescimento estiver contido em um novo projeto de desenvolvimento.
*Clemente Ganz Lúcio é sociólogo, diretor técnico do DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), Membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) e do Conselho de Administração do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE).