Quem come o filé de ouro do futebol?
Os torcedores brasileiros nos estádios da copa, que com suas musiquinhas cantam para as coreografias dos atacantes, estes sim, apesar da diferença de origem social, são os que estão mais próximos dos jogadores
“Tão fácil compreender esse tipo de reação. É o Onestaldo multiplicado ao infinito. O sujeito que diz que o futebol brasileiro passou é o Narciso às avessas, já que a seleção é a pátria em calções e chuteiras”. Ganhando ou perdendo, jogando feio ou bonito, Nelson Rodrigues segue como chave fundamental para os debates no Brasil sobre as Copas do Mundo. Na “pátria de chuteiras”, as copas revelam, por exemplo, os abismos gigantescos sobre como as pessoas que torcem pela seleção enxergam o futebol.
Os fracassos do nosso time nas Copas do Mundo trazem os contrastes dessas diferentes visões.
Categorizando grosso modo essa massa heterogênea, podemos classificar a torcida em três grupos: as pessoas torcedoras de sofá (assistem a todos os jogos de casa), torcedores que vão às copas e torcedores que realmente vivem o futebol (acompanham seu time nos estádios, sofrem com os ladrões da CBF, com os preços dos ingressos e com transporte de péssima qualidade, com a violência e constrangimento da polícia dentro e fora dos estádios, etc).
Do meu lugar de são paulino sofredor percebo que, diferente do que ocorre nos campeonatos de clubes (estaduais, nacionais e continentais), a visão do torcedor que vive o futebol não é hegemônica nas copas. Ao contrário, ela é uma visão minoritária. É uma visão crítica marginal e em conflito com o resto da torcida.
A polêmica sobre o comportamento dos jogadores da seleção brasileira no Catar durante a Copa é muito reveladora dessa graduação sobre a percepção dos jogadores do time de Tite enquanto representação do torcedor na competição.
Ainda que grande parte torcida não veja como um problema os excessos de vaidade, o consumismo e o tipo de diversão pela qual optam os atletas da seleção, uma outra parte assumiria um grau de exigência muito maior ao saber que, na semana de decisão de uma competição importante, os jogadores que iriam vestir a camisa do seu time de coração não estavam totalmente dedicados àquilo.
Imagine se, em um jogo decisivo de Libertadores da América ou Mundial de Clubes, os jogadores do seu time, por exemplo, anunciassem que estavam ensaiando dez novas coreografias, postassem vídeos ostentação em festa em churrascaria com carne banhada a ouro, surgissem em campo com seus cabelos platinados por hair stylists particulares e, depois de tudo, perdessem para uma equipe com pouca tradição?
Se a exigência sobre o comportamento extra-campo soa como conservadorismo para uns, a imediata ligação deste comportamento com a falta de concentração e de empenho, depois de uma eliminação, é imperdoável para outros.
Para o torcedor que vive o futebol, os sacrifícios que ele faz por seu time devem ser correspondidos pelos jogadores para que se estabeleça a identificação e a representação. Esta relação do aficionado se constrói para além de resultados. Ela se estabelece na projeção de quem está na arquibancada sob a pergunta: quem sou eu ali no gramado? É nesta simbiose que a torcida se coloca em campo e empurra seu time para vitória, mas também se conforma com a derrota quando constata : “perdemos, mas deixamos (ambos) o sangue em campo”.
É por isso que o conflito futebolístico social na “pátria de chuteiras” é mais profundo quando o torcedor que vive no dia-a-dia as agruras do futebol se confronta com o torcedor que vai aos estádios das Copas. Quando a TV lhe esfrega na cara a elite que come no Catar com os jogadores o filé de ouro do futebol mundial: políticos, influencers, empresários e “Movimento Verde e Amarelo”, os mesmos que em 2014 comandaram no Itaquerão os ataques misóginos contra a presidenta Dilma Rousseff que mais tarde seria golpeada.
Os torcedores brasileiros nos estádios da Copa, que com suas musiquinhas cantam para as coreografias dos atacantes, estes sim, apesar da diferença de origem social, são os que estão fisicamente mais próximos do jogadores e, até por isso, criam identificação política e estética… fria e distante de quem vive o futebol de verdade.
Cristiano Navarro é jornalista, documentarista e mestre em Cinema e Narrativas Sociais pela Universidade Federal de Sergipec