Catar escombros: canto fúnebre de uma Copa do Mundo torta
Mundial no Oriente Médio desmontou qualquer fantasia de simplicidade para a política no Brasil. Acompanhe no último artigo do especial Copa: futebol e política
O Mundial do Catar exigiu demais. Mudou o calendário esportivo ao impor que os jogos acontecessem no fim do ano, rompeu a tradição das Copas do Mundo e violou a relação dos torcedores com o torneio. Interrompeu os vínculos das torcidas pelos países com os seus times, seja pelos preços exorbitantes, seja pela dinâmica de shopping center, determinante para a criação de uma atmosfera ainda mais fria. O processo havia sido iniciado há muitos anos, mas teve no megaevento do Oriente Médio um marco.
Mais do que isso, a organização extorquiu de quem torcia pela TV uma condescendência sem paralelos desde 1978, quando estádios em que os jogadores competiam eram vizinhos de oficinas de tortura do general Videla. Para aproveitar as partidas, foi preciso ignorar, mesmo que momentaneamente, a defesa aberta da homofobia e a restrição a liberdades, mínimas, para as mulheres no Catar. Os capitães foram proibidos de carregar no braço faixas em solidariedade à comunidade LGBTQIA+.
O Mundial assistiu a uma profusão de manifestações políticas: silêncio na seleção iraniana durante o hino nacional; invasão de campo com a bandeira do arco-íris; protestos pela defesa da Palestina; poses para fotografias oficiais com jogadores das seleções do Japão e da Alemanha de mão na boca, contra a censura – e seu equivalente com sinais trocados, no momento que, ao repetir o gesto, a televisão do Catar ironizou a eliminação dos alemães e reforçou a dimensão mais agressiva do torneio.
Já era possível supor que o ambiente seria árido na Copa, uma vez que até as obras no país-sede foram alvo de discórdia. Foi amplamente divulgado um total superior a 15 mil operários mortos nos últimos anos, número que causa confusão por somar os casos que não têm relação com a organização para 2022 aos episódios diretamente ligados ao megaevento. As controvérsias aumentaram ao passo que o Estado reconhece, oficialmente, menos de uma dezena de mortes nessas condições.
O estrábico calendário da competição não previa um intervalo razoável para a preparação dos times. O resultado foi o corte por lesão, em massa, de potenciais estrelas do Mundial, como Marco Reus, da Alemanha; Giovani Lo Celso, da Argentina; Sadio Mané, do Senegal; Georgino Wijnaldum, da Holanda; e N’Golo Kanté, Paul Pogba, Karim Benzema, da mais prejudicada França. Poucas seleções conseguiram sustentar boas apresentações nessas condições.
Os franceses, por exemplo, fizeram boas apresentações. No entanto, foram as equipes argentina e marroquina que desviaram de muitos obstáculos para conseguir mais destaque. A primeira, por conta de Lionel Messi e da legião de torcedores que conseguiram vibrar e destoar da monotonia das arquibancadas: vale lembrar das fortes proibições a bebidas alcoólicas no país. A segunda, por levar com apoio da torcida e de forma inédita um time africano tão longe no torneio. Antes dos resultados da competição, o fato de não estar entre as delegações mais afetadas por lesões encorajava os torcedores brasileiros.
Nem o hexacampeonato, nem a possibilidade de reconectar a camisa verde e amarela à população: a seleção se manteve insossa. Neymar não cumpriu a promessa de homenagear Bolsonaro com o primeiro gol na Copa, que só veio depois de uma rápida temporada no departamento médico. O pé machucado o tirou dos segundo e terceiro jogos da fase de grupos, mas permitiu que na eliminação para o time da Croácia estivesse em campo, marcasse um gol e se esquivasse da responsabilidade de cobrar um pênalti.
O noticiário político não parou. Durante o Mundial, o ex-presidente José Sarney prometeu contar muito sobre as últimas décadas em Brasília em autobiografia. No entanto, o contrato com a editora prevê publicação póstuma. Na tradição do Brás Cubas de Machado de Assis, o autor promete sinceridade depois do velório. No Catar, com a despedida da campanha, cartas vieram a público na mesma linha: Daniel Alves investiu no autoelogio e reafirmou as decisões que determinaram a eliminação na autópsia da derrota.
Para arrematar, ainda cunhou a frase lapidar: “Ganhar, para mim, que sou considerado o maior vencedor da história desse esporte, significa inspirar pessoas”. Sem ter conquistado Copa do Mundo, Taça Libertadores ou Campeonato Brasileiro, o lateral banha de ouro a própria carreira. O brilho pálido foi um diferencial no Oriente Médio, da abertura às carnes em restaurante. O ritual do além não é somente de pesar: o canto fúnebre expõe os atravessamentos políticos do esporte, e por isso deve ser saudado.
Somente depois de a seleção deixar o torneio, irrompeu no Distrito Federal o mais violento protesto bolsonarista desde a derrota nas urnas, em outubro. Apoiadores uniformizados do ainda presidente da República puseram fogo em carros e depredaram a sede da Polícia Federal em repúdio à prisão de um indígena — pastor evangélico, candidato derrotado à prefeitura de Campinápolis, no Mato Grosso, em 2020 e condenado por tráfico de cocaína —, envolvido em protestos antidemocráticos.
Foi levantada a hipótese de que o último ato antes de deixar o Planalto seria justamente uma foto da vitoriosa seleção brasileira e Bolsonaro, em silêncio desde o revés nas urnas – inesperado para o presidente, para o séquito de apoiadores e investidores que o cercam. Não foi possível registrar a imagem: não houve ocasião. A delegação voltou ao país com vários adjetivos, menos o de vencedora. Aliás, poucos integrantes retornaram, a maioria dos jogadores está radicada na Europa.
Tite não tem compromissos fora do Brasil. O treinador que por mais tempo, ininterruptamente, comandou a seleção havia recebido elogios e chegou ao Catar como líder incontestável. O dialeto que o técnico professa foi incorporado por parte da cobertura esportiva, com ares de douto. Errou em substituições em quase todos os jogos e ficou mais sombrio durante as disputas: nem a divertida dança com Richarlison foi capaz de recuperar a força do riso para o comandante ou para o seu time.
O maior agravante foi o abandono do campo, depois da derrota nos pênaltis contra a equipe croata nas quartas de final. Tite, que não convocou para a sua equipe médica profissionais de saúde mental, viu a segurança com a vitória provisória na prorrogação se esvair em poucos minutos. A inconsistência remete ao Mineirão, em 2014, na goleada sofrida contra o time alemão. Recupera igualmente a atmosfera da Copa das Confederações de 2013, com o amálgama do jogo com os conflitos sociais.
Após ter que desviar de tantos poréns para assistir à seleção brasileira, não é possível que torcedores ainda esperem que a prosperidade emane do esporte. Tortuosa, a Copa no Catar desmontou qualquer fantasia de simplicidade. A reunião de jogadores de bom nível não foi capaz de conquistar o troféu. Com a posse do novo governo, em janeiro, os escombros autoritários não vão desaparecer. Como tudo que o envolve, o futebol no Brasil é definido por disputas – que serão mantidas ao fim do Mundial.
Helcio Herbert Neto, jornalista e filósofo, é doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF. Pesquisador do campo da cultura popular, é autor do livro Conte comigo: Flamengo e democracia, lançado em 2022.