Quem paga a conta?
A continuidade e o aprofundamento das mudanças que promovem a justiça social passam pela redução da renda financeira dos setores do topo da pirâmide. Alguém vai ter de pagar a conta.Jorge O. Romano
Nos últimos anos, tem havido no Brasil um forte e contínuo processo de inclusão social, com redução significativa da miséria e da pobreza, assim como da desigualdade em termos de renda do trabalho. A opção política de articulação do crescimento econômico com a promoção do gasto social expressa no crescimento do emprego (sobretudo do emprego formal), os aumentos reais do salário mínimo, os programas de transferência de renda e as políticas sociais conformaram-se nos principais mecanismos desse processo de inclusão,1 envolvendo o enorme contingente de mais de 40 milhões de brasileiros, que vieram a engrossar a denominada classe C.
No entanto, os processos que geram empobrecimento não foram ainda estruturalmente superados, ameaçando tornar “as portas de saída” da pobreza, tão esperadas e celebradas, verdadeiras “portas giratórias”. Isto é: grandes contingentes da população que estão “atravessando as portas de saída” da pobreza correm o risco de retornar a essa situação – voltando pela mesma porta –, em função da fragilidade das oportunidades que garantem sua inclusão, ante a persistência dos processos que provocam empobrecimento. Particularmente, refiro-me aos riscos da volta do desemprego; da interrupção da valorização do salário mínimo e do aumento da precariedade do trabalho; da persistência das limitações e seletividade no acesso a serviços públicos de qualidade (inclusive com o risco de privatização destes); da persistência ou aumento da tributação regressiva, que onera de forma injustamente igual o consumo dos produtos básicos pelos pobres e pelos ricos; do aumento da insegurança e da violência, em particular sobre mulheres, jovens e crianças; da deterioração das condições ambientais, com aumento da vulnerabilidade das populações mais fragilizadas e com menor condição de resiliência; e da persistência da concentração de riqueza que gera desigualdade econômica e social.
Os processos que causam empobrecimento estão profundamente imbricados e são, em grande medida, produzidos ou potencializados pelos que provocam desigualdades. Como lembra Eduardo Fagnani,2 ainda que a desigualdade da renda do trabalho tenha caído de forma significativa, ela continua sendo uma das mais altas do mundo. A concentração da riqueza agrária permanece sem ser mexida, com um imposto territorial rural inexpressivo e a reforma agrária cada vez mais distante. A inserção de nossas cidades nos circuitos mundiais que buscam novas fronteiras de expansão da acumulação do capitalismo financeirizado aumentou a especulação imobiliária. A importância do rentismo sobre a produção e o gasto social tem promovido a elevação nominal e real das taxas de juros e a maior concentração da riqueza financeira. As dificuldades em promover um sistema tributário progressivo, que incida sobre renda e patrimônio, fazem que as quinze famílias mais ricas do país possuam um patrimônio3 que é quase o dobro do investido em onze anos do programa Bolsa Família, destinado a 50 milhões de pessoas. Apesar das melhoras nos últimos anos, persiste a heterogeneidade estrutural do mercado de trabalho, assim como a desigualdade entre classes e regiões no acesso aos bens e serviços sociais básicos (educação, saúde, previdência social). As políticas de habitação popular, saneamento e mobilidade urbana não conseguem enfrentar a magnitude dos problemas criados pela acelerada urbanização excludente.
É preciso reconhecer que houve reorganização e aprofundamento das políticas sociais promovidas pela Constituição de 1988, como a universalização da saúde, a transformação da assistência social em direito e o estabelecimento de processos de participação popular. O financiamento da saúde passou de aproximadamente R$ 300 per capitae 3% do PIB entre meados dos anos 1990 e 2002 para R$ 700e 4%, respectivamente, no decênio que começa em 2003. O gasto em educação também cresceu de 4% para 6% do PIB. E o Bolsa Família, introduzido em 2003, representou 0,5% do PIB. Ou seja, o Brasil, diferentemente dos demais países latino-americanos, arrecada em torno de 35% do PIB em impostos e consegue alocar 10% dele em políticas sociais.4
Esse gasto, porém, não está conseguindo dar conta das demandas por serviços públicos de qualidade que não se restrinjam somente ao acesso para os setores empobrecidos, mas abarquem, além disso, a cobertura e qualidade desses serviços tanto para esses setores como para aqueles recentemente incluídos, que conformam a classe C. Nas multifacetadas jornadas de junho de 2013, que envolveram ativamente também os jovens da classe C, as demandas pela qualidade de serviços (“Quero educação e hospitais padrão Fifa!!!”) foram frequentemente escutadas nas ruas das maiores cidades brasileiras.
Com o novo contingente de 40 milhões de incluídos, a classe C passou a representar mais da metade da população do país. Sua composição e trajetórias, seus interesses e demandas, sua inserção pelo trabalho e pelo consumo e seu comportamento econômico, cultural, social e político vêm criando interrogações e desafios, sendo também objeto de debates e disputa não só no campo intelectual, mas também entre agentes do mercado, igrejas e partidos políticos. Isso acontece por sua importância econômica enquanto novos consumidores que abrem uma frutífera frente de expansão para o mercado interno, por configurarem uma nova massa de fiéis a serem convertidos e que alimentam o crescimento significativo das igrejas pentecostais, com sua teologia da prosperidade, perante o catolicismo tradicional, e por serem o contingente mais significativo de eleitores, sem filiação partidária ou engajamento em movimentos sociais. O processo eleitoral recém-encerrado deixou claro que uma parcela dessa nova classe média, apesar de no passado ter constituído os setores mais empobrecidos da população brasileira, não tem claro o impacto das políticas públicas que possibilitaram sua ascensão social e econômica. Muito se falou do “desperdício de recursos do Bolsa Família com aqueles que não querem trabalhar”, reforçando o discurso da meritocracia e atribuindo conquistas a esforços pessoais e familiares. Ganhou força também o tom conservador de muitos discursos, com posicionamentos radicais contra os direitos reprodutivos e dos homossexuais, e a desqualificação da política pela corrupção. Essa classe se mostrou fortemente dividida. Por seu número, ela decidirá as eleições nas próximas décadas e tem se tornado o centro da disputa pela hegemonia estabelecida hoje no país. Aqui, ressalta-se o papel central da mídia como um ator tão importante quanto os próprios partidos e que se manifesta em projetos diversos de sociedade e de futuro.
A própria denominação dessa classe tem implicações significativas para o processo de construção da cidadania no país. Ser chamada pelo termo ufanista do governo de “nova classe média”, repetido incansavelmente pela mídia e pelas empresas de marketing, e perceber que seus membros se reconhecem como tal propicia o deslocamento simbólico de sua condição de cidadãos para a de consumidores. E, consequentemente, por consumirem o discurso da mídia que representa a “verdadeira classe média”, passam a defender que o melhor seria garantir para elas a compra de serviços públicos (por exemplo, educação e saúde privatizadas), com o falso mito da qualidade. Ser identificada e se reconhecer como “nova classe trabalhadora” ressalta o caráter de sua cidadania como trabalhador com direitos. Para promover o bem-estar que lhe corresponde, o governo precisaria promover políticas universais de qualidade em educação, saúde, moradia, transporte público, entre outros. Por sua vez, sua identificação e reconhecimento como “novo precariado” reforça o caráter transitório e excludente de uma cidadania inconclusa.
No processo de disputa hegemônica, visando à construção de uma sociedade sem pobreza, mais justa e menos desigual, o desafio que se coloca para esses novos setores incluídos (classe C) e para os setores empobrecidos é promover a construção de sua cidadania ativa enquanto sujeitos para além da cidadania como consumidores (classe C) ou como beneficiários (classes D e E). Isto é, não virar massa de manobra do mercado nem de nenhum tipo de clientelismo político elitista, e sim sujeitos ativos, com capacidades e oportunidades para poder escolher seu próprio destino, exercer sua cidadania social, viver sua vida com dignidade e em segurança e, solidariamente, aprofundar o processo democrático.
Eles são o sujeito da “política vivida”,5 que exerce seu direito de participação social nas políticas públicas. São cidadãos que demandam uma “revolução nos serviços públicos” não só em termos de metas de acesso, cobertura e qualidade, mas também do processo de construção e aplicação das políticas e de promoção da cidadania num contexto de disputa hegemônica. Nesse processo, não é suficiente a participação da população só como beneficiária ou consumidora dos serviços, mas como sujeito da política. No processo de participação social, os cidadãos são defensores das políticas que promovem seus direitos por meio de seus coletivos – movimentos, redes e outras organizações da sociedade civil –; participantes ativos na formulação e avaliação das políticas públicas nos processos que, desde o local, por meio das etapas municipais, distritais, estaduais e regionais, culminam nas conferências nacionais de políticas públicas; representantes dessas organizações da sociedade civil nos processos decisórios e na gestão de políticas públicas que se manifestam nos conselhos ou comissões de políticas; representantes nos debates, negociações e recomendações que acontecem nas mesas de diálogo e nos fóruns interconselhos; guardiões de seus direitos e promotores do controle social sobre os serviços públicos e da responsabilização das autoridades, que têm a obrigação de garantir a qualidade destes, por meio de reclamações ou solicitações ante a Ouvidoria Pública Federal; sujeitos com vozes nas audiências públicas e com palavra escrita nas consultas públicas; ativos promotores da interação social para melhoria dos serviços públicos no ambiente virtual de participação social, por meio da internet e de outras formas de tecnologia da informação e da comunicação;6 e sujeitos coletivos que, por sua mobilização permanente, promovem a democratização de todos esses espaços institucionalizados de participação e a qualidade da própria participação.
No entanto, o atual contexto econômico e político apresenta sérios desafios para a aplicação dessa “revolução nos serviços públicos” com uma participação social ativa. Pelo lado econômico, é cada vez mais nítido, como Breno Altman aponta,7 que o reordenamento orçamentário não resolve mais o financiamento do modelo de desenvolvimento com inclusão social. A proposta de “todos ganharem” – desde os rentistas até os setores empobrecidos, passando pelo setor produtivo e pelas classes médias – propiciada nos últimos anos por uma conjuntura econômica internacional e nacional favorável, já não é mais possível. A continuidade e o aprofundamento das mudanças que promovem a justiça social passam pela redução da renda financeira dos setores do topo da pirâmide. Alguém vai ter de pagar a conta. E espera-se que não prevaleça a visão discriminatória naturalizada de que os pobres são responsáveis por sua própria condição de pobreza e pela superação dessa situação. A redução da taxa de juros e a reforma tributária de caráter progressivo, taxando mais os mais ricos, se colocam como instrumentos necessários que permitiriam recuperar o investimento público, promover a “revolução nos serviços públicos” e dinamizar e expandir o mercado interno.
Por outro lado, como ressalta Adrian Gurza Lavalle,8 a institucionalização da participação social no Brasil – sem negar seus problemas e dificuldades – atingiu patamares sem precedentes na história do país e nas democracias do mundo. Não existiria outro lugar com um arcabouço institucional de instâncias participativas tão federalizado, diversificado e abrangente quanto o do nosso país.
Mas, se depender exclusivamente dos interesses que apresenta a composição do Congresso Nacional – a mais conservadora desde a democratização –, tanto a reforma tributária, junto com a superação da armadilha do tripé macroeconômico (metas de inflação, superávit fiscal e câmbio flutuante), que permitiria gerar os recursos necessários para a viabilização dessa revolução nos serviços públicos, como a promoção da participação social ativa nas políticas públicas estão seriamente ameaçadas. O veto em outubro de 2014 do Decreto Presidencial n. 8.243, que estabelece a Política Nacional de Participação Social (PNPS), é um exemplo inequívoco dessa ameaça de retrocesso. E as reformas tributária e política, que porventura venham a ser propiciadas nesse contexto legislativo, correm o risco de ser contrárias aos interesses dos setores empobrecidos e recém-incluídos.
O caminho para a superação desses desafios é longo, e seguramente com avanços e retrocessos. É o momento de superar a “absolutização do consenso” que leva – numa leitura distorcida de Jürgen Habermas9 sobre os espaços públicos – a promover consensos sobre o que não há o que “consensuar”. É o momento de voltar os olhos para Ernesto Laclau e Chantal Mouffe10 e reconhecer o conflito entre projetos como base da construção democrática: o espaço público tem de servir para deixar claras as propostas em jogo, para que o povo faça escolhas. Houve eleições. Uma proposta ganhou. O governo e a oposição precisam respeitar a vontade popular. E agora se coloca a necessidade de articular e mobilizar setores do governo e parlamentares no Legislativo, com atores do mercado, movimentos e organizações da sociedade civil, na reafirmação do projeto escolhido democraticamente. Visando à superação dos processos que geram empobrecimento e desigualdade, ele se propõe a viabilizar uma verdadeira “revolução nos serviços públicos”, ancorada na ativa participação social.
Jorge O. Romano é doutor em Ciências Sociais pelo CPDA da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e integra a ActionAid Brasil.