Quem pode ser norte-americano?
Em menos de 24 horas no cargo, Donald Trump pretendeu mudar a percepção de quem é norte-americano. Essa pretensão não é nada trivial e se for bem-sucedida, ela pode alterar, por completo, o âmago dos Estados Unidos, seu tecido social, suas nuances culturais e até a sua base laboral e eleitoral
Consagrada no Art.15 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948)[1], a nacionalidade é componente essencial da dignidade da pessoa humana. Como regra geral, há dois critérios para sua definição, os chamados “jus soli” e “jus sanguinis”, cujas expressões em latim têm sentido cristalino. Enquanto o primeiro dá primazia ao território de nascimento do indivíduo para atribuição da nacionalidade (critério esse que tende a preponderar em países de forte imigração), o segundo faz prevalecer a filiação familiar, sendo usual em países de farta emigração.
Nos Estados Unidos, no contexto pós-abolição da escravatura e após o fim da Guerra de Secessão, emendou-se a Constituição Americana por meio da 14ª Emenda (ratificada em 1868). A primeira frase da Seção 1 dessa emenda é bastante clara ao adotar o critério do “jus soli”. Veja-se:
Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos e sujeitas à sua jurisdição são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado onde residem. (tradução livre)
Essa previsão, que à primeira vista pode parecer singela, teve e tem uma importância enorme. Na época em que foi editada, ela foi necessária para reverter a (desastrosa e racista) decisão tomada pela Suprema Corte americana em 1857, no caso Dred Scott v. Sandford. Sob essa decisão, a Suprema Corte americana interpretou a Constituição Americana como um obstáculo para que as pessoas pretas se tornassem cidadãs.
Apesar do texto curto e claro da 14ª Emenda, a Suprema Corte Americana foi instada a se manifestar sobre a extensão do sentido da primeira frase da Seção 1 no caso United States v. Wong Kim Ark, 169 U.S. 649 (1898)[2]. Neste, Wong Kim Ark, nascido de pais chineses na Califórnia, pretendia retornar aos Estados Unidos, quando foi barrado pela imigração por ser considerado de nacionalidade chinesa (e não americana), e a ele, portanto, aplicar-se-ia o então em vigor Chinese Exclusion Acts.
Judicializada a controvérsia e já em sede recursal, no ano de 1898, a Suprema Corte proferiu uma decisão que firmou precedente, confirmando a cidadania por direito de nascimento (Birthright Citizenship) e inibindo que os descendentes nascidos nos EUA de imigrantes tivessem sua cidadania negada, independentemente da etnia, nacionalidade ou estatuto dos pais. Prevaleceu, portanto, o critério do “jus soli”.
Em julgado de placar 6×2, a opinião da maioria tomou como base o voto do Justice Horace Gray[3] que constatou o que segue:
As considerações e as autoridades acima mencionadas nos levam irresistivelmente a estas conclusões: a Décima Quarta Emenda afirma a antiga e fundamental regra da cidadania por nascimento dentro do território, na submissão e sob a proteção do país, incluindo todas as crianças nascidas aqui de estrangeiros residentes, com exceções ou qualificações (tão antigas quanto a própria regra) de filhos de soberanos estrangeiros ou seus ministros, ou nascidos em navios públicos estrangeiros, ou de inimigos dentro e durante uma ocupação hostil de parte do nosso território, e com a única exceção adicional de filhos de membros das tribos indígenas devido lealdade direta para suas várias tribos.
A Emenda, em palavras claras e com intenção manifesta, inclui os filhos nascidos, no território dos Estados Unidos, de todas as outras pessoas, de qualquer raça ou cor, domiciliadas nos Estados Unidos. Todo cidadão ou súdito de outro país, enquanto domiciliado aqui, está sob a fidelidade e proteção, e consequentemente sujeito à jurisdição dos Estados Unidos. (tradução livre)

A decisão é bastante clara: pessoas nascidas no território dos EUA são americanas, salvo poucas exceções, como filhos de embaixadores de outros países ou filhos de pessoas que representem uma força invasora.
O referido precedente perdurou como entendimento pacificado, tendo sido reiterado no âmbito do caso Plyler v. Doe, 457 U.S. 202 (1982)[4], que se debruçou sobre o financiamento e acesso à educação de crianças descendentes de imigrantes ilegais. Nessa ocasião, a Suprema Corte ratificou a interpretação já estável da 14ª Emenda e tornou a adotar postura protetiva em relação aos filhos de pessoas sem documentação regular nos EUA, verbis:
Pelo menos, aqueles que escolhem entrar em nosso território de forma furtiva e violando nossa lei devem estar preparados para suportar as consequências, incluindo, mas não limitado a deportação. Mas os filhos desses imigrantes ilegais não estão situados de forma comparável. (…) Mesmo que o Estado tenha considerado conveniente controlar a conduta dos adultos agindo contra seus filhos, a legislação que determina o ônus da má conduta de um pai contra seus filhos não está em conformidade com concepções fundamentais de justiça. (tradução livre)
Ocorre que, no início desta semana, no ato de posse do Presidente Donald Trump, foi assinada uma Ordem Executiva (equiparável ao Decreto sob o Direito Brasileiro)[5] que reverte séculos de tal entendimento consolidado. Em um ato único, o Presidente eleito pretendeu alterar a interpretação do texto legal, determinando que não sejam considerados americanos aqueles nascidos em território estadunidense nas seguintes hipóteses:
(1) quando a mãe da pessoa em causa se encontrava ilegalmente nos Estados Unidos e o pai não era cidadão dos Estados Unidos ou residente permanente legal no momento do nascimento dessa pessoa, ou;
(2) quando a presença da mãe da pessoa nos Estados Unidos no momento do nascimento da mesma foi legal, mas temporária (como, por exemplo, visitar os Estados Unidos sob os auspícios do Programa de Isenção de Vistos ou visitar com um visto de estudante, trabalho ou turista) e o pai não era cidadão dos Estados Unidos ou residente permanente legal no momento do nascimento da pessoa. (tradução livre)
O Decreto foi editado sob o argumento de que a 14ª Emenda jamais teria sido entendida como garantidora da nacionalidade para filhos de imigrantes ilegais ou pessoas que apenas temporariamente permanecem nos EUA. Como se viu acima, isso não é verdade: as exceções para a aquisição da nacionalidade ao nascer em solo estadunidense são taxativas e restritivas há mais de 125 anos e jamais envolveram o status de imigração dos pais.
Indo além, o Decreto também proibiu que qualquer departamento ou agência governamental reconheça a nacionalidade americana ou os documentos eventualmente já expedidos por outras autoridades, em relação aos indivíduos que se enquadrem em alguma das duas categorias dispostas acima. Ademais, a referida proibição recairá apenas sobre as pessoas que nascerem no país após 30 dias contados da data do ato normativo. A ideia seria, em suma, acabar com supostos incentivos para imigrações ilegais que compõem o chamado “turismo de gravidez”.
O contraste entre o conteúdo do Decreto e a previsão constitucional é gritante. O Decreto certamente trará uma maré de insegurança jurídica, com terreno fértil para judicializações em múltiplas escalas, sobretudo quando tratamos de um país de organização federalista. E os efeitos já são sentidos: ao menos vinte e dois Estados de liderança democrata protocolaram ação na corte federal de Boston, alegando a inconstitucionalidade do Decreto recém-editado[6]. Em suma, contesta-se o esforço presidencial no sentido de limitar os direitos automáticos de nacionalidade por nascimento em território estadunidense.
Como era de se esperar, em 23 de janeiro de 2025, o magistrado John C. Coughenour, da Corte Federal de Seattle (WA), atendeu ao pedido dos Estados de Arizona, Illinois, Oregon e Washington e determinou a suspensão do novo Decreto, por considerá-lo inconstitucional e em franca contrariedade aos precedentes da Suprema Corte. Ainda, o magistrado argumentou ter verificado o potencial do Decreto gerar prejuízos irreversíveis nas searas dos direitos humanos e da saúde financeira estatal, senão veja-se[7]:
Os Estados demandantes enfrentam danos irreparáveis como resultado da assinatura e implementação da Ordem Executiva.
A Ordem prejudica diretamente os Estados demandantes ao forçar agências estaduais a perder financiamento federal e incorrer em custos substanciais para fornecer cuidados médicos e serviços sociais essenciais e legalmente exigidos às crianças residentes sujeitas à Ordem.
Os residentes dos Estados demandantes também são irreparavelmente prejudicados ao serem privados de seu direito constitucional à cidadania e todos os direitos e benefícios associados, incluindo: sujeitá-los ao risco de deportação e separação da família; privá-los do acesso ao financiamento federal para cuidados médicos e elegibilidade para o básico benefícios públicos que previnem a pobreza infantil e promovam a saúde da criança; e impactando seu emprego educacional e saúde.
Estes danos são imediatos, contínuos e significativos, e não podem ser remediados no curso normal do litígio. (tradução livre)
Não bastasse o terremoto jurídico, a crise social em potencial é ainda mais gravosa, colocando milhares de pessoas já alocadas nos EUA em situação de limbo e sujeitas a um efeito cascata, quando presentes famílias multigeracionais. De acordo com estudo de 2022 da Pew Research[8], os dados são alarmantes:
Imigrantes não autorizados vivem em 6,3 milhões de domicílios que incluem mais de 22 milhões de pessoas. Essas famílias representam 4,8% dos 130 milhões de lares nos EUA.
Aqui estão alguns fatos sobre essas famílias em 2022:
– Em 86% desses domicílios, o chefe de família ou seu cônjuge é um imigrante não autorizado;
– Quase 70% desses domicílios são considerados “status misto”, o que significa que eles também contêm imigrantes legais ou residentes nascidos nos EUA;
– Apenas cerca de 5% desses domicílios, os imigrantes não autorizados não estão relacionados com o chefe da família ou cônjuge. Nestes casos, são provavelmente empregados ou companheiros de quarto;
Dos 22 milhões de pessoas em lares com um imigrante não autorizado, 11 milhões são nascidos nos EUA ou imigrantes legais. Eles incluem:
– 1,3 milhões de adultos nascidos no país que são filhos de imigrantes não autorizados. (Não podemos estimar o número total de filhos adultos nascidos nos EUA de imigrantes não autorizados porque as fontes de dados disponíveis identificam apenas aqueles que ainda vivem com seus pais imigrantes não autorizados.);
– 1,4 milhões de outros adultos nascidos nos EUA e 3 milhões de imigrantes legais.
Cerca de 4,4 milhões de crianças nascidas nos Estados Unidos com menos de 18 anos, vivem com um pai imigrante não autorizado. Elas representam cerca de 84% de todas as crianças menores de idade que vivem com seus pais imigrantes não autorizados. No total, cerca de 850 mil crianças menores de 18 anos são imigrantes não autorizados em 2022. (tradução livre)
A abstração do Decreto também chama a atenção para as formas de implementação de suas previsões, que ficarão a cargo dos chefes de todos os departamentos e agências, os quais foram instados a emitir orientações públicas, no prazo de 30 dias, sobre a efetivação da norma em seu âmbito de atuação. Assim, além da inconstitucionalidade, corre-se o risco de procedimentos variados e dissonantes, que poderiam chegar até a práticas de deportação em massa, algo já aventado pelo Presidente eleito, que, aliás, declarou a imigração ilegal como uma emergência nacional, sobretudo na fronteira sul do país[9].
Também causou espanto a reversão de entendimento no que diz respeito às denominadas “áreas sensíveis”, tais como igrejas, escolas e até hospitais. Se antes as autoridades migratórias não podiam realizar ações de fiscalização e eventual apreensão nesses locais, agora há plena autorização para isso, o que gera temor nas populações já marginalizadas.
O ambiente virtual, ademais, também foi palco de medidas restritivas por parte do novo governo. Optou-se por encerrar a utilização do aplicativo de fronteira denominado CBP One, que auxiliava na entrada legal e ordenada de migrantes em território norte-americano. Um golpe para ideais de digitalização, desburocratização e celeridade no trato da coisa pública.
Mesmo em menos de 24 horas no cargo, Donald Trump pretendeu mudar a percepção de quem é norte-americano, de quem ali pode entrar e sentir-se bem-vindo e das maneiras com que se pode fazê-lo. Essa pretensão não é nada trivial. Se bem-sucedida, ela pode alterar, por completo, o âmago dos EUA, seu tecido social, suas nuances culturais e até a sua base laboral e eleitoral. No longo prazo, caso se mantenha a tendência de redução das taxas de natalidade e de fecundidade no país, talvez seja possível constatar desafios de cunho demográfico, trazidos pelas rígidas iniciativas do governo eleito.
Na arena global, mais uma vez, será presenciado um embate entre a soberania doméstica e o regramento internacional. Contudo, tendo em vista que a política externa do primeiro governo Trump se caracterizou por iniciativas de withdrawal (retirada) dos organismos internacionais e diante das mais recentes determinações de abandono do Acordo de Paris e de saída da OMS[10], a previsão é a de que a Administração estadunidense não terá quaisquer constrangimentos em dar as costas para as réguas civilizatórias e bradar o seu America First.
Em um momento de crises simultâneas e interconectadas, vê-se que ainda há espaços para a ascensão de populismos com reminiscências fascistas. Difícil saber se antes era a tragédia e agora a farsa ou vice-versa. O fato é que o tempo será implacável em seu veredito: fundamentalismo, isolacionismo, autoritarismo e xenofobia estarão, uma hora ou outra, fadados ao retumbante fracasso.
Felipe Napolitano Marotta é doutorando e mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito (LL.M.) pela Harvard Law School em 2022. Advogado admitido no Brasil (OAB/SP) e em Nova York.
Nina Nobrega Martins Rodrigues é mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP). Advogada e Servidora Pública.
[1] https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos
[2] https://supreme.justia.com/cases/federal/us/169/649/#top
[3]https://constitutioncenter.org/the-constitution/supreme-court-case-library/united-states-v-wong-kim-ark-1898
[4] https://supreme.justia.com/cases/federal/us/457/202/
[5] https://www.whitehouse.gov/presidential-actions/2025/01/protecting-the-meaning-and-value-of-american-citizenship/
[6] https://www.theguardian.com/us-news/2025/jan/21/trump-birthright-citizenship-lawsuit
[7] https://www.migalhas.com.br/arquivos/2025/1/F6F52E5E51617D_43-2025-01-23-Order-granting-p.pdf
[8] https://www.pewresearch.org/short-reads/2024/07/22/what-we-know-about-unauthorized-immigrants-living-in-the-us/
[9] https://www.reuters.com/world/us/trump-declare-national-emergency-border-trump-official-says-2025-01-20/
[10] https://www.dw.com/pt-br/em-primeiro-dia-trump-retira-eua-de-oms-e-acordo-clim%C3%A1tico/a-71355794