“Quem procura osso” encontrou o Oscar: a vitória do cinema no resgate da memória sobre a ditadura
Vencedor do primeiro Oscar do cinema brasileiro, Ainda estou aqui, faz história ao resgatar a memória do terror que habita o nosso passado e força as portas do presente, obscurecendo os horizontes do país, dá uma poderosa resposta ao que há de mais abjeto entre nós e lança uma crítica questão para a sociedade brasileira: qual política precisamos construir que nos deixe viver, não morrer?
A relação entre cinema e memória é densa. Diversos historiadores e estudiosos do cinema já refletiram sobre ela. Marc Ferro, um dos mais renomados historiadores do século XX, disse que o cinema não apenas reflete a história, mas “a constrói, tornando-se um agente ativo na formação da memória nacional e na consolidação de mitos fundadores” (FERRO, 1992, p. 67). É o que também assinala Kracauer, cuja obra analisa a influência do cinema alemão sobre a memória coletiva e a identidade nacional durante a República de Weimar e o Terceiro Reich. Diz ele que “os filmes não apenas retratam a sociedade, mas também ajudam a moldar sua memória coletiva, criando imagens que se tornam parte do imaginário nacional” (2009, p. 89). Assim, a cultura retrata e interpreta fatos históricos, lega à posteridade um imaginário sobre o passado e molda, assim, a sua identidade coletiva. É nesse sentido que Rosenstone (2010, p. 112) também afirma que o cinema histórico “não apenas representa o passado, mas também o reinterpreta, tornando-se uma ferramenta crucial para a formação da memória coletiva e da identidade nacional”.
Benedict Anderson, autor de uma das obras mais importantes sobre a formação das nações, não deteve o seu olhar sobre o cinema, mas a categoria de “comunidades imaginadas” que utiliza para analisar a nação é construída social e culturalmente, não baseada em laços pessoais diretos – já que os membros de uma comunidade nacional nunca conhecerão a maioria dos seus semelhantes, mas ainda assim compartilham um sentido de pertencimento. Seguindo este fio, Anderson explorou a imprensa e a linguagem como elementos imprescindíveis para a formação nacional, o que nos permite concluir que esses sentidos compartilhados são construídos através de narrativas compartilhadas, incluindo aquelas preservadas pelo cinema.
É nesse contexto que Ainda estou aqui presta um enorme serviço à democracia brasileira. A memória sobre a ditadura entrou numa ferrenha disputa com forças reacionárias na última década, e as novas gerações já não são capazes de mensurar a importância da democracia e o trauma de viver sob uma ditadura. E, cada vez mais, nos faltam recursos para lembrá-las em meio ao projeto educacional refém do mercado de trabalho neoliberal, imediatista e alheio ao compromisso com a preservação dos laços de solidariedade fundamentais à sobrevivência de nossa comunidade.

Nesse contexto de sucateamento da educação e da cultura, não é surpreendente que nossa memória esteja vulnerável a revisionismos e nossa democracia, frágil. Saber é poder e vice-versa. Em outras palavras, a memória está sempre sujeita a reconstruções porque o poder tem lápis e borracha, escreve e apaga, enquanto executa – inclusive, gente. A história de Rubens Paiva e sua família, como tantas outras, estava perdida nos porões da ditadura e dos arquivos. O seu resgate pelo filme de Salles coloca sob os holofotes do grande público aspectos sobre a ditadura militar brasileira, muitas vezes, desconhecidos por ele. Ver um homem que sequer possuía vínculo com a luta armada ser tirado de sua família daquele jeito e ver como sua mulher e filha são tratadas proporciona uma experiência capaz de conectar as pessoas com o passado que as habita e desconheciam. O cinema, assim, tem o incrível poder de nos lembrar daquilo que nem sabíamos que tínhamos esquecido.
Eclipse
“Por que essa casa tá toda fechada?”, pergunta Nalu, ao adentrar num rompante a atípica escuridão que tomara a casa, reforçada pela sinistra presença de homens estranhos na sala. A cena é o ponto de inflexão do filme, eclipsando a vida da família Paiva e tragando Rubens para o abismo de onde ele nunca mais voltaria.
O ângulo familiar nos remete à tensão entre autoritarismo e liberdade para além de princípios políticos abstratos, ao nos informar que Rubens era pai, marido, filho; que, como qualquer um de nós, tinha gostos, desgostos, ideais, paixões, senso de humor. Dentro da esfinge política legada à memória da luta contra a ditadura, havia um homem real, e a política se infiltrava na vida cotidiana. A alegria virava tristeza; a luz, escuridão; a vida, morte. Aqui, a primeira lição é que não há vida fora da política, e a questão passa, então, a ser: que política queremos e precisamos construir para que possamos viver, e não morrer?
A política da morte se enuncia aos poucos: a sombra de um helicóptero e as tropas passando à beira mar; a blitz no túnel. Luz e gozo são tese; morte e escuridão, antítese. E tudo conflui para um instante: “Volto a tempo do suflê”, diz Rubens à sua mulher, na soleira da porta, antes de ser tragado.
Eunice entende logo que seu marido foi sequestrado. Diferente de uma detenção na esfera do Direito, no caso em tela nenhuma pergunta tem resposta e a sensação dominante é a do medo e da escuridão, traduzida na alegoria das cortinas fechadas pelos agentes da repressão. Como o Brasil, Eunice vê-se colonizada, violada e, sem qualquer explicação, é sequestrada junto com uma de suas filhas. No cativeiro, retirado o capuz que nega à presa – a polissemia aqui foi obra do acaso, mas poderia ter sido intencional – a consciência sobre o seu paradeiro, ela se vê diante do interrogador e quer respostas. Mas sua cidadania, a reserva de poder civil que lhe garantiria respostas, já não existe mais.
A escuridão insinua o medo, as manchas de sangue no chão revelam a tortura. Ouvem-se gritos que se aproximam e se distanciam à medida que a porta é aberta ou fechada, numa espécie de dosimetria do terror. Duas semanas se perdem num cárcere obscuro em muitos sentidos, tempo que ela luta para rastrear enquanto espera sem saber pelo que espera, ou o que a espera. Libertada, ela retorna e vê seus filhos dormindo. Uma imagem emblemática do mundo vivendo e dormindo em paz enquanto um pesadelo ecoa nos porões da ditadura.
Entendendo que Rubens não retornará (certeza que obtêm das circunstâncias, pois jamais viria de um regime covarde que não assume os próprios crimes, até hoje), Eunice começa a tocar a vida dividida entre duas versões de si: uma enlutada, perdida naquele instante – “volto a tempo do suflê” –, e outra que precisa cuidar de sua família. Tocam para São Paulo, onde recomeçam sem deixar o passado para trás. Passam-se 25 anos no novo apartamento, mas os móveis da antiga casa remetem à persistente presença do passado preservado não apenas na sala da família Paiva, mas também no Brasil atual. Perfeitamente conservada, a velha mobília simboliza, além do horror que sobrevive encoberto sob o “mogno” da República de 1988, a resiliência de Eunice e sua família. Outra alegoria forte que ressalta a grandeza do cinema.
Após uma vida lutando na justiça, ela recebe com alegria o atestado de óbito de seu marido, paradoxo que chama a atenção para a violência da negação do luto, um direito humano tão fundamental quanto a vida. Mais alguns anos se passam e a vemos com Alzheimer na pele de outra Fernanda, a mãe. Outra alegoria, acentuando a perda, embora não total, da memória política do país. Não total porque, ainda que distante, Eunice assiste atentamente a uma matéria na TV sobre a Comissão Nacional da Verdade e é possível ver em seus olhos que ainda lembra daquele instante. Um final que nos lança uma tensão, como a nota em suspenso de uma melodia inacabada. Entre tese e antítese não há síntese possível, afinal.
Entulho
O processo de abertura política foi baseado na conciliação com o inconciliável através da Lei da Anistia de 1979, que sacramentou a impunidade a assassinos e torturadores. A anistia “geral e irrestrita” equiparou aqueles que resistiram à ditadura aos carrascos de um regime criminoso e vassalo do imperialismo. Resultado do equilíbrio de forças durante a transição, mas imoral e indefensável sob qualquer exame histórico ou político. Renunciamos, desta forma, à pedagogia necessária para a democratização de uma sociedade marcada por um passado autoritário, renúncia que tem cobrado o seu preço.
Dentre os entulhos persistentes da ditadura, há dois que se destacam e asfixiam a democracia em nossos dias: a tutela e o protagonismo dos militares sobre a política, e o legado da Doutrina de Segurança Nacional nas políticas de Segurança Pública. Os dois sobreviveram ao pacto constitucional de 1988, à medida que os constituintes, pressionados pelos militares, não conseguiram eliminar a presença das Forças Armadas em atribuições da vida nacional que não lhes cabem. A consequência tem sido, à guisa de exemplo, o aumento da violência fomentada pela militarização da segurança pública, que subscreve práticas policiais em franco desacordo com os direitos garantidos na Constituição, que, apesar de democrática na letra fria, convive com tortura e execuções sumárias na rotina policial, fato que remete aos porões do DOI-CODI onde Rubens e tantos outros foram barbarizados.
Essa barbárie está documentada pela Comissão Nacional da Verdade, onde o caso de Rubens Paiva foi revelado em detalhes. Sobre sua prisão e desaparecimento, o relatório a CNV assim procede: “Rubens Beyrodt Paiva, ex-deputado federal cassado pelo regime militar, foi preso em sua residência no Rio de Janeiro, no dia 20 de janeiro de 1971, por agentes do DOI-CODI/SP. Após ser levado para interrogatório, ele desapareceu, e seu corpo nunca foi encontrado. (…) Rubens Paiva foi submetido a torturas brutais durante seu interrogatório no DOI-CODI. Testemunhas afirmam que ele foi executado sob custódia do Estado, e seu corpo foi ocultado para evitar que se tornasse um símbolo de resistência.”[1] Em seguida, o relatório da Comissão confere responsabilidade ao Estado no caso e reconhece a luta da família Paiva, e muitas outras, por verdade e justiça: “O Estado brasileiro é responsável pelo desaparecimento forçado de Rubens Paiva, que foi vítima de execução sumária e teve seus direitos fundamentais violados, incluindo o direito à vida e à integridade física. [2] (…) A família de Rubens Paiva lutou por décadas para obter informações sobre seu paradeiro, enfrentando a omissão e a falta de transparência do Estado. A CNV reconhece a importância de reparar essa dívida histórica com as vítimas e seus familiares.”[3]
Qual a razão para tanta violência? Que ameaça Rubens representava?
A ditadura instaurada em 1964 se arvorou de uma pretensa missão salvacionista legada pelo anticomunismo – civil e militar –, mas, na prática, serviu para interromper avanços sociais que ganhavam fôlego via soberania popular através de mandatos como o de Rubens Paiva. O novo regime estancou o progresso social em curso no país submetendo-o aos interesses do grande capital sob égide da hegemonia dos EUA, e alavancou a acumulação de riqueza pelas elites. Tragicamente, a disputa política que atravessa a sociedade brasileira atual segue em torno da divisão dos espólios do “milagre econômico” sequestrados pelo “mercado”, esse ente quase demiúrgico que conduz a pauta da grande imprensa e detém o controle sobre os expedientes da política econômica sem se submeter à vontade popular.
Quem procura osso não é cachorro
A partir da CNV, os herdeiros da ditadura iniciaram uma ofensiva contra o governo Dilma. Toda sociedade tem direito à sua memória e, mais importante ainda, todo ser humano tem o direito de saber o paradeiro dos seus entes queridos. A Comissão visava buscar respostas e não impactava a lei da Anistia, mas mexia num vespeiro ao expor assassinos e torturadores, o que explica, em primeiro lugar, o novo capítulo do envolvimento direto dos militares na política, como esteio da candidatura de Bolsonaro.
Bolsonaro, deputado medíocre na Câmara, notório defensor da ditadura e seus métodos, se tornou popular por falas atrozes como “o erro da ditadura foi torturar e não matar”, “se eu fosse eleito dava um golpe no dia seguinte” e “quem procura osso é cachorro”. Esta última, colada na porta do seu gabinete, fazia referência à busca pelos desaparecidos da ditadura e impressiona pela perversidade. Foi também dele a cuspida no busto em homenagem a Rubens Paiva, na Câmara, na presença de familiares do deputado assassinado pelos militares.
O corolário dessa trajetória política horripilante ficaria marcado pelos dizeres sombrios durante a votação do impeachment de Dilma, em 2016, ajudando a protagonizar um dos momentos mais desoladores da história brasileira. Em pleno Congresso, dedicou o seu voto ao torturador de Dilma: “Em nome do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o terror de Dilma Roussef”. Aqui, é importante acentuar que Bolsonaro exalta não somente o torturador, mas a tortura em si sofrida pela presidente, tripudiando da sua condição de vítima de um crime perverso. Difícil imaginar algo mais vil.
E, coincidência ou não, foi sob o governo do mesmo Bolsonaro que vimos centenas de milhares de pessoas serem pulverizadas pela pandemia num ritmo muito acima do mundial, morticínio decorrente do que poderíamos classificar como uma “antipolítica” sanitária. E com direito a mais declarações deploráveis do então presidente durante toda a carnificina.
Se o estado da arte de nossa democracia é esse, de tanto desprezo pela memória da ditadura e de retorno ao que deveria ter sido superado, então estamos à beira do abismo e escapar dele exige que resgatemos nossa memória tão vilipendiada pelo sucateamento da educação e da cultura. Nesse sentido, sob a sombra que avançou sobre o país nos últimos tempos, Ainda estou aqui é um feixe de luz que ressalta aquilo que nos é (ou deveria ser) mais caro e não podemos esquecer. Nos lembra que a compreensão do presente passa pelo passado, truísmo que precisa ser dito e repetido ad nauseam em tempos de revisionismo histórico. E uma lição que emerge do passado, no filme, é que a vida em meio à ditadura pode seguir indiferente até certo ponto, mas, além dele, não há garantias e nunca se sabe onde esse ponto está, porque tudo que baliza o regramento social (informação, direitos, leis etc.) se dobra ao regime. “Para onde vocês levaram o meu marido?”; “Quando ele volta?”. Perguntas que não têm respostas aqui.
O Estado de Direito é um processo histórico limitado e contingente – que o diga a imensa maioria da humanidade, que, sujeita às condições bárbaras da periferia do capitalismo, jamais o conheceu. Por isso, tornar a política sujeita aos direitos humanos fundamentais é um desafio que observa sérias dificuldades num mundo dominado por elites e potências colonialistas. E os governos militares governaram em nome de interesses historicamente comprometidos com a exploração intensiva do povo brasileiro, aprofundando o lugar periférico do Brasil sob o subdesenvolvimento, condição para o funcionamento da mecânica capitalista internacional.
A memória histórica é uma força poderosa, mas as gerações mais novas foram afastadas dela. A consequência é que elas não relacionam os desafios que têm pela frente com os fantasmas que batem à sua porta. Por isso, é papel dos historiadores e de todos que têm influência no debate público relembrar a sociedade do passado que ela não pode esquecer. E o cinema pode se destacar nessa missão civilizatória através da empatia e do fascínio que é capaz de exercer em multidões, porque não há tese ou livro que alcance tantos corações quanto a emoção que nossas gigantes Fernandas emprestam à Eunice Paiva para nos lembrar do lugar de onde viemos e quem somos. E quem queremos e precisamos ser.
João Rafael Gualberto de Souza Morais é historiador, mestre em Estudos Estratégicos, doutor em Ciência Política e professor do Instituto de Estudos Estratégicos da UFF.
Referências
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
FERRO, Marc. Cinema e História. Tradução de Flávia Nascimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 45.
KRACAUER, Siegfried. De Caligari a Hitler: Uma História Psicológica do Cinema alemão. Tradução de Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p. 102.
ROSENSTONE, Robert. A História nos Filmes: os Filmes na História. Tradução de Marcello Lino. São Paulo: Paz e Terra, 2010. p. 112.
SAINT-PIERRE, H. L.; VITELLI, Marina Gisela (orgs.). Dicionário de segurança e
defesa. São Paulo: Editora UNESP, 2018.
STEPAN, Alfred C. Os militares na política: as mudanças de padrões na vida brasileira. Rio de Janeiro: Editora Artenova, 1971.
[1] Fonte: Relatório da CNV, Volume II, pp. 189, 190.
[2] Fonte: Relatório da CNV, Volume I, p. 237.
[3] Fonte: Relatório da CNV, Volume III, p. 312.