Sorri, chorei, me vi, reconheci
Uma carta-resenha sobre o livro Querido estudante negro para a autora Bárbara Carine
Querida Bárbara Carine, construo esta resenha para celebrar nossas histórias coletivas. Seu livro (“Querido estudante negro“, Editorial Planeta) constituído como um livro de meia-ficção (e gostei dessa definição porque é o que se é), não trata apenas da realidade de ser estudante, mas sobre as inquietações do ser negro nas instituições brasileiras.
A personagem principal: um “Eu Coletivo” de uma estudante negra de pele parda, da periferia de Salvador que avança nos seus desafios na sala de aula do ensino básico ao doutorado, nos alimentando com novidades a cada carta que exprime seus amores, suas dores, seus medos e suas conquistas. Do outro lado, um estudante negro de pele preta, filho de pais servidores públicos, bissexual e morador de um bairro da classe alta soteropolitada. Ambos, compartilhando experiências coletivas da multiplicidade negra e suas interseccionalidades e que rapidamente estabeleceram conexões entre o que eu lia, o que eu sentia e minhas próprias memórias.
Escrevo esta carta-resenha como um sujeito implicado, jovem negro gay estudante (agora de doutorado) que lidei com os processos contraditórios de estudar numa escola particular de classe média alta em Salvador. Na leitura, evoquei memórias do caminho de pensamentos embolados que tinha da Capelinha até a Pituba. Um caminho que não era apenas uma determinação geográfica do ir e vir, mas um lugar de ser, de constituição de “bolhas” supostamente furadas ou na sensação de ser um vírus que invade um aparelho tecnológico mas que em algum momento será aniquilado.
A leitura de seu livro evoca um misto de sensações baseadas nas memórias e traumas constituídos ao longo de uma vida. No processo entre a leitura, idas e vindas do trabalho e os processos de estudos, me deparei com uma colega de trabalho que após um comentário meu me disse o seguinte: “Você precisa relaxar. Às vezes, as coisas não são tão aterrorizantes quanto pensa?!” E foi lendo o livro que me permitiu entender que ela não estava errada, era apenas o trauma de um olhar virulento sobre mim de não se achar parte quando se está em partes.
Lendo seu livro, lembrei das leituras de Lélia Gonzalez e Carlos Hasenbalg sobre o lugar de negro transpassado por opressões gênero, raça e classe. O desconforto como parte da existência de uma população que foi categorizada para ser parte dos lugares marginalizados nesse país. Ao mesmo tempo, me encontrei com a personagem principal acerca do olhar sobre a vestimenta e o lugar de classe constituído acerca de como e do que se veste como um dispositivo de racialidade que define o ser e o não-ser como já nos ensinou Sueli Carneiro e Frantz Fanon.
Não dá para deixar passar o lugar da fome que não se dá apenas no campo material, mas também simbólico. É uma fome constante que acredito que até se constitui ao longo de gerações. Nós temos fome porque a história nos negou o que era nosso de comer. O choro da personagem principal que comeu o lanche que tinha caído no chão dado por colegas brancos é um choro que remete a todas humilhações que se arrastaram ao longo de gerações de ter brancos decidindo o que podemos comer. É um choro seco, calado, doloroso, orquestrado como a máscara de Grada Kilomba para definir o que entra e sai da nossa boca.
A virada chave dada no livro foi a entrada na universidade. Essa experiência da permanência material e simbólica, como nos ensinou Dyane Santos, revela um lugar cultural da própria universidade como um não lugar para nós. Os códigos, as vestimentas, os formatos de ser e estar ali não são parte do repertório de grande parte dos estudantes negros periféricos e a leitura proporcionou um olhar atento para esses movimentos.
Tornar-se um intelectual que não viu é uma experiência coletiva para aqueles que nunca se viram na academia, no ambiente profissional de alto escalão, no serviço público. É o tornar-se de Neuza Santos a partir de outras matrizes práticas da vida. Tornar-se um intelectual negro para uma sociedade que não enxerga intelectualidade no nosso saber é parte de um projeto coletivo que há muito tempo disputa este país.
Finalizo esta carta-resenha agradecendo pela oportunidade de leitura do seu livro. O que eu li me acalmou, me mostrou que é possível ser sem deixar de (re)existir.
Como você finalizou no livro, também espero que outros estudantes negros como eu peguem a visão.
Obrigado.
Ícaro Jorge da Silva Santana é doutorando em Direitos Humanos e Cidadania na UnB; professor colaborador do Curso de Gestão de Políticas Públicas na UnB e advogado.
Bibliografia
CARINE, Bárbara. Querido estudante negro (1ª ed.). São Paulo: Planeta do Brasil. 2023. 160p.
SOUZA, Neusa Santos. 2021. Tornar-se negro ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar. 171p.
GONZALEZ, Lélia; HASENBALG, Carlos. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Editora Marco Zero, 1982. 114 p.
FANON, F. Os condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1968.
CARNEIRO, Sueli. Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.
COLLINS, Patrícia Hill; BILGE, Sirma. Interseccionalidade. Tradução: Rane Souza. 1ª edição – São Paulo: Boitempo. 2021
SANTOS, Dyane Brito Reis. Para além das cotas a permanência de estudantes negros no ensino superior como política de ação afirmativa / Dyane Brito Reis Santos. – 2009. 214 f. :il. Orientador: Prof. Dr. Robinson Moreira Tenório. Tese (doutorado) – Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação, Salvador, 2009.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação. Episódios de racismo quotidiano. vPortugal. Ed. Orfeu Negro, 2019.v- I parte – Cap. I: “A máscara. Colonialismo, memória, trauma e descolonização”, p.21-69.