“Quilombola é ser, não estar”
A identidade dos quilombolas que vivem fora de seus territórios, por razões diversas, é questionada e isso tem sido usado para dificultar o acesso à vacinação
Entender a dinâmica que envolve os quilombos e o ser quilombola é essencial para se efetivar ou negar direitos e garantias fundamentais. A discussão em torno da prioridade da população quilombola na vacinação contra a Covid-19 traz à baila, mais uma vez, a discussão sobre a identidade quilombola.
Um levantamento feito pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), com apoio da Terra de Direitos e da Ecam Projetos Sociais, junto a 445 comunidades quilombolas, identifica que um dos principais problemas encontrados na vacinação nos quilombos diz respeito ao impedimento de vacinação de quilombolas que residem fora do território.
Isso acontece porque o Plano Nacional de Imunização – que estabelece como prioritários as comunidades ribeirinhas e quilombolas – e o Plano Nacional de Operacionalização da Vacina Contra Covid-19 para Povos Quilombolas e Comunidades Tradicionais indicam que estar no território é requisito para vacinação prioritária. Esses planos trazem a palavra “habitando” como prerrogativa e, com isso, quilombolas que estejam residindo fora de seu território encontram resistência para serem imunizados.
Dessa forma, mais uma vez a identidade dos quilombolas que vivem fora de seus territórios, por razões diversas, é questionada. Situação semelhante acontece com os povos indígenas que estão fora de suas terras.
A restrição da vacina a somente quilombolas que estejam no território vai contra as garantias constitucionais e a própria decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou em 23 de fevereiro a inclusão da população quilombola como grupo prioritário a ser imunizado.
É preciso enfatizar que, apesar do território ser elemento central para as comunidades, não se deixa de ser quilombola por estar fora dele, assim como não se deixa de ser indígena por estar fora de sua aldeia.
Cabe rememorar o contexto em que se inserem as comunidades quilombolas no país, desde o processo de escravização do povo negro à formação dos quilombos. Durante mais de três séculos e meio, mulheres negras e homens negros foram legalmente comercializados como escravas e escravos no Brasil, último país das Américas a abolir a escravidão no mundo. Pessoas negras escravizadas sequer eram consideradas pessoas, sujeitos de direitos. Foram objetificadas, super exploradas, violentadas, oprimidas e assassinadas. Após a abolição formal da escravidão, os povos negros aquilombados foram invisibilizados, excluídos de acessar direitos.
O reconhecimento de quilombolas enquanto sujeitos de direito só veio ocorrer um século mais tarde, em 1988, com o advento da constituição cidadã. Em seu artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a Constituição Federal reconhece o direito à terra aos quilombolas e a obrigação do Estado em titulá-las – esse direito, que é resultado da luta quilombola organizada junto ao Movimento Negro, foi regulamentado pelo Decreto Presidencial de nº 4887 de 20 de novembro de 2003.
No entanto, reconhecer direitos não significa que este direito é acessado ou efetivado. Hoje, após 33 anos da promulgação da Constituição, os direitos do povo quilombola continuam a ser negados e violados. Isso decorre, entre outros fatores, do racismo estrutural e institucional que colocou e coloca o povo quilombola à margem da sociedade, inviabilizando acesso a direitos e garantias fundamentais e às políticas públicas, como saneamento básico, saúde, trabalho, educação, entre outros.
A saída dos quilombolas de seus territórios se justifica nesse contexto de ausência de garantia do direito ao território titulado – no qual são expulsos de suas próprias casas – e ausência de garantia e acesso às políticas públicas dentro das comunidades.
Nesse sentido, restringir o direito de quilombolas somente àqueles que se encontram dentro do território significa enfraquecer o reconhecimento da identidade quilombola. Nesse caso, a ausência de políticas públicas dentro dos quilombos penaliza os quilombolas duas vezes: primeiro a forçá-los a sair do território, e depois ao restringir o acesso a direitos garantidos alegando que deveriam estar no território.
A negação do acesso a direitos e às políticas públicas foram os fundamentos centrais da Arguição de Descumprimento de Preceitos Fundamentais (ADPF) nº 742, proposta no STF em 09 de setembro de 2020, para denunciar o abandono do poder público em relação às comunidades quilombolas em meio à pandemia.
Impedir a vacinação de quilombolas que se encontram fora de seus territórios tem implicações sobre o direito dessas pessoas conviverem com sua própria comunidade, pois impõe restrições aos não imunizados de retornar e manter contato com suas famílias que se encontram no Quilombo. No caso de trabalhadores e trabalhadoras quilombolas que se encontram fora do quilombo de forma sazonal, ficam impedidos de retornarem para suas próprias casas.
A saída dos quilombolas de seus territórios na busca por acesso às políticas públicas garantidas a todo cidadão brasileiro não pode restringir seu direito prioritário à vacinação enquanto quilombola.
Vercilene Dias é mulher quilombola Kalunga, advogada popular na CONAQ e Terra de Direitos, Doutoranda em Direito pela Universidade de Brasília.
Nathalia Purificação é mulher quilombola de Lagoa das Piranhas – Território Velho Chico. Assessora de Comunicação da CONAQ e Graduanda em Comunicação Social pela UESB.