Racismo ambiental e direito à cidade na Bacia do Una, em Belém (PA)
Políticas públicas sem a participação social desde sua formulação tendem a reproduzir marginalização social e racismo ambiental, pois não incorporam as ideias, visões de mundo e práticas dos principais interessados
No último mês de março, enchentes de rios e inundações urbanas afligiram capitais amazônicas, como Manaus, Rio Branco e Belém. As explicações sobre esses desastres variam entre os efeitos de mudanças climáticas, características geográficas das cidades, problemas no planejamento urbano e combinações entre esses fatores. Em todos os casos, observa-se que os lugares mais atingidos por inundações, pela força da correnteza das águas e por deslizamentos de terra devido às chuvas foram os bairros com localização mais vulnerável e com menos infraestrutura urbana. Estes bairros são justamente aqueles em que habitam as pessoas mais pobres, na maior parte, pretas, pardas e indígenas. São, em sua maioria, migrantes ou descendentes de migrantes de cidades do interior ou de outras regiões do Brasil. Nas áreas empobrecidas das cidades amazônicas, também se fazem presentes, sobretudo, famílias de migrantes da Venezuela e do Haiti.
Na cidade de Belém – de onde falamos –, as inundações urbanas são um problema de longa duração e que atinge as áreas mais baixas, irrigadas no passado por igarapés (afluentes de rios no contexto amazônico) que, com o tempo – e políticas públicas inadequadas –, se tornaram canais de drenagem sem nenhuma utilidade programada, a não ser acumular a água das chuvas e o esgoto da cidade. Uma dessas áreas é a Bacia do Una, ocupada na segunda metade do século XX. Trata-se de uma área de 36,64 km² que hoje compreende 20 bairros da capital paraense. No seu conjunto, a Bacia do Una possui 30% de áreas inundáveis. Com o processo de urbanização de Belém, boa parte de seus igarapés foram aterrados e outros tiveram o seu curso alterado. Ademais, parte de seus terrenos foram impermeabilizados pela pavimentação, construções particulares e perda de áreas verdes. O que existe hoje, no lugar dos antigos cursos d’água, é um conjunto de 17 canais de drenagem urbana a céu aberto e seis galerias subterrâneas. Esse sistema de drenagem é regulado por duas comportas – espécie de barreira mecânica – que protegem o interior da cidade das águas da Baía do Guajará e controlam o fluxo de água nos canais da Bacia do Una.
As transformações mais significativas na Bacia do Una começaram a acontecer no fim da década de 1970, com a remoção forçada de moradores e a retificação de um trecho do Canal São Joaquim, um dos principais cursos d’água da região. Obras pontuais como essa continuaram a ocorrer ao longo dos anos 1980. A mudança mais radical, no entanto, aconteceu somente a partir de 1993, com uma grande obra de reforma urbana que tinha o objetivo de beneficiar toda a extensão territorial da Bacia do Una. A essa grande obra chamaremos de “Projeto de Macrodrenagem da Bacia do Una” ou, para simplificar, “Projeto Una”. Esse projeto foi responsável pela urbanização de grande parte da Bacia do Una: áreas alagadas foram aterradas, ruas foram pavimentadas e instalou-se equipamentos de abastecimento de água e rede de esgoto nas “baixadas” (como são chamadas as favelas em Belém). Porém, a principal realização do Projeto Una foram as obras de macrodrenagem, que transformaram o conjunto de igarapés da região em um sistema de canais e galerias para acumulação de água, controlado pelas comportas do Una e do Jacaré, localizadas na foz do Canal do Una.
O objetivo da criação desse sistema de macrodrenagem era, evidentemente, dar uma solução para o problema histórico das inundações e alagamentos nas baixadas onde moravam, na época, cerca de 600 mil pessoas. As obras do Projeto Una foram dadas como concluídas no final de 2004. Os resultados apareceram logo, em 2005. Durante o inverno amazônico, os canais transbordaram com as grandes chuvas. Ruas e residências ficaram submersas. Os poderes públicos se pronunciaram, dizendo que aquela havia sido a “chuva do século”. Aquilo que deveria ter sido um episódio excepcional em 2005, acabou se repetindo em 2006 e 2007. E assim por diante, aumentando em frequência e intensidade após a conclusão do projeto.
Perplexos diante da situação, desde 2005, grupos de moradores procuraram diálogo com a gestão municipal, com o governo estadual, com ex-técnicos do Projeto Una e com profissionais das engenharias para entender o que estava acontecendo. Uma das conclusões a que se chegou foi que o projeto implementou um conjunto de obras que necessitavam de trabalho e manutenção constante por parte do Poder Público (nesse caso, o município seria o responsável). Essa manutenção – conforme prescrita em manuais elaborados por técnicos do projeto – nunca aconteceu. Ao longo do tempo, os canais ficaram assoreados, estreitos e tomados por vegetação, perdendo suas dimensões originais e a capacidade de acúmulo de água.
Outro agravante é que as obras de macrodrenagem não foram acompanhadas, na devida proporção, por infraestruturas de esgotamento sanitário. Em outras palavras, havia um sistema de macrodrenagem recém-construído, mas, sem as estações para o tratamento de esgoto, as redes coletoras continuavam a despejar os dejetos sanitários nos canais. Logo, se havia uma expectativa de despoluição desses cursos d’água após a conclusão do projeto, o que ocorreu foi o inverso. Por fim, comunidades inteiras dentro da Bacia do Una não receberam nenhum benefício previsto no projeto e obras complementares importantes não foram realizadas, o que também comprometeu a funcionalidade de todos os equipamentos instalados. Os resultados são mais inundações, comprometimento das redes de abastecimento de água e de coleta de esgoto, além do contato das pessoas com água contaminada dos canais, trazendo sérios impactos à saúde e ao bem-viver dos moradores dessas áreas.
O que acontece na Bacia do Una – e nas áreas mais pobres de cidades brasileiras como as citadas no início do texto – é um caso de injustiça ambiental ou, como muitos têm preferido chamar, de racismo ambiental. A diferença é que na Bacia do Una pessoas pobres e racializadas não sofrem apenas por seus locais de moradia estarem mais expostos a danos ambientais ou pela falta de infraestrutura urbana. De fato, entre 1993 e 2004, houve um investimento significativo de trabalho e recursos (cerca de 312 milhões de dólares financiados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento) em urbanização e em soluções contra inundações urbanas com o Projeto Una. Esse exemplo mostra que essas populações podem se tornar mais vulneráveis com a implementação de políticas públicas urbanas, ou melhor, devido ao modo como essas políticas são executadas.
A experiência da Bacia do Una demonstra que, talvez, a solução não esteja em mais políticas públicas ou, pelo menos, em grandes projetos, investimentos e técnicas empregadas. Também já se sabe que importar projetos de outras regiões do Brasil e do mundo para cidades amazônicas sem considerar as características climáticas, hidrológicas e geomorfológicas do lugar tende a não produzir os resultados esperados. O que precisa ser considerado, além de tudo o que já foi dito, é o ponto de vista das pessoas que terão as suas vidas transformadas por qualquer ação do Estado sobre seus lugares de moradia e de pertencimento. Pois o racismo ambiental não dever ser visto apenas como o efeito de intervenções que deram errado. O racismo e o preconceito de classe norteiam essas políticas desde a sua concepção, visto que o modo como essas políticas são pensadas e implementadas está ligado às ideias dos gestores e planejadores sobre quem serão os beneficiários e sobre a necessidade de ouvi-los ao longo desse processo. Logo, políticas públicas sem a participação e o controle social desde a sua formulação tendem a reproduzir marginalização social e racismo ambiental, pois não incorporam as ideias, visões de mundo e práticas dos principais interessados.
O ciclo de violência contra os moradores da Bacia do Una tem continuidade nos discursos do poder público executivo – principalmente da prefeitura – sobre as causas das inundações na área. Quando o transbordamento dos canais é noticiado nos veículos de comunicação locais, é comum a emissão de notas pela gestão municipal afirmando que as inundações são causadas pelo acúmulo de lixo arremessado pela população local nos cursos d’água. Os discursos que responsabilizam os moradores locais pelas suas próprias condições de vida têm como base racismo e preconceito de classe, disseminando também significados e pontos de vista estigmatizantes sobre essas pessoas. São ideias do senso comum, sem qualquer referência às omissões do Poder Público e às limitações das políticas implementadas.
Na Bacia do Una há coletivos de moradores que têm se empenhado na circulação de suas ideias em diversas esferas, como a política, a jurídica e a acadêmica. Um desses coletivos é a Frente dos Moradores Prejudicados da Bacia do Una (FMBPU), formada por moradores que se conheceram, em 2008, quando fizeram denúncias ao Ministério Público do Estado do Pará sobre as inundações em seus respectivos bairros. Esses moradores tinham em comum a percepção de que a causa das inundações não era “natural” e estava ligada a irregularidades na execução do Projeto Una e na falta de manutenção das obras após concluídas. Essa hipótese – que se confirmou com o passar dos anos – foi aceita pela Promotoria de Meio Ambiente e utilizada na petição inicial do processo que deu origem a uma Ação Civil Pública (ACP) Ambiental contra a Prefeitura, o Governo do Estado e a Companhia de Saneamento do Pará, todos envolvidos na execução e manutenção das obras do Projeto Una. O processo (nº 0014371-32.2008.814.0301) obriga os órgãos em questão a realizarem a manutenção do sistema de macrodrenagem e concluir obras pendentes.
Boa parte das informações contidas neste escrito foram retiradas dos autos do processo, de diálogos com técnicos do projeto e com moradores de áreas diferentes da Bacia do Una. Esses dados também deram origem à produção de trabalhos acadêmicos e materiais que continuam a orientar as reinvindicações da FMPBU para garantia do direito à cidade, que, nesse caso, implica na ressignificação das relações com os cursos d’água e no acesso ao saneamento e à moradia digna. Enquanto isso, alguns moradores sonham com os igarapés do passado e projetam esse sonho no futuro. Esse seria um desafio de longo prazo, que exigiria a despoluição gradual dos canais e a maior integração entre os componentes do saneamento: abastecimento de água, manejo do lixo, drenagem urbana e esgotamento sanitário. Outros possuem uma visão mais pragmática e voltada para as questões urgentes do presente, como a necessidade de evitar inundações, garantindo a manutenção para o funcionamento do sistema de macrodrenagem, tal como previsto no Projeto Una. E nem por isso também deixam de sonhar.
José Alexandre de Jesus Costa é ativista político, membro fundador da Frente dos Moradores Prejudicados da Bacia do Una (FMPBU) e Pedro Paulo de Miranda Araújo Soares é professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), membro do CoLar (Laboratório de Antropologia da vida, ecologia e política) e colaborador da Frente dos Moradores Prejudicados da Bacia do Una (FMPBU).
Referências
ABELÉM, Aurileia. Urbanização: para que e para quem? Belém: NAEA/UFPA, 2018.
COSTA, J. A. J. ; SOARES, P. P. M. A. ; DIAS, V. M. . Regaining Paradise Lost: Global Investments, Mega-Projects, and Seeds of Local Resistance to Polluted Floods in Belém. The Nature of Cities, 12 dez. 2018.
SOARES, P. P. M. A.; CRUZ, S. H. R. A Ecologia Política das inundações urbanas na Bacia do Una em Belém (PA). Emancipação, v. 19, p. 1-15, 2019.
A publicação deste texto resulta de uma parceria entre Le Monde Diplomatique Brasil e Radar Saúde Favela – Fiocruz, projeto da Cooperação Social da Fiocruz que tem como um de seus objetivos a produção e a difusão de informações sobre a situação de saúde e suas determinações sociais em favelas e periferias dos centros urbanos. Esse artigo compõe um especial sobre Racismo Ambiental que se encontra disponível no site do Radar.