Reação cultural na Caxemira
Desde 1947, três guerras opuseram a Índia e o Paquistão na disputa pela Caxemira. A parte ocupada por Nova Déli vive num regime de exceção. Em 8 de julho, Burhan Muzaffar Wani, chefe do grupo separatista Hizbul Mujahideen, foi morto por militares.Raphaël Godechot
Uma galeria de arte contemporânea em uma cidade ocupada. Em 12 de janeiro de 2015, pela primeira vez na história, o estado de Jammu e Caxemira via nascer um local de cultura. Situada em Srinagar, a capital de verão1 dessa região ocupada pela Índia, a Gallerie One seria um lugar onde os artistas poderiam expor suas obras, e os alunos, observar e aprender. “Será enfim um espaço permanente para a arte, aqui, na Caxemira”, declarava então Syed Mujtaba Rizvi. Como mais de 80% dos moradores, esse jovem caxemirense é muçulmano. Ele estava na origem dessa iniciativa, surpreendente numa zona de conflito em que grupos rebeldes e soldados do Exército indiano se enfrentam há mais de sessenta anos. A arte tem dificuldade para existir diante dos cerca de 700 mil soldados instalados nesse vale do Himalaia, aos quais uma lei especial, votada em 1990, concede impunidade, assim como o direito de matar suspeitos e confiscar seus bens. Graças à sua perseverança, contudo, Rizvi reuniu a soma necessária para a criação do espaço. As autoridades locais encarregadas do turismo colocaram à sua disposição uma construção de 460 metros quadrados.
Em 23 de fevereiro de 2015, as mesmas autoridades decidiram fechar a Gallerie One, sem aviso prévio e recorrendo à força, chegando a destruir certas obras. “A ocupação também é cultural”, diz Rizvi. “A arte permite uma elevação social e cultural. É evidente que um regime opressivo não quer isso numa zona ocupada por ele.”
O papel da mídia
Hoje, o jovem tem um café em Srinagar. O espaço proporciona a artistas caxemirenses de todas as gerações a oportunidade de ler poesia, cantar e tocar música, com práticas tradicionais ou modernas, politicamente engajadas ou não. No vale, a arte caxemirense pode existir, contanto que não reivindique para si esse rótulo, constata amargamente Rizvi. Após a destruição da faculdade de arte de Srinagar durante as grandes inundações de 2014, “o departamento a reinstalou num lugar ainda mais exíguo que o anterior. Trata-se de uma velha construção situada no complexo universitário de Srinagar”.
Professor de História da Arte nessa universidade, Showkat Kathjoo explica que algumas formas de expressão são toleradas, enquanto outras não. Tradicionalmente, “o artesanato é muito importante para a economia da Caxemira. Mas, pela arte contemporânea, nada se faz”. E por uma boa razão. “Os artistas podem exprimir sua rebelião por meio de seu trabalho. Eles têm assim poucas chances de conseguir um lugar para expor.” Para o poder, o sufocamento da criação por aparelhos estatais e institucionais é estratégico: “Nós [os caxemirenses muçulmanos] somos sempre representados como pessoas violentas, que pegam em armas e matam gente”, constata Rizvi. “Os artistas, os escritores, os poetas são sempre relegados a segundo plano.”
Fato confirmado pelo especialista em Jammu e Caxemira, Dibyesh Anand, que dirige o Departamento de Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade de Westminster. “O conflito é utilizado para alimentar o nacionalismo indiano”, explica. “Quando alguém é morto na Caxemira, os meios de comunicação indianos transformam o acontecimento em um problema nacional. Dessa forma, eles desumanizam os caxemirenses, representando-os como violentos.”
Já a mídia ocidental permanece silenciosa, ou quase. “Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos e o Reino Unido não se opunham às reivindicações de independência dos caxemirenses em relação à Índia, porque esta era pró-União Soviética. Os Estados Unidos eram aliados do Paquistão, que os ajudava contra a União Soviética no Afeganistão, e apoiavam os rebeldes caxemirenses. No entanto, após o final da União Soviética, a Índia tornou-se um mercado potencial para o Ocidente.” A partir de 1998, a França se colocou como parceira privilegiada de Nova Déli, sobretudo no campo do armamento aeronáutico. “A Caxemira ocupa cada vez menos espaço na mídia ocidental”, conclui Anand. “A ideia de que a Índia é a maior democracia do mundo convém à comunidade internacional, que prefere ignorar o que acontece ali.”
Desde o início da insurreição armada em Jammu e Caxemira, nos anos 1990 (entre 5 mil e 10 mil recrutas estimados em 1996),2 os meios de comunicação indianos têm liberdade para representar os caxemirenses da forma que lhes convém. “Os apoios [dos caxemirenses] aos talibãs ou, mais recentemente, à Organização do Estado Islâmico são priorizados, mesmo que eles se reduzam a alguns grafites – por exemplo, ‘Welcome talibans’ – ou ainda a quatro indivíduos mascarados agitando uma bandeira preta numa manifestação que conta com milhares de pessoas. A meu ver, esses grupos não existem na Caxemira indiana, mesmo que haja outras forças islâmicas”, garante o professor.
Entre os principais grupos rebeldes, encontramos a organização islâmica Hizbul Mujahideen, que deseja se aproximar do Paquistão, assim como a Frente de Libertação de Jammu e Caxemira (Jammu and Kashmir Liberation Front, JKLF), leiga, que milita pela independência total.3 Em 2015, o Exército calculava o número de partidários da independência ou da ligação ao Paquistão em uma centena, contando todos os grupos.4 Segundo Anand, os caxemirenses se dividem em relação ao problema, mas a maioria quer a Azadi (a liberdade). Em razão disso, é muito comum que eles apoiem aqueles que enfrentam a Índia. Em abril de 2016, quando a equipe de críquete das Antilhas (Índias Ocidentais) venceu a Índia, alguns caxemirenses manifestaram sua alegria nas ruas de Srinagar, o que deu lugar a agressões e prisões. De maneira mais dramática, em julho, a morte do chefe da Hizbul Mujahideen, Burhan Muzaffar Wani, de 22 anos, abatido pelo Exército, deu lugar a manifestações maciças, fortemente reprimidas: pelo menos cinquenta civis foram mortos; houve 3 mil feridos; os jornais foram proibidos e as redes sociais, suspensas.
Para o Partido do Povo Indiano (Bharatiya Janata Party, BJP), a legenda nacionalista do primeiro-ministro Narendra Modi, “a Caxemira é um meio de amordaçar a oposição na Índia”, explica Anand. “Todos aqueles que se aventuram a falar das violências cometidas pelos militares indianos são rotulados de ‘antinacionais’, e seu discurso progressista é automaticamente desacreditado. A direita nacionalista é a norma hoje. Não há nenhum muçulmano ou cristão eleito no Parlamento” – ainda que a Índia conte oficialmente 14,2% de muçulmanos.
Fahad Shah, jornalista nativo do vale, criou em junho de 2001 o The Kashmir Walla, primeiro jornal on-line de Jammu e Caxemira. Ele o concebe como uma outra voz diante dos poderosos meios de comunicação indianos, nos quais “é extremamente difícil cobrir corretamente o conflito. Temas são censurados; apenas alguns aspectos são mostrados. O Estado é glorificado o tempo todo”. Os acontecimentos de julho forneceram uma nova demonstração disso. Já em abril de 2015, o governo indiano tinha suspendido a difusão da Al Jazeera English durante cinco dias porque a rede havia mostrado um mapa da Caxemira onde a zona controlada pelo Paquistão não estava nitidamente separada do território ocupado pela Índia.5 Shah acrescenta que “a internet foi uma verdadeira revolução na Caxemira”, ainda que com frequência a web seja vítima de censura no vale.6
Ele admite que seu jornal atinge em especial jovens anglófonos do vale e leitores na Índia ou no estrangeiro. Mas, para ele, continua sendo uma muralha diante da desinformação: “A mídia tradicional criou mitos sobre a Caxemira, e o jornalismo digital, assim como as redes sociais, pode colocá-los por terra. A internet tornou-se uma sentinela em relação a tudo aquilo que é publicado sobre o conflito. Os meios de comunicação não podem mais dizer o que querem sem que haja reações”.
No entanto, as dificuldades também vêm da própria sociedade caxemirense. Em 2013, Shah sofreu um violento linchamento nas redes sociais após ter defendido o Pragash, um grupo de rock composto exclusivamente por mulheres do vale. Enquanto o grande mufti (a autoridade religiosa da região) emitiu uma fátua contra elas declarando que a música era anti-islâmica, o jornalista lembrou a tradição musical feminina sufi do vale. Os ataques que se seguiram não o desencorajaram: “Temos de aprender a criticar nossa sociedade. É o papel dos meios de comunicação. Quando falamos dessas mulheres que faziam música, me ligaram várias vezes pedindo que eu interrompesse minhas atividades. Uma vez, na sequência de um artigo sobre a liberdade de expressão na Caxemira, um de nossos jornalistas foi ameaçado por telefone: ‘Sua família está na Caxemira, pare de trabalhar com Fahad’”. Shah preferiu não se estender sobre a origem dessas intimidações. “Se nos ameaçam, é porque nosso trabalho atinge as pessoas. Está tudo bem, de certa maneira”, conclui. The Kashmir Walla continua, mas as garotas do Pragash interromperam suas atividades musicais.7
Para o jornalista, as coisas poderiam melhorar se o conflito encontrasse um eco internacional. “A situação da Caxemira é semelhante à da Palestina. É preciso desnacionalizarmos o tema. Nada poderá mudar aqui enquanto o mundo não se interessar pelo assunto, enquanto personalidades importantes não falarem dele. É fundamental que as pessoas do mundo inteiro possam, a partir de agora, ler coisas sobre a Caxemira, ver a arte ou ouvir a música que vem daqui.” A fim de normalizar a ocupação, o governo indiano procura, de sua parte, demonstrar que a Caxemira é parcela integrante do país. Os jornalistas estrangeiros, aliás, não têm necessidade de um visto especial para ir à região. No entanto, quando a linha editorial é claramente crítica em relação à política do Estado indiano, isso acaba tendo consequências. Em 2011, David Barsamian, jornalista norte-americano conhecido por denunciar violações de direitos humanos cometidas pelo Exército na Caxemira, foi proibido de entrar no país.8
Outras iniciativas vêm se juntar às de Shah e Rizvi. A música “I protest (Remembrance)” [Eu protesto (Lembrança)], de MC Kash – nome que vem de Kashmir [Caxemira] –, o primeiro rapper do vale, foi estreitamente associada às manifestações de 2010. Desencadeadas pelo assassinato de três civis caxemirenses, elas foram violentamente reprimidas: 112 manifestantes acabaram mortos.9 Na canção, que ganhou força graças à internet, Roushan Illahi (seu verdadeiro nome) qualifica a ocupação de “regime assassino”. Para ele, “a arte tradicional caxemirense não segue mais a evolução da sociedade e não fala dos problemas que atingem nossa geração. O sofrimento das pessoas, os assassinatos e os estupros não são abordados por ela. É por isso que nós nos abrimos para outras formas de arte. A emergência do rap, do grafite, da cultura hip-hop é um exemplo disso”. MC Kash afirma que seu estúdio recebeu várias vezes a visita da polícia e que seu telefone está grampeado.
Opor-se à ocupação tornou-se norma
No entanto, segundo Khurram Parvez, militante da associação de defesa dos direitos humanos Jammu Kashmir Coalition of Civil Society [Coalizão da Sociedade Civil de Jammu e Caxemira], uma nova tendência emerge no seio da sociedade. Da mesma maneira que a geração precedente pegou em armas nos anos 1990, a de hoje se posiciona contra a Índia por meio da escrita e da arte. Na época, os caxemirenses já não queriam a ocupação. Mas, por causa “das violências e dos dogmas que a ela estavam associados, a resistência causava medo”, explica Parvez. “Agora, a ocupação não mais é aceita. Recusá-la tornou-se a norma.” É por isso que um estilo musical contestador como o rap explodiu no vale: “Hoje existem centenas de rappers”, garante MC Kash. Quanto às plataformas on-line que denunciam o conflito, Shah assegura que elas estão se multiplicando.
Essa nova geração se reúne em torno de projetos. Prova disso é o documentário Bring Him Back [Traga-o de volta]. Lançado em 2015, ele conta a luta da mãe de Maqbool Bhat, figura emblemática da JKLF, que está tentando repatriar os restos mortais de seu filho, enforcado na prisão de Tihar, na Índia. O filme foi realizado por Shah; o cartaz, por Rizvi; e MC Kash doou uma de suas canções dedicadas ao militante. Mais que uma mera colaboração, esse filme mostrou a unidade ideológica dessa geração, que mistura a arte, a cultura e a informação para combater a ocupação. Em 2015, foi lançada a primeira história em quadrinhos do vale: Munnu: A Boy from Kashmir [Munnu: um garoto da Caxemira]. Seu autor, Malik Sajad, amigo de Rizvi, reconta ali sua infância tumultuada, o tempo todo às voltas com o conflito.
Desde 2010, a resistência digital e cultural vem experimentando uma verdadeira efervescência, porque oferece uma via de escape à repressão física violenta e ao controle espacial, onipresentes. Em Les Damnés de la Terre [Os condenados da Terra] (1961), Frantz Fanon colocava a questão: “A luta de libertação é ou não é um fenômeno cultural?”. A força das pressões estatais e institucionais que visam conter todas essas novas iniciativas dá uma ideia da resposta.