Reality Show: mais real do que se gostaria
Enquanto estudava a exploração no mundo do trabalho, a socióloga Silvia Viana enxergou aquilo que estava pesquisando nos reality shows. O tema virou seu doutorado e foi lançado o livro Rituais de sofrimento, no qual ela revela que a sociedade tem mais semelhanças com o ambiente cruel e brutal dos BBBs do que se imaginaLuís Brasilino
DIPLOMATIQUE– Seu livro traça uma relação entre as transformações no mercado de trabalho nas últimas décadas e os reality shows. Como o fim do pleno emprego dos anos 1970 influencia o formato dos programas?
SILVIA VIANA – O capitalismo flexível foi parido com um mito e uma ameaça. Mito: a revolução molecular-digital aumentou a produtividade das empresas, que passaram a dispensar força de trabalho. A exclusão tornou-se o pesadelo, necessário e irreversível, de um exército de “inúteis para o mundo”. Mas, ainda segundo a lenda, a exclusão não é arbitrária: apenas o trabalho repetitivo e “material”, passível de substituição por máquinas, é descartável; aos trabalhadores dos setores criativo, informacional, comunicacional etc., há ainda um espaço bem estreitinho no panteão dos empregados. Cabe à fração supranumerária se reciclar para conseguir ser incluída; da outra é esperada a mesma atitude caso não queira ser eliminada. Ameaça: adapte-se ou…
Quanto ao mito, ainda há muita crítica ideológica por ser realizada, façamo-lo em parte e em linhas gerais. Em primeiro lugar, não se trata de pura mentira: a eliminação dos empregos foi real e brutal, o que está longe de significar que o trabalho foi eliminado; pelo contrário, as novas formas de organização desorganizada do capitalismo abriram as portas para uma exploração literalmente desmedida por meio de expedientes tais como a terceirização, a informalidade, o trabalho temporário etc. O trabalho perdeu sua mediação pública, mas não sua utilidade para a criação, e apropriação, de valor. Por sinal, em sua privatização, ele pôde ser ampliado e intensificado sem que isso aparecesse como a afronta que é. Sendo assim, a exclusão é a imagem distorcida da deriva permanente e descontínua da força de trabalho completamente mobilizada. E a aparente dualidade do mundo do trabalho não é mais que a distribuição a conta-gotas daquilo que se converteu em mercadoria de luxo: a carteira assinada – e nisso não se diferenciam os operadores da máquina computador dos da máquina de costura (não apenas nisso, mas deixemos a discussão a respeito dessa distinção para outra ocasião).
Contudo, a crítica ideológica clássica não basta. Mesmo que saibamos que, infelizmente, não existe um “lado de fora” do capitalismo, permanecemos agindo como se vivêssemos à beira do abismo. O medo da exclusão paira como um fantasma, incapaz de ceder mesmo às variações no índice de desemprego. Isso porque, mais que um discurso, a eliminação tornou-se um ritual ao qual estamos permanentemente submetidos; esse ritual tem a forma da seleção, seja ela de “fora para dentro”, nos incontáveis processos seletivos pelos quais passamos ao longo da vida, seja de “dentro para fora”, na triagem em que se converteu o próprio trabalho sob incessante avaliação. Não é à toa que os reality shows têm a forma preferencial da seleção – e, quando não a têm, ela está pressuposta. O “paredão” é a ritualização desse descarte “necessário e inelutável”, contra o qual é necessário se mobilizar, aceitar quaisquer provas, lutar e, principalmente, participar sempre. Mesmo que os participantes tenham plena consciência de que se trata de um programa de TV, cuja jornada tem data para acabar, eles agem como se aquilo fosse, de fato, o jogo de aniquilação que a propaganda alardeia; eles agem como se estivessem diante do batalhão de fuzilamento. Eles são os temporários da fama, agindo compulsivamente para não ser demitidos por déficit de empreendedorismo entretenedor.
DIPLOMATIQUE– Por que os reality shows seriam inviáveis até o fim da década de 1970?
SILVIA VIANA– Por causa da ameaça por trás do mito. Enquanto, sob o fordismo, o horizonte de expectativas se limitava à já esquálida promessa de conforto e segurança, o mundo contemporâneo não promete absolutamente nada: mesmo que você seja “flexível”, supere “desafios”, vença suas “batalhas”, ainda assim deve continuar a fazê-lo ou perecerá. É como se, em outros tempos, a voz do mundo afirmasse: “O que está dado é bom e é bom porque está dado”, e agora não deixasse de repetir: “O mundo é cruel, adapte-se a isso e busque sobreviver”. Em ambos os casos, qualquer forma de transcendência social está fora de questão; contudo, se antes o bem-estar era a ideologia que recolocava o mundo tal como é – lembrando sempre que o welfare não chegou a se realizar completamente aqui entre nós, periferia, não obstante, vivíamos sob a mesma promessa –, agora é a truculência o caminho para sua ratificação. Por isso os reality shows são próprios ao nosso mundo, eles acabaram com o happy ending, pois não há fim, eles são brutalidade em forma de programa, são mal-estar enlatado.
DIPLOMATIQUE– Você conta que a ideia do livro surgiu num período de pesquisa sobre trabalho flexível. Como foi esse processo? Os rituais de sofrimento dos reality shows também são reproduzidos nos locais de trabalho? Você pode dar exemplos?
SILVIA VIANA– Enquanto a brutalidade dos reality shows é escancarada e ninguém parece se importar com isso (ainda outro dia, enquanto zapeava a TV, escutei parte de uma chamada do A fazenda, na qual o narrador dizia: “O cerco fecha, o medo aumenta…”), o sofrimento que se desenrola no mundo do trabalho não tem visibilidade em razão de sua privatização. Apenas quando esse mal nosso de cada dia toma proporções de “escândalo” podemos entrever o que se passa a portas fechadas, como no caso dos suicídios de trabalhadores da France Telecom. Tais casos não são a exceção, mas a regra do trabalho no capitalismo flexível, como apontam inúmeros estudos da sociologia do trabalho a respeito dos mais diversos setores produtivos. As avaliações nas empresas, por exemplo, não passam de delação premiada; processos seletivos se tornaram gincanas, das mais às menos humilhantes, todas elas despropositadas; o assédio moral entre trabalhadores se tornou problema estrutural; isso para não falar nas tantas gambiarras jurídicas a fim de burlar as leis trabalhistas… E a criatividade dos gestores para arrancar até a última gota de mais-valia e obediência é, de fato, impressionante: um amigo que trabalhou no telemarketing me contou que tinha seus horários de ir ao banheiro controlados pelo computador. Disse-me também que, certo dia, um de seus colegas não conseguiu “gerenciar” seu tempo biológico e urinou na estação de trabalho, sendo prontamente ridicularizado pelos demais. Há alguns meses fui a um dos principais rituais corporativos: uma palestra motivacional. O cerimonial foi oferecido por uma empresa que fabrica e comercializa cursos de inglês, e era voltado para seus vendedores. Após muitos ritos nonsense, aos quais as pessoas respondiam eufórica e mecanicamente, foi anunciada, pela diretora executiva, a grande novidade gerencial para o semestre: os trabalhadores que mais cursos vendessem ganhariam uma viagem para o Nordeste; as despesas, contudo, ficariam por conta dos “perdedores”. Um dos relatos mais impressionantes que eu li foi de Cristophe Dejours, que contou de um processo seletivo no qual os aspirantes à vaga receberam cada qual um filhote de gato para cuidar por alguns dias. Passado esse tempo, receberam a ordem de matar os gatos a fim de mostrar o comprometimento com o almejado emprego. E paremos por aqui, pois a coisa vai longe e é nauseante.
Após ler a respeito, fazer algumas entrevistas, escutar incontáveis casos como esses e até vivenciar coisas do gênero, não foi difícil enxergar aquilo que eu estava pesquisando quando assisti, pela primeira vez, a um episódio do Big Brother Brasil (BBB). Era o episódio do “quarto branco”, no qual três participantes passaram por uma sessão martirizante de privação de sentidos. Quando findo o suplício, com a eliminação sumária de um rapaz que entrou em colapso nervoso, o apresentador voltou-se para os demais participantes e lhes atirou uma pergunta retórica: “Vocês acham que o BBBé colônia de férias?”. “Não”, responderam todos em uníssono. Não, é trabalho. Trabalho flexível, explorado e degradado.
DIPLOMATIQUE– Seu livro afirma que o aparato de seleção (e eliminação) é o show, não os participantes. Como isso acontece?
SILVIA VIANA– Isso é algo bastante fácil de constatar: após o término das diversas temporadas dos inúmeros programas, ninguém se recorda dos nomes dos participantes. A própria indústria não nos deixa esquecer o esquecimento daqueles personagens aos quais, ao longo de poucos meses, nos apegamos com suposto ardor. O aspecto descartável dessa nova categoria de fama não é apenas reconhecido publicamente, mas também alardeado pelo aparato e acaba por se tornar objeto dileto de escárnio.
O fato de as estrelas da indústria cultural serem produtos cuja obsolescência é pré-programada não é novidade: nos quadros de [Andy] Warhol, a mesma pincelada apresenta Marilyn Monroe e latas de sopa. A novidade está no fato de as latas serem mostradas já enferrujadas. Quando um programa apelida uma de suas dançarinas de “mulher-samambaia”, mais que nomear a nulidade da função, aponta para seu caráter perecível – o mesmo pode ser dito das demais mulheres-fruta: perecíveis e intercambiáveis, carregam na designação o fim da era da pseudoindividualidade que sustentava o estrelato. Mas, se a indústria cultural como um todo se tornou ainda mais cínica, os reality shows vão além e ritualizam o descarte, a cada rodada, em seus “paredões”. Como afirma o diretor do BBB: trata-se de um jogo de aniquilação, de “cortar cabeças”, no qual a queda é a nova estrela. Passados para segundo plano por aparecerem em sua equivalência, os trabalhadores dessa “novela da vida real” nada mais são que o combustível para uma máquina que nada produz senão a própria queima – essa, sim, arde, brilha, perdura e aparece como única protagonista.
DIPLOMATIQUE– O ambiente dos reality shows parece aproximar-se da distopia descrita no “Big Brother” de George Orwell mais pelo caráter totalitário das regras do que pela vigilância das câmeras em si. Qual é o sentido dessa arbitrariedade brutal?
SILVIA VIANA– De fato, o aparato de vigilância em si pouco significaria se não estivesse conformado por uma estrutura ideológica que aponta para o que deve ser objeto de observação. Se os reality shows não tivessem a forma fantasmática de “desafios”, assistir a eles seria um tédio, ou uma experiência estranha, como é assistir ao filme Sleep, de Andy Warhol. Por exemplo: no episódio do “quarto branco”, um rapaz foi impelido a uma sessão de tortura e ainda teve de levar dois participantes com ele. Quando questionado pelo apresentador a respeito do “pior do quarto branco”, afirmou que foi levar para lá seus companheiros. Ele foi, então, prontamente interrompido: “Mas isso é um fator externo ao quarto branco. Quero saber do pior na permanência no quarto branco”. A fantasia regula o que está “dentro” ou “fora” de questão, nesse caso, o sofrimento da provação é objeto de devassa, o sofrimento por fazer o outro sofrer é irrelevante e deve ser silenciado.
Por isso mesmo é necessário distinguirmos a distopia orwelliana do objeto com o qual nos ocupamos. Em 1984, a vigilância é, de fato, total; dela absolutamente nada deve escapar, em especial a dimensão afetiva dos personagens. Winston apenas se vê completamente assimilado quando, após a tortura à qual é submetido, passa a amar verdadeiramente o “Grande Irmão”; paradoxalmente, é nesse mesmo momento que ele pode dar-se ao luxo, sem medo de represálias, de ser relapso em seu trabalho de fabricação de mentiras. Ora, o amor pelo nosso Big Brotheré bem mais relativo. O próprio pai do diretor do programa, também ele figurão da emissora que fabrica o produto, afirmou se tratar de “meia hora de uma literatura de quinta categoria”. O nó de nossa dominação tem sentido oposto àquele de Orwell: não acreditamos de fato, mas permanecemos fazendo, e, quanto mais participamos, mais irrelevantes se tornam nossas crenças – e, o pior, nossas críticas.
Um dos principais mecanismos para a produção de tal distanciamento é a arbitrariedade das regras – na verdade, não se trata de regras, mas de decretos estabelecidos segundo as circunstâncias particulares, e não de acordo com princípios. Se há uma obra que captura com precisão o funcionamento dessa estrutura ensaboada é a de Kafka, não de Orwell – em 1984, as leis, ainda que tácitas, são fixas, conhecidas e inculcadas. Em O processo, as regras são “tão diferentes, tão múltiplas e sobretudo tão secretas que, de modo nenhum, são conhecidas fora de certas famílias”. No Big Brother, os aprisionados devem ficar em pé, segurando uma corda por horas a fio, sem saber da finalidade da prova; um participante deve assumir o papel de sabotador, sem saber o que sabotar e qual castigo receberá caso não o faça; metade de um grupo é desalojada, da casa para o jardim, porque o “povo assim decidiu”; um terceiro deve se vestir de galinha e cacarejar quando um sinal toca, ou alguma coisa ruim acontecerá; alguém deve deixar a casa para ir à Sapucaí por ter atendido a um telefonema, enquanto outro é eliminado, sem votação popular, por não ter resistido à tortura; e todos devem “jogar”, sabe-se lá fazendo o quê, ou… Por serem mandamentos obscuros, da ordem do imponderável, as regras devem ser cumpridas com o maior rigor. E, quanto mais nebuloso seu sentido, maior a compulsão em seu cumprimento.
DIPLOMATIQUE– Os defensores da baixaria na televisão costumam alegar que a programação atende aos anseios do público. Em seu livro, você descreve como os reality shows são também uma expressão da sociedade atual. Afinal, a balança da perversão pesa mais do lado dos produtores ou dos espectadores?
SILVIA VIANA – Acho que já passamos da hora de abandonar as leituras moralistas a respeito do que é produzido pela indústria cultural, ou a crítica não apenas será conservadora como permanecerá inócua. As infindas polêmicas a respeito da baixa qualidade estética dos programas e de seu desprezo completo por qualquer coisa que seja minimamente digna estão pressupostas pelo show antes mesmo que possamos esboçar o primeiro grito indignado de “baixaria!”. Uma forma mais sofisticada de rejeição moralista dos reality shows é a alegação de que tanto aqueles que participam quanto aqueles que os acompanham o fazem em razão de alguma forma de perversão: sadismo, masoquismo, exibicionismo, voyeurismo… Desse modo, a crítica perde de vista a dimensão propriamente social do fenômeno; perde de vista uma forma de dominação que é estrutural – além, é claro, de recolocar o já antigo rebaixamento da “massa” em contraposição à “elite cultural”.
Ao contrário do que os próprios programas se esmeram em provar, os participantes são pessoas comuns e, mais importante, agem da forma que agem (machucando-se uns aos outros e se martirizando a si mesmos) como se cumprissem funções ordinárias. A isso Hannah Arendt chamou “banalidade do mal”: eles não praticam o mal levados por motivações políticas, religiosas, estéticas ou por prazer; pelo contrário, as provas, absurdas e desagradáveis, assim são descritas por eles e assim são vivenciadas, como a profusão de lágrimas sublinha a cada episódio. O mal é encarado como um mal necessário ou, como afirmou certa vez um ex-participante: ser filha da puta é parte do contrato; deve-se cumpri-lo. O mal é assimilado como parte de um trabalho, uma função como outra qualquer, cujos efeitos colaterais – em especial a dor de fazer mal aos outros – são minimizados mediante a própria justificativa: “Só estou cumprindo minha tarefa”. Nos patamares acima do chão de fábrica, a lógica não é tão diferente, apesar de a justificativa ser, a cada degrau, mais indecente – o apresentador de A fazenda disse, em entrevista a um programa de sua própria emissora, que chorava todos os dias em casa, quando findo seu expediente. Já as diversas empresas realizadoras de reality shows têm por finalidade única a geração de lucro − tudo mais é meio para sua realização. Esse seria, talvez, o único nível em que se pode dizer que há perversão pura: como um sistema que busca aniquilar toda a materialidade, e por ela tem total indiferença, tendo em vista tão somente sua autorrealização, o capitalismo é perverso.
DIPLOMATIQUE– Seu livro relata que os reality shows constroem um clima de ausência completa de solidariedade, em que os participantes são empreendedores da aniquilação uns dos outros e promovem uma inversão de valores, na qual o bem se converte em tentação e a covardia vira coragem. Qual é o papel político-ideológico desse processo de naturalização e valorização do terror?
SILVIA VIANA– Um dos meus primeiros estranhamentos com o Big Brother Brasil foi o modo como o apresentador se refere aos enclausurados: “meus heróis”. E a cada semana um “perdedor” é congratulado por seus familiares e pelo apresentador com a frase “você já é um vencedor por ter chegado até aqui”. Não obstante toda a discurseira belicosa a respeito da “batalha”, da sobrevivência do mais forte, da necessidade de “vencer a qualquer custo” etc., todos são vencedores? Essas não são palavras de conforto ou condescendência, mas o reconhecimento social do sacrifício ao qual, de fato, eles se submetem. Contudo, de que sacrifício se trata? Os participantes não apenas suportam o isolamento, a convivência forçada, as humilhações e torturas, como devem assumir a horrível tarefa de levar aqueles que se encontram na mesma situação ao cadafalso, através do voto. O maior sacrifício é aquele de cometer com as próprias mãos o trabalho sujo para o qual foram contratados: a seleção. Para que a tarefa seja cumprida, renuncia-se ao próprio juízo mediante inúmeras modalidades de defesa psíquicas que garantem a conquista da indiferença; um processo verdadeiramente doloroso. Ao mesmo tempo, quando a injustiça social se converte em sistema, ser solidário se torna, como você bem colocou, uma tentação à qual se deve resistir, pois é sinal de fraqueza ou burrice. Em America’s Next Top Model, uma moça foi eliminada por ter acudido uma colega que estava em choque ao ser alçada por um guindaste em uma sessão de fotos: ela se distraiu de sua tarefa, carne fraca, demitida. Essa inversão de valores só é possível com uma metamorfose anterior: quando o mal é assimilado como uma missão ou um trabalho. Não se trata, portanto, de coragem, pois a ação é necessariamente heterônoma, fruto da mais estrita obediência. Apesar do risco psíquico contra o qual os colaboradores se defendem mediante a virilidade, trata-se de uma fuga do verdadeiro risco, a recusa. Nossos heróis são os mártires da impotência.
O ganho político para a classe dominante é incalculável: cria-se uma sociedade de kapos, na qual vítima e violentador se confundem entre os explorados, e os donos da bola não precisam sujar as mãos. No programa O aprendiz isso apareceu de forma cristalina quando um candidato à vaga de executivo questionou o próprio processo seletivo – no qual a transparência de baixo para cima é total e as trevas de cima para baixo, absolutas – e foi, então, repreendido com as seguintes palavras: “O único inimigo que vocês têm aqui dentro são vocês entre si. Seu oponente está sentado ao seu lado. Se proteger da gente? Isso não tem cabimento!”. De-mi-ti-do.
DIPLOMATIQUE– Em diversas ocasiões seu livro faz referências ao nazismo e traz relatos dos campos de concentração. Os reality shows são uma expressão de fascismo? Os programas indicam que a sociedade caminha nessa direção?
SILVIA VIANA– Do mesmo modo que devemos tomar cuidado com o termo “totalitarismo” – que muito abarca e pouco explica – é preciso ter muita clareza ao fazer tal analogia ou corremos o risco de o tiro sair pela culatra. Um dos livros de autoajuda para-a-vida-profissional, que eu cito em meu estudo, oferece uma espécie de “lição de vida” de uma sobrevivente de Auschwitz para aqueles que buscam “sobreviver” no mercado de trabalho em nossos dias. A ideia de que habitamos um mundo de escassez, no qual a vida deve se resumir à luta pela sobrevivência, é a medula de nossa ideologia. Há, contudo, algumas características comuns que, guardadas as devidas mediações, podem iluminar a pergunta a respeito da reprodução bizarra de ambos os mundos, a começar pela bizarrice em si. Tratemos aqui de duas entre elas.
Em primeiro lugar, o sistema nazista forjou uma nova forma de ideologia que dispensou a justificação racional da dominação. Ao contrário do que se costuma pensar, não era o ideário disparatado de seus líderes – capaz de abarcar os mais variados paradoxos, tais como a exaltação da indústria e a mitologia do retorno ao campo – a fonte da obediência, mas a forma ritual em que se converteu a organização social. Não são poucos os relatos que mostram, não sem perplexidade, que muitos dos maiores “fanáticos” por Hitler abandonaram suas convicções febris, sem a menor cerimônia, assim que o sistema entrou em colapso. No nazismo, o comando passou a existir sem espírito, como injunção pura e incompreendida. É nesse mesmo sentido que se pode assistir às provas promovidas pelos reality shows: em si mesmas, elas não oferecem sentido algum, não há sequer uma correlação entre elas e os prêmios e castigos distribuídos; do mesmo modo, não obstante o mistério completo dos critérios para a eliminação, todos passam seus dias e noites “batalhando” para sobreviver. Primo Levi mostra como, nos campos de concentração, as chamadas intermináveis, a arrumação impecável das camas, o corte forçado dos cabelos etc. forjavam a obediência sem que nenhuma propaganda fosse necessária. Entre os inúmeros rituais que colocavam as pernas em marcha, mesmo que já não houvesse música, o central era a seleção: eis um segundo ponto no qual a analogia com nosso mundo é possível e perturbadora. Isso porque, em ambos os casos, lidamos com uma seleção negativa, que não é regida pelo mérito ou utilidade daquele que está no fio da navalha, mas por uma necessidade prévia, inelutável e fantasmática de eliminação.
DIPLOMATIQUE– Você diz que os reality shows são incompatíveis com um Estado democrático de direito, uma vez que seus participantes são levados a abrir mão da própria dignidade. É preciso regular a atuação da mídia para equalizar essa questão ou uma “civilização” desses programas requer transformações muito mais profundas?
SILVIA VIANA– É impossível “civilizar” um programa de TV ou um sistema produtivo cuja lógica de funcionamento é o descarte. A regulação de um ou de outro não alteraria em nada a razão de sua existência, que é ela mesma. O trabalho abstrato, explorado e subordinado, sem o qual o capitalismo não existe e do qual, no entanto, quer se desvencilhar, não desaparecerá caso escondamos o chicote. Tudo isso pode parecer novo para uma memória social brutalizada pelo terror, mas o capitalismo nunca esteve tão blindado de críticas, e o mais impressionante é que a resignação ocorre precisamente em meio a uma de suas maiores crises, quando seu caráter destruidor mais uma vez leva a cabo uma catástrofe econômica no coração da dita “civilização” – pois, em suas margens, a exceção em nenhum momento deixou de ser regra, o que já faz a ideia de regulação parecer um tanto ridícula. A modéstia “realista” da oposição, que se limita ao esforço da “inclusão no mercado” – seja de trabalho, seja de consumo, ambos mais lenha para a queima ritual –, faz parecer ainda mais impossível a tarefa de eliminarmos o sistema que nos quer eliminar. Hercúlea é a produção redundante e violentadora a que nos submetemos todos os dias, diante da qual a tarefa da transformação (não mais profunda, mas simplesmente verdadeira) já não parece tão imensa.
Luís Brasilino é Jornalista. Editor do Le Monde Diplomatique Brasil.