Reconstrução da memória
“Pó de parede”, da gaúcha Carol Bensimon, é formado por três histórias que têm como base a casa (no sentido físico, familiar e metafórico) e a memóriaRenata Miloni
Está feito: agora o livro lhe é pessoal demais, leitor. Você se sentiria traído se tentasse opinar sobre o que leu sem misturar sua vida com aquele pequeno e precioso pedaço de ficção. Você não está preso, só é incapaz de pensar no livro fora da memória que ele recuperou. E este é um lado bom de se esquecer o que acontece: quando se lembra, pode ser por um livro e aquelas palavras estarão ali pelo resto de sua definição do sempre. É algo assim que um leitor pode sentir ao se identificar com o que a gaúcha Carol Bensimon escreveu em seu livro de estréia Pó de parede, lançado este ano pela Não Editora. São três contos ? “A caixa”, “Falta céu” e “Capitão Capivara” ? e suas histórias têm como base a casa (no sentido físico, familiar e metafórico) e a memória (a que já foi criada e a que vai ficar logo depois do que os personagens presenciarem na página seguinte, esta eles ainda têm a chance de escolher):
“Nós sempre sentimos o momento exato em que a memória está sendo criada.” (página 49)
A autora trabalhou com as definições que dei acima nas três histórias, mas é em “A caixa” que estão mais presentes e nítidas. O conto é divido em anos: dois deles, 2006 e 2007, são narrados em terceira pessoa. No começo, em 2007, Alice e seu amigo Tomás resolvem visitar a casa de uma amiga um ano depois de a família já não morar mais lá, mesmo em total abandono. Vão de encontro a um dos principais lugares onde viveram a infância. Para entendermos a importância dessa época na construção dos personagens, a história volta para 1991, agora narrada por Alice. É por ela que concebemos a imagem da tão diferente casa em que morava com seus pais. A mais estranha do bairro, todos especulando que tipo de esquisitice acontecia lá dentro. A casa, conhecida como Caixa, foi projetada por um inovador arquiteto que, um pouco adiante, conta Alice (uns anos mais velha), veio a falecer. A partir daí, mesmo para as pessoas distantes e desconfiadas, a Caixa começou a causar um certo encanto em quem por ela passava e também naqueles que tinham maior contato com a família (um pouco diferente de antes, quando Alice era julgada pela imagem de sua casa que projetavam nela). Agora a Caixa tinha como dono seu próprio criador.
“Digo isso dentro de um raciocínio simplista e me atendo à durabilidade dos materiais. Comparo portanto com papel ou com tinta ou com tecido, e penso: feliz quem morre arquiteto.” (página 46)
Alice passa a entender com isso que a morte é instantânea criadora de memória e que, de certa forma, as pessoas vivem mais delas do que do agora e não há nada de errado nisso. Por ser Alice a narrar metade do conto, o leitor tem maior proximidade com seu modo de analisar as pessoas e o que fazer quando se está perto delas mas dentro de si. Ela mostra os detalhes de sua família sob a perspectiva de uma criança entrando na adolescência (que é a memória que ajudará a construir quem ela será): a fiel descrição dos costumes de sua mãe, a rua que só tem fim tarde da noite, o afeto pelo amigo Tomás. Tudo o que fica mais verdadeiro na memória do que nas atitudes do futuro, cada detalhe apresentado de forma honesta. A autora encontrou um ótimo equilíbrio (do qual ela já escreveu sobre) entre ação, descrição e pensamento, dominando uma linguagem autêntica e consciente de si.
A Caixa continua a ser o centro das atenções de todos enquanto Alice reconhece uma realidade mais normal na casa de sua amiga Laura Larsen, o mesmo lugar para onde, anos depois, ela voltaria com Tomás. Para mim, a verdadeira caixa de Alice foi a casa dos Larsen. Na de sua família, ela tinha de lidar com toda a ficção criada ao redor da arquitetura e do que tamanha diferença havia como conseqüência. Tudo dependia da interpretação dos outros, da memória alheia. A casa era orgulho ao mesmo tempo em que Alice tentava não se esquecer de que toda aquela estrutura era normal existir em sua rua, assim como onde morava sua amiga. Mas ela só compreendeu sem interferência do ambiente e dos olhares depois de passar um tempo fora do país.
“[…] e que vida difícil era essa que nos fazia entender as coisas só quando saíamos do lugar.” (página 58)
Tom infantil nos momentos exatos
Ainda com o foco em como podemos observar o mundo na transição da infância para a adolescência, o livro continua com o conto “Falta céu”, que se passa numa pequena e quieta, quase vazia, cidade ? o que não impedia de seus moradores se aterem ao espaço e chances que lhes eram apresentados, mas de onde “quem consegue sair, vira herói e assunto”. Lá moravam Titi e Lina, duas irmãs que, nas férias, passavam o tempo suportando o calor. Em um desses dias quentes, Titi, a mais nova, conseguiu convencer sua irmã a irem ao rio para se refrescar. Chegaram tranqüilas por não encontrarem os garotos que ali sempre ficavam. Dentro d’água, Lina encontrou um pouco de silêncio e pensou em João, um desses garotos, o único que se fazia importar. Aproveitou esse momento até que Titi contasse o que tinha acabado de ver. Foram correndo em direção ao local e viram uma máquina arrancar árvores e deixar livre um grande terreno. Meses depois, se tornaria o que nenhum morador imaginava, nem a dona da venda, que sonhava tanto em ver um parque de diversão na cidade.
“A descrição toda era mesmo uma beleza, e nela se perdia até esquecer das contas de somar, o rosto reencontrando algumas marcas de expressão que o tempo tinha posto em desuso.” (página 68)
Neste conto, Bensimon controla muito bem o tom infantil a ser usado nos momentos exatos, pois as personagens o exigem. Em “A Caixa”, também consegue isso, mas não me pareceu que houve uma separação do narrador e Alice nas partes contadas por cada um. Deu-me a impressão de ser a personagem narrando em terceira pessoa apenas. Talvez a intenção tenha sido esta ou algo semelhante. No “Falta céu”, a autora tem mais personagens participando de fato da trama e nenhum sobra importância ou assume demais o papel secundário. Todos estão muito bem definidos, o que não vemos com freqüência, especialmente em livros de estréia.
Enquanto as irmãs observavam a máquina, João apareceu e os três ficaram por um tempo até avistarem Alzira, empregada do rapaz, com o chefe da suposta obra que ali seria feita. Flagraram juntos duas novidades que poderiam agitar um tanto a cidade, mas Lina pediu a João que não contasse aos seus pais sobre Alzira. Deixando, então, as árvores caídas serem o assunto geral dos moradores, quanto o caso da moça os três fariam questão de comentar por todo mundo (a escolha da memória). Entre a volta de um antigo morador ? agora rico, herói e ligado ao projeto que mudaria aquela rotina coletiva ? e a continuação da obra, todos já começavam a entender do que se tratava e como até ali fazia sentido terem tal construção.
Lina, assim como Alice e a personagem do conto seguinte, foi criada sem detalhes exagerados mas suficientes para que possamos captar sua essência. É o tipo de pessoa que ainda não sonha alto porque não parou para pensar sobre. Sabia que sairia daquele lugar, mas quando já não importava, ainda mais agora. A cidade se deixou dominar pela obra finalizada. Convencidos de que era o melhor, os moradores aceitavam um novo pó em novas paredes e, fixando suas memórias em também novas molduras, pisaram em degraus recém-nascidos para que a idéia de casa que todos tinham em mente fosse atualizada. “Falta céu” é narrado com maior simplicidade. Algo que é perto de nós e, mesmo assim, nunca vivemos. É a memória que esse conto, que é meu preferido do livro, me trouxe.
Narração irônica
Em “Capitão Capivara”, encontramos a realidade cômica do escritor que quer ser e aquele que já é, e de como eles jamais serão paralelos, até numa mesma página. Parte da história é contada por Clara, uma jovem que abandonou o curso de Letras para tentar trabalhar com crianças num hotel e ter dinheiro para começar sua carreira de escritora. A outra, já quando Clara consegue o emprego, é narrada pelo escritor best-seller Carlo Bueno.
A parcialidade dos fatos é dividida de forma bem engraçada, quase uma narração irônica de como tudo acontece de acordo com o que vemos e somente. É mais uma forma de usar as perspectivas: os acontecimentos são os mesmos, mas as interpretações nunca são iguais ou totalmente fiéis ao ocorrido. E, de novo, me surpreendeu a segurança com que Bensimon controla a linguagem e o equilíbrio antes mencionados. A cada fragmento, temos a memória de um dos personagens e um deles deverá encerrar o conto, mas com qual grau de fidelidade?
“O Gerente me chamou só pra ter certeza. Era uma péssima pessoa, o que dava para entender, porque em geral é o que acontece com quem lê muito sobre marketing.” (página 118)
Clara aceita trabalhar com uma fantasia de pelúcia do Capitão Capivara. Carlo está há três meses no hotel (quase sua nova casa) para escrever seu próximo livro encomendado, no qual o lugar será personagem principal ? já que ele era pago pela propaganda realizada. Não é uma forma de sustento original, mas, em tempos do pode-tudo, há quem considere uma boa idéia. Tanto a história de Carlo quanto a que Carla um dia faria já têm um leitor, que é o mesmo: Edgar, quem limpa as piscinas do hotel. É por ele que os detalhes passam, é ele quem acompanha a angústia dos dois.
Bueno não sabe da presença de uma leitora-fã nem Clara imagina que seu escritor preferido está lá. O que os dois sabem e com o que têm de lidar forçadamente é a presença de um grupo de médicos (tendo uma ligação quase direta com o escritor) e seus filhos (dos quais ela e Patrícia, que era como sua chefe, deveriam cuidar). Patrícia, sem qualquer princípio de paciência, comete um grave erro com uma das crianças e Clara acabará com as duas funções: a sua, com aquela nojenta fantasia, e a da moça, que nada gostou de ter sido demitida, colocando a culpa na pobre moça ? além de fazer uma pequena vingança. Mas isso se Clara conseguir permanecer no hotel.
Com suas pretensões literárias, ela também enxerga tudo com um pingo de ficção. Aquele cenário todo, por exemplo, bem que poderia ter algo de surreal. Mas ela sempre era chamada para a realidade quando tinha de fazer seu papel de Capitão Capivara, e quando era obrigada a ser vítima de algumas maldades sem propósito de quem era próximo. Tudo isso, a autora me fez pensar, sempre acaba nos levando para a ficção. Foi o que Clara provavelmente decidiu fazer.
Tive a felicidade de ler ótimos livros este ano e Pó de parede completa o q