Recuperando o sonho do pleno emprego
A diminuição do desemprego e da pobreza abre espaço para a construção de um novo modelo de estruturação do país. A partir das idéias de Hyman Minsky sobre “o Estado como empregador de última instância”, aliadas às reflexões de Milton Santos, é possível repensar as políticas públicas em busca de opções transformadoras
A atual crise financeira americana e suas conseqüências, ainda não totalmente previsíveis, parecem ser a pá de cal do neoliberalismo. Mas será que esse monstro está, de fato, morto e sepultado? Ou, pelo contrário, ele encontra-se, como a hidra de mil cabeças, momentaneamente enfraquecido?
É evidente que, como expressão ideológica de forças econômicas e políticas presentes – como adversárias – nas lutas cotidianas dos diversos povos do planeta, a capacidade de influência do neoliberalismo foi apenas abalada. Fortemente abalada, é verdade, mas não destruída. E isso ocorre em virtude não apenas da permanência dos interesses que expressa, mas também por ainda não ter surgido um corpo de idéias capaz de substituí-lo em sua função de principal suporte ideológico das classes dominantes nessas últimas três décadas.
Entre outras funções, tal corpo de idéias deverá articular uma explicação amplamente aceita das causas da presente crise e ser capaz, ao mesmo tempo, de prover a fundamentação das políticas que tomarão o lugar daquelas associadas ao paradigma neoliberal, cuja derrocada presenciamos.
Nesse sentido, um teórico que está na crista da onda, merecedor de todas as atenções pelo potencial elucidativo de sua obra, é o economista norte-americano Hyman P. Minsky. Formulador da chamada “hipótese da instabilidade financeira”, seu trabalho tornou-se ainda mais conhecido quando das crises asiática e russa da década passada. Minsky (1919-1996) é um expoente da corrente pós-keynesiana de pensamento econômico e foi forte opositor da desregulamentação dos mercados financeiros iniciada na década de 1980.
Existe, porém, uma faceta pouco conhecida do seu trabalho que, não obstante, vem servindo de inspiração para um número crescente de economistas e formuladores de política em diversos países. Suas preocupações com a pobreza e a desigualdade na sociedade norte-americana levaram-no a pensar o Estado como um possível empregador de última instância, capaz de sustentar uma situação em que só existiria o desemprego voluntário e o de caráter friccional.
De forma análoga ao sistema financeiro, em que o “Big Bank” (o Banco Central – e também, eventualmente, o Tesouro, como na presente crise norte-americana) garante a liquidez, o “Big Government” deve atuar para manter elevada a taxa de investimento e manejar o gasto público de forma a impedir o desemprego involuntário.
Para percebermos melhor o sentido de tal formulação, cabem algumas considerações óbvias, que normalmente não são feitas, e nem mesmo pensadas. Em primeiro lugar, por definição, uma política de preço mínimo só é séria se garante a compra de qualquer quantidade da mercadoria em questão. Contudo, apenas o salário mínimo (preço mínimo da força de trabalho) não está associado a mecanismos que garantam a contratação de todos os dispostos a trabalhar em troca dessa remuneração (a despeito, inclusive, no Brasil, de seu status de dispositivo constitucional). Como conseqüência, sempre que existir desemprego involuntário, o salário mínimo de fato será zero.
Um país que se proponha a assumir verdadeiramente uma alternativa como essa – de garantia de emprego para todos – estará, sem dúvida, inaugurando um novo paradigma de Estado e de sociedade, capaz de trazer em seu bojo uma dimensão civilizatória cujo alcance não é possível avaliar antecipadamente.
Por outro lado, é também evidente que sua implementação não tem nada de simples. A começar pela própria fundamentação. Diversas são as questões que precisam ser adequadamente levantadas e respondidas, antes que um governo possa assumir essa proposta de forma responsável e em sua integralidade: desde os impactos fiscais e eventualmente inflacionários, passando pelas implicações sobre o emprego no setor privado, os desafios institucionais e gerenciais dos governos, as respostas das comunidades envolvidas etc.
Não se trata, portanto, de uma proposição de “tudo ao mesmo tempo agora”, mas sim de partir para a construção progressiva desse novo paradigma, numa estratégia que articule elaboração teórico-conceitual, pesquisa econômica e social, desenvolvimento de políticas parciais e implementação de projetos-piloto. Nesse sentido, essa proposta vem estimulando diversos programas acadêmicos de pesquisa, além de servir de base para políticas nacionais em países com problemas semelhantes aos nossos, como Argentina, África do Sul e Índia1.
No Brasil, avançar nessa direção significa, entre outras coisas, promover um diálogo entre Minsky e Milton Santos. Geógrafo brasileiro de obra vastíssima, Santos (1926-2001) vem servindo de inspiração para a retomada da reflexão sobre as estratégias de estruturação e integração dos diferentes circuitos das economias urbana e urbano-rural.
A transformação recente da situação econômica do país, em particular a diminuição do desemprego aberto e dos indicadores de pobreza e desigualdade, bem como a melhoria das condições de financiamento externo e das ações do Estado abrem espaço para a montagem de estratégias – de médio e longo prazo – de enfrentamento das questões estruturais que, historicamente, têm se interposto entre as potencialidades econômicas do nosso território e o seu efetivo aproveitamento. Nesse contexto, as análises de Santos, relativas às características e determinações do que ele denomina “circuito inferior” e “circuito superior” da economia, são uma referência fundamental para o avanço necessário na compreensão da realidade econômico-social da população, sem a qual nenhum programa ou política pública terá chance de êxito2.
A partir de suas análises fica mais fácil situar as dimensões locais e externas das atividades produtivas e de consumo, e compreender o caráter da luta cotidiana pela sobrevivência que a lógica estrita do grande capital impõe sobre aqueles que não se vinculam “organicamente” a ele.
Entender essa lógica em suas múltiplas manifestações é fundamental para trabalhar a construção de um novo paradigma de estruturação da economia, essencial ao surgimento de novos padrões de convivência nos espaços de moradia, trabalho, circulação e lazer, no campo e nas cidades.
Um novo paradigma básico de estruturação da economia significa, por exemplo, retomar a lógica dos circuitos econômicos curtos de produção e consumo, nos quais a eficiência social dos pequenos negócios locais – sejam urbanos ou rurais, familiares, individuais ou solidários – supere a eficiência estrita e estreitamente econômica do médio e do grande capital. Mas também quer dizer potencializar o associativismo dos pequenos produtores, de forma que possam assumir posições de poder nas cadeias de valor em que seus negócios estão inseridos.
O desenvolvimento desse novo paradigma já está em marcha. Não se trata, portanto, de uma proposição utópica, no sentido depreciativo que essa palavra tem para o senso comum, de algo bonito, mas irrealizável. E isso está acontecendo no campo do conhecimento, como na pesquisa que o Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) desenvolve na cidade de Santo André (SP), na luta da comunidade do bairro de Palmeira, em Fortaleza, em políticas públicas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), do Ministério do Desenvolvimento Social, operado pela Conab (Companhia Nacional de Abastecimento) etc.
Em todas essas dimensões, o que está em pauta é a construção de um modelo alternativo de produção e consumo, em que os produtores e empreendedores locais se articulem com seus públicos consumidores por meio de circuitos curtos, fortalecendo sua capacidade de geração de trabalho e renda, de identidade, de pertencimento, de visão política, de realidade social e de sustentabilidade ambiental da ação econômica.
Essa proposta tem de avançar e compreender um processo que vá além destas linhas, contemplando também o desenvolvimento de sistemas abrangentes de assistência técnica e extensão, rural e urbana, e, não menos importante, de crédito produtivo.
Claro, nada disso coloca em questão a continuidade do “circuito superior”, muito pelo contrário. O que está em jogo é a possibilidade histórica de os “de baixo” conseguirem acessar os instrumentos do Estado para dar eficiência e dignidade ao seu fazer econômico e social.
Parece ficar claro, portanto, que o verdadeiro significado do “Estado Empregador de Última Instância” de Minsky é muito mais amplo que o de um mero empregador de mão-de-obra. Seu papel é de articulador de institucionalidades capazes de garantir a sustentação do esforço criador da população. Estão aí o PAA, já mencionado, a rede de Cefets (Centros Federais de Educação Tecnológica), que poderá ser o grande instrumento a revolucionar o padrão de eficiência técnico-gerencial dos pequenos empreendimentos urbanos num futuro próximo, e os empreendimentos solidários, que erguerão e darão vida aos espaços sociais de suas comunidades (creches, postos de saúde, escolas, centros culturais etc.).
Muitos obstáculos, de toda ordem, ainda se interpõem ao desenvolvimento pleno dessas potencialidades. Basta lembrar as barreiras hoje existentes para o associativismo dos moradores das comunidades pobres das grandes metrópoles, que estão sob o domínio do narcotráfico ou das milícias.
Porém, outros sucessos podem se tornar vetores de positividade desse processo. Nesse sentido, para o diálogo de Minsky com Milton Santos deve ser convidado também Celso Furtado. Economista brasileiro que dispensa apresentações, Furtado (1920-2004) teve publicados recentemente seus estudos sobre o “pré-sal venezuelano”3, indispensáveis em uma reflexão sobre antigos e novos paradigmas.
*Luiz Eduardo Parreiras é economista e especialista em políticas públicas e gestão governamental. Pesquisador da Diretoria de Estudos Sociais do Ipea, é autor do livro Negócios solidários em cadeias produtivas – Protagonismo coletivo e desenvolvimento (Ipea/Fundação Banco do Brasil, 2007).