Reeleição à vista
Nestes quase quatro anos de “governo da mudança”, ficou evidente a dificuldade em estruturar uma institucionalidade pós-neoliberal eficiente na Bolívia. No segundo mandato de Evo Morales, com um país menos polarizado e sem a direita à espreita, estará em jogo a construção do Estado
O panorama político boliviano rumo às eleições presidenciais de 6 de dezembro é totalmente novo, especialmente se comparado com os primeiros anos do mandato de Evo Morales, marcado pelo chamado duplo poder entre o governo central e as regiões autonomistas do leste, sul e extremo norte amazônico. A oposição carece de táticas e estratégias para enfrentar um processo eleitoral em que todas as pesquisas antecipam a reeleição de Morales no primeiro turno, e o “evismo” não só conseguiu se consolidar no poder – provavelmente é o governo mais forte desde a primeira gestão de Gonzalo Sánchez de Lozada (1993-1997) – , mas também construir um novo bloco hegemônico, ou seja, uma liderança intelectual e moral sobre a sociedade e sobre o processo de “reinvenção da nação” que a Bolívia atravessa.
Bumerangue oposicionista
A sensação de derrota antecipada pode ser notada na maioria dos meios de comunicação próximos à direita, que se agita entre as acusações de sua ala radical – segundo a qual a Bolívia, sob o governo de Evo, transformou-se em uma ditadura – ou a asséptica proposta de “país produtivo” feita pelo bloco moderado, liderado pelo empresário do cimento e ex-deputado da Assembleia Constituinte, Samuel Doria Medina.
Para reforçar seu discurso “antiditadura”, Manfred Reyes Villa, ex-prefeito de Cochabamba cassado no referendo de 2008, escolheu como companheiro na frente de batalha Leopoldo Fernández, o antigo prefeito de Pando – preso acusado de organizar o “masacre del Porvenir”, contra camponeses simpatizantes de Evo Morales, em 11 de setembro de 20081. Mas, depois do golpe midiático que permitiu a Reyes Villa se apoderar do debilitado espaço oposicionista e lançar sua candidatura à presidência. A dupla estancou em torno dos 20% na preferência dos eleitores, enquanto Morales supera 50% em todas as pesquisas.
“As campanhas opoicionistas se assemelham a um bumerangue”, definiu o semanário liberal “Pulso”, para quem as dificuldades da direita residem em encontrar uma estratégia e, principalmente, um discurso capaz de competir com o de Evo Morales e de comover as fibras mais íntimas da “Bolívia profunda” com sua oratória.
Contudo, a situação pré-eleitoral tem um pano de fundo mais amplo: a derrota da oposição autonomista liderada por Santa Cruz, que, superestimando suas próprias forças e subestimando as do governo central, embarcou em uma estratégia suicida de tomada de instituições logo após a ratificação de Evo Morales no referendo revocatório de 10 de agosto de 20082. Paralelamente, ocorreu o desembarque em Santa Cruz de um obscuro combatente da guerra dos Balcãs, Eduardo Rózsa, uma mistura de mercenário e idealista extremado que se propôs a formar milícias contra partidários de Morales e foi morto pela polícia em abril deste ano. O caso envolveu toda a elite local em um grave incidente de tentativa de subversão armada3. Dessa forma, mesmo que os dirigentes cruceños tenham conseguido incorporar o autonomismo à nova Constituição e inclusive ao programa do Movimiento al Socialismo (MAS), o atual contexto eleitoral mostra-os divididos, sem habilidade política e mais preocupados com os pleitos locais de 2010 – quando serão eleitos os governadores – do que comas de 6 de dezembro; e com suas facções – associadas às lojas maçônicas Caballeros del Oriente e Toborochi – que apoiam diferentes vertentes oposicionistas4.
Entusiasmado com esse cenário, a situação traçou uma meta:conquistar dois terços do Parlamento – agora chamado “Asamblea Legislativa Plurinacional” – que nos próximos cinco anos deverá aprovar as leis que permitam aplicar a nova Constituição, ratificada no referendo popular de janeiro de 2009. “Evo para sempre”, gritam os camponeses nos comícios; “90%”, afirmam os situacionistas na populosa urbe de El Alto. “Os movimentos sociais não estão de passagem pelo poder”, afirma Morales, alimentado todo tipo de fantasmas, por parte da oposição, de perpetuação no poder do indígena em um país quase sem tradição de reeleições.
Ilusão de revolução
Como acontece em outros processos sul-americanos, a combinação de denúncias histéricas da oposição conservadora com a superatuação ideológica dos próprios governos pós-neoliberais criou certa “ilusão de revolução”5. Mas a verdade é que o substrato sociológico do apoio a Evo Morales não é muito diferente ao do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Como menciona Carlos Augusto Montenegro, do Ibope, “quando Lula entrou na carruagem da rainha da Inglaterra, todo o povo, todo o Nordeste, entrou com ele”6. E efeitos similares são constatados na Bolívia com o primeiro presidente indígena: a combinação de políticas sociais – bolsa Juancito Pinto para os estudantes, programa Renta Dignidad para os idosos, programa Juana Azurduy para as mulheres grávidas; médicos cubanos, obras nos municípios dentro do plano “Evo cumple” – com identificação étnico-cultural – compõem a base do apoio social a Morales. Junto a medidas como a nacionalização do gás, cuja gestão não obstante foi debilitada pelos casos de corrupção na estatal Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolívianos (YPFB), cujo ex-presidente, Santos Ramírez, está preso há mais de oito meses, acusado de ter recebido subornos milionários. Não menos importante é a atribuição de aproximadamente 9 milhões de hectares de terras pertencentes ao Estado aos camponeses e indígenas, modificando a realidade do meio rural.
O economista Gonzalo Chávez ironiza os “neoliberais revolucionários” que conduzem a política macroeconômica e cambial. “[Em 2008] choviam dólares na economia, que convertidos em bolivianos, ameaçavam desembocar nos rios da inflação. Seguindo o manual do bom neoliberal revolucionário, ave rara que sobrevive confortavelmente na grande árvore do poder, era preciso combater essa liquidez, e para isso o Banco Central da Bolívia pôs seus títulos no mercado com taxas de juro muito elevadas, portanto atraentes. Muitos bancos e pessoas físicas ganharam um bom dinheirinho fácil com o processo de mudança. As más línguas diziam que a outrora poderosa e oposicionista Asoban [Asociación de Bancos] havia se transformado em célula situacionista”. De fato, a relação de Evo Morales com os bancos privados parece distante dos apelos do presidente para “sepultar o capitalismo” e a publicidade oficial destaca a “solvência do sistema financeiro”… privado. Tamb&
eacute;m não é muito heterodoxa a atração que a acumulação de reservas internacionais (que supera os US$ 8 bilhões) exerce sobre Evo Morales e o vice-presidente Álvaro García Linera, que transformaram esse outro recorde em um dos eixos da campanha: “A Bolívia deixou de ser um país mendigo”, “alcançamos o que não conseguiram os neoliberais” etc. Apegado ao realismo sociológico, García Linera definiu o atual processo como nacional- -produtivo. Porém, o dito socialismo do século XXI quase não conseguiu adeptos na Bolívia. Tampouco entre as bases do MAS, sustentadas em economias familiares urbanas e rurais, defensoras radicais de políticas redistributivas, mas pouco entusiastas do “anticapitalismo” do presidente boliviano.
Isso não impede que setores elitistas se sintam verdadeiramente deslocados do poder: hoje sua influência já não se manifesta, como outrora, no clube de tênis, na hípica ou no de golfe, o que resultou em uma impressionante insegurança psicológica em quem tradicionalmente conduziu o poder.
Desenvolvimento ingênuo?
Apesar dos inegáveis avanços na construção de um Estado forte – ao menos em comparação com os anos 1990 – a matriz produtiva da Bolívia continua sendo profundamente extrativista: 2,1% do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) no primeiro trimestre de 2009 se deve principalmente ao aumento da mineração, em especial da mina San Cristóbal7. “A Bolívia volta a ser um país mineiro”, é outro dos slogans oficiais desse governo.
O atual “processo de mudança” enfrenta, assim, o histórico problema boliviano: a defasagem entre o epílogo industrialista e a realidade rentista, fonte do sentimento de constante frustração nacional, devido, em parte, à tradicional dificuldade de o Estado gerir de forma eficaz a economia nacionalizada. Além disso, predomina uma visão ingênua de desenvolvimento, associada à extração desses recursos, que é incapaz de dar vida, historicamente, ao complexo educativo-científico-tecnológico necessário para aprimorar esses objetivos desenvolvimentistas. No fim das contas, esse imaginário impede de transitar em outras vias não desenvolvimentistas, que até o momento tampouco saíram da retórica “pachamámica” como o “sumaj qamaña” (viver bem) no lugar do “viver melhor” ocidental e liberal.
A discussão sobre o modelo de desenvolvimento não vai além da reatualização dos sonhos (ilusões?) desenvolvimentistas- -industrialistas dos anos 1950, no contexto da grande ambivalência do atual presidente: um discurso eco-comunitário nos fóruns internacionais e uma retórica desenvolvimentista no âmbito interno. Por exemplo, quando acusa as ONGs de “causar confusão” entre os indígenas amazônicos que se opõem à prospecção petrolífera. E quando o ministro de Petróleo e Gás, Carlos Villegas, responsabiliza as “demandas excessivas” indígenas de travar os investimentos das companhias petrolíferas privadas8. Ou ainda quando o governo aceita sem protestar os questionados projetos de represas brasileiras no Rio Madeira, na Amazônia boliviana. E quando os camponeses colonizadores aymaras e quechuas acusam de “latifundiários indígenas” os povos originários das terras baixas que receberam centenas de milhares de hectares como “terras comunitárias de origem” desde os anos 1990 até hoje. Tudo isso não carece de certa dose de realidade, mas deixa claro, em todo caso, os limites do discurso indigenista tout court.
Como constata o ex-ministro de Petróleo e Gás, o nacionalista radical Andrés Soliz Rada, “a atual plataforma [eleitoral] do MAS é a antítese da Constituição [aprovada] em Oruro. Promete um grande salto industrial, estradas; trens; corredor bioceânico; aeroportos; usinas hidroelétricas; siderúrgicas; usinas de etanol, etileno, metanol; produção agropecuária em grande escala; seguro universal agrícola; emprego em abundância; educação digital; satélite de comunicações e a valorização da identidade nacional”. E como também adverte Soliz Rada, Evo Morales não apoia explicitamente aos “pachamámicos”, mas também não os desautoriza, e vários deles ocupam cargos no Estado e têm influência política, como o chanceler David Choquehuanca. Um exemplo dessa ambivalência é o debate da nova lei de gestão pública, no qual vários membros da equipe de redação do anteprojeto sustentam polemicamente que a Bolívia é uma “sociedade comunitária” e que o Estado deve dar conta dessa infraestrutura social. Mas, ao mesmo tempo, pedem colaboração à França – país não precisamente adepto do multiculturalismo radical – para erguer uma escola de administração pública. Depois de quase quatro anos de gestão, os funcionários públicos, considerados privilegiados na lógica camponesa do MAS, continuam sem sindicatos, eliminados pelo neoliberalismo.
Além disso, o convite a candidaturas de figuras extrapartidárias das classes médias – jornalistas, por exemplo – que atraem votos, evidencia a dificuldade do MAS em formar quadros próprios: os atuais parlamentares sofreram uma verdadeira “purga”, apoiada pela sociedade, e foram excluídos em massa das listas para dezembro. Os dirigentes do MAS, com exceção dos líderes de sindicatos rurais e urbanos, também ficaram de fora da corrida eleitoral, uma medida extrema para evitar uma “guerra por las pegas” (cargos) no interior de um partido, tido por muitos militantes como uma espécie de agência de emprego. Por outro lado, a retórica comunitarista corre o risco ainda de embelezar um “capitalismo andino” baseado na exploração e na autoexploração da mão de obra, inclusive a familiar, que se afasta da “harmonia comunitária”. Um estudo da “Red de Mujeres Transformando la Economia” indica que 70% das bolivianas vivem do comércio informal e trabalham em condições precárias, sem direito a aposentadoria e a benefícios sociais9.
A ausência de projeto educativo – substituído em grande parte pelo pequeno objetivo de manter a calma sindical dos professores – é um dos déficits da atual gestão e se expressa claramente na elevada rotatividade dos ministros da área: um por ano, cada qual com um perfil políticoideológico específico. Sintomaticamente, todos os regimes bolivianos desde o início do século XX fizeram sua reforma educativa, o que não ocorreu nestes quase quatro anos de Evo, um governo que se autodenomina de “revolução democrática e cultural”. A alfabetização com o método cubano “Yo sí puedo”, um avanço inegável, as salas de acesso à internet nas esc
olas rurais, as questionáveis “universidades indígenas” (aymara, quechua e guaraní) ou o projeto de lei Avelino Signani não podem ocultar a ausência de uma proposta pedagógica de acordo com os desafios bolivianos do século XXI. E déficits parecidos podem ser observados na área da saúde, na qual, além da presença dos médicos cubanos, não existe uma visão coerente que tenda à desmercantilização e à cobertura universal de qualidade. Tanto que os hospitais públicos continuam não sendo gratuitos.
Nestes quase quatro anos de “governo da mudança”, ficou evidente que a lógica de campanha eleitoral permanente, a tentação de ocupação “plebeia” do Estado, além da mencionada superatuação ideológica, dificulta a estruturação de uma institucionalidade pós-neoliberal eficiente. A refundação permanente do país mostra uma dinâmica de rebeldia social talvez sem precedentes na América Latina, mas também deixa em evidência uma verdade mais prosaica: que todas as refundações anteriores terminaram em fracassos. Por isso, no segundo mandato de Evo Morales, com um país menos polarizado e sem a direita à espreita, estará em jogo a construção do Estado.
*Pablo Stefanoni é diretor da edição boliviana de Le Monde Diplomatique.