Reflexões sobre o acesso aos serviços públicos e a dinâmica político-institucional
Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável trazem importantes diagnósticos, indicadores e metas a serem observados pelo planejamento governamental, aspectos essenciais para nortear a ação do poder público
Nos últimos 18 meses estamos observando os impactos da pandemia de Covid-19 na vida cotidiana dos brasileiros, revelada tanto na área de saúde pública, por meio de indicadores como as taxas de mortalidade, como também nas dinâmicas socioeconômicas, através de indicadores como taxa de desemprego e nível de pobreza. A atual crise epidemiológica tem influenciado o processo de desenvolvimento do país, que pode ser analisado sob a perspectiva do crescimento econômico inclusivo, da justiça social e da preservação ambiental. Uma maneira de analisarmos essa questão é observar as possíveis relações entre o desenrolar da pandemia de Covid-19 e o cumprimento dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) no Brasil.
Os ODS fazem parte da Agenda 2030, que foi elaborada no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) em 2015 e adotada por diversos países, dentre eles, o Brasil. No geral, os 17 ODS propostos pela ONU foram adaptados ao contexto brasileiro[1], de forma que pudessem se adequar ao processo de planejamento governamental, em suas diversas instâncias. Primeiro, focaremos nosso olhar em três dimensões que, interrelacionadas, nos permitem vislumbrar as condições de vida da população: habitação, saneamento básico e serviços de saúde. Depois, somaremos à nossa análise algumas questões de ordem política e econômica, já que essa quarta dimensão de caráter político-institucional nos permite compreender um pouco melhor a dinâmica que está por trás das estratégias de enfrentamento à pandemia no país.

As duas primeiras dimensões a serem observadas no âmbito das relações entre a pandemia de Covid-19 e o cumprimento dos ODS no Brasil se referem à problemática da habitação e do saneamento básico. Neste caso, o ODS 1 – Erradicação da pobreza busca, até 2030, garantir que todos os homens e mulheres, particularmente os pobres e as pessoas em situação de vulnerabilidade, tenham acesso a serviços sociais, infraestrutura básica, novas tecnologias e meios para produção, tecnologias de informação e comunicação, serviços financeiros e segurança no acesso equitativo à terra e aos recursos naturais.
Complementarmente, o ODS 11 – Cidades e Comunidades Sustentáveis estabelece como meta que até 2030 o país deveria garantir: o acesso de todos a moradia digna, adequada e a preço acessível; aos serviços básicos; a urbanização dos assentamentos precários de acordo com as metas assumidas no Plano Nacional de Habitação, com especial atenção para grupos em situação de vulnerabilidade. Dados da Fundação João Pinheiro[2] evidenciam que, em 2015, o déficit habitacional no Brasil, que inclui habitação precária, ônus excessivo com aluguel, coabitação familiar e adensamento excessivo de imóveis alugados, era de 6,3 milhões de domicílios. Por sua vez, a inadequação de moradias, que diz respeito à carência de infraestrutura, inadequação fundiária, cobertura inadequada, inexistência de unidade sanitária domiciliar exclusiva e adensamento excessivo de imóveis próprios, era de 7,2 milhões de domicílios no país. Nota-se que a perda ou redução de renda das classes sociais mais baixas causada pela crise econômica pré-existente e aprofundada pela pandemia de Covid-19 tem forçado diversas famílias a buscar abrigo em habitações precárias ou inadequadas. Assim, se esboça uma clara tendência de reforço do déficit habitacional no Brasil e da existência de moradias inadequadas.
Ainda no que tange ao ODS 11, destaca-se a meta de, até 2030, proporcionar o acesso universal a espaços públicos seguros, inclusivos, acessíveis e verdes, em particular para as mulheres, crianças e adolescentes, pessoas idosas e pessoas com deficiência e demais grupos em situação de vulnerabilidade. Todavia, ainda que houvesse as medidas de confinamento social, em alguns lugares e momentos foi permitido às pessoas saírem de suas moradias para praticar atividades físicas, tais como corridas e caminhadas nas proximidades do local de residência. Contudo, boa parte das periferias urbanas não têm equipamentos urbanos de lazer, como praças e parques públicos, tornando ainda mais difícil para os pobres manter sua capacidade de resiliência ao enfrentamento da pandemia, haja vista as doenças de caráter psicológico e psiquiátrico que se intensificaram desde então, além das enfermidades físicas.
Por sua vez, o ODS 6 – Água Potável e Saneamento indica que, até 2030, caberia ao Brasil alcançar o acesso universal e equitativo à água para consumo humano, segura e acessível para todas e todos. Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS)[3] apontam que 83,6% dos domicílios tiveram abastecimento de água em 2018, mas em 10% destes o abastecimento foi intermitente. Por exemplo, na RM de São Luís apenas 49% dos domicílios com abastecimento de água tiveram fornecimento diário e na RM de Recife essa proporção foi de apenas 40%.
Outra meta do ODS 6 estipula que, até 2030, o Brasil deveria alcançar o acesso a saneamento e higiene adequados e equitativos para todos, e acabar com a defecação a céu aberto, com especial atenção para as necessidades das mulheres e meninas e daqueles em situação de vulnerabilidade. No entanto, dados do SNS[4] mostram que, em 2018, apenas 43,3% do esgoto gerado no Brasil foi coletado e tratado, o que representa uma cobertura de 53,2% da população total brasileira
A partir desses dados e informações é fácil perceber como a pandemia de Covid-19 nos mostra que as condições de moradia de boa parte da população brasileira são inadequadas, impedindo que as pessoas adotem corretamente as medidas de prevenção relacionadas à higiene pessoal, de objetos e de ambientes. O simples ato de lavar as mãos com frequência utilizando-se água e sabão é impossível para parcela significativa de brasileiros que não têm acesso regular ao abastecimento de água potável. Portanto, os déficits de saneamento básico e de habitação influenciam sobremaneira na dinâmica de espraiamento do vírus Sars-CoV-2, causador da doença Covid-19, já que ambas as dimensões trazem indicadores de vulnerabilidade social relevantes para a área de saúde pública.
A terceira dimensão abordada neste texto, que busca destacar as interrelações entre a pandemia de Covid-19 e os ODS no Brasil, se debruça sobre o acesso aos serviços de saúde. O ODS 1 – Erradicação da pobreza pontua que é essencial, até 2030, construir a resiliência dos pobres e daqueles em situação de vulnerabilidade, reduzindo sua exposição e vulnerabilidade à eventos extremos relacionados com o clima e outros choques e desastres econômicos, sociais e ambientais. No âmbito específico da saúde pública, os desinvestimentos e a fragilização político-institucional do SUS nas últimas décadas comprometem a capacidade do sistema em prover atenção à saúde em situações extremas, como no atual enfrentamento à pandemia de Covid-19[5].
Por sua vez, o ODS 3 – Saúde e bem-estar indica que é crucial assegurar, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), a cobertura universal e o acesso a serviços de saúde de qualidade em todos os níveis de atenção, além do acesso a medicamentos e vacinas essenciais seguros, eficazes e de qualidade que estejam incorporados ao rol de produtos oferecidos pelo SUS. Entretanto, notamos que: a cobertura vacinal para a Covid-19 está aquém do necessário; não há um plano nacional de imunizações claro, com grupos prioritários e metas bem definidas e pactuadas com os entes subnacionais; são frequentes os atrasos nos programas estaduais e municipais de imunizações, havendo escassez de vacinas, e toda sorte de lacunas no planejamento governamental[6]; há indícios de corrupção na aquisição de vacinas pelo governo brasileiro, como têm evidenciado as investigações da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19[7].
Outra meta do ODS 3 é aumentar substancialmente o financiamento da saúde e o recrutamento, desenvolvimento, formação e retenção do pessoal de saúde, especialmente nos territórios mais vulneráveis. O encerramento do Programa Mais Médicos impactou fortemente os avanços dessa meta no que se refere aos recursos humanos nos territórios com maiores déficits nos serviços de saúde, somando-se à incipiência de ações voltadas ao incremento de recursos financeiros no SUS e falta de aplicação dos montantes destinados ao enfrentamento da pandemia de Covid-19 por parte da União, conforme descreve os relatórios do Conselho Nacional de Saúde – Confin[8].
Também caberia ao país reforçar as capacidades locais para o alerta precoce, redução e gerenciamento de emergências e riscos nacionais e globais de saúde, conforme estipulado no conjunto de metas do ODS 3. Todavia, se sobressaem os déficits nas capacidades estatais de grande parte dos municípios, que se viram despreparados para enfrentar a pandemia, seja no que se refere aos recursos humanos e financeiros, seja na capacidade de cooperação e coordenação governamental.
Somando-se a esse cenário de déficits na área de habitação, saneamento básico e saúde, a quarta e última dimensão que abordaremos nessa tentativa de elucidar as relações entre a pandemia de Covid-19 e os ODS no Brasil se refere à política e à economia, com especial atenção aos aspectos institucionais. O ODS 9 – Indústria, Inovação e Infraestrutura destaca em uma de suas metas que é imprescindível fortalecer a pesquisa científica e melhorar as capacidades tecnológicas das empresas, incentivando, até 2030, a inovação, visando aumentar o emprego do conhecimento científico e tecnológico nos desafios socioeconômicos nacionais e nas tecnologias socioambientalmente inclusivas, além de aumentar a produtividade agregada da economia.
Todavia, verifica-se no Brasil um baixo investimento em ciência, tecnologia e inovação (CT&I) para produzir soluções à crise pandêmica. Manteve-se a tendência de cortes na área de CT&I, que, desde 2016, impactam fortemente na capacidade do país em gerar novas tecnologias e conhecimentos. Diversos países converteram parte de suas indústrias para produção emergencial de insumos para a área de saúde, a exemplo da fabricação de máscaras faciais, álcool em gel, medicamentos, respiradores etc. No Brasil, não houve incentivos governamentais robustos para isso, ainda que algumas empresas, por iniciativa própria, tenham adotado essa estratégia até mesmo para manterem-se ativas. Alguns laboratórios de universidades públicas buscaram inovações tecnológicas, mas num contexto de escassez de recursos para pesquisa científica e com pouca capacidade de fazer as inovações chegarem com rapidez e serem amplamente absorvidas no mercado produtivo, devido à problemas pré-existentes que dificultam uma maior interação entre a universidade e a indústria. Ademais, predomina certa inabilidade e indisposição geopolítica para negociar transferência de tecnologias, acordos de cooperação técnica, quebras de patentes e mesmo a inserção do Brasil nas redes de pesquisa internacionais e nos consórcios voltados à criação de vacinas para a Covid-19.
Nesse aspecto, o ODS 17 – Parcerias e Meios de Implementação também denota a emergência de novos desafios, já que indica a necessidade de melhorar a cooperação Norte-Sul, Sul-Sul e triangular regional e internacional e o acesso à ciência, tecnologia e inovação, a fim de aumentar o compartilhamento de conhecimentos em termos mutuamente acordados, inclusive por meio de uma melhor coordenação entre os mecanismos existentes, particularmente no nível das Nações Unidas, e por meio de um mecanismo de facilitação de tecnologia global. Dessa maneira, a postura do Brasil na geopolítica das vacinas têm demonstrado que o país não tem utilizado sua respeitosa experiência precedente na diplomacia para buscar soluções efetivas de enfrentamento à pandemia, como vêm explicitando as investigações realizadas no escopo da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instalada no Senado.
Ainda no que se refere ao ODS 17, há a meta de reforçar o apoio à desagregação de dados, a integração, disponibilização e compartilhamento de registros administrativos e de bases de dados estatísticos e geocientíficos relevantes ao cumprimento das metas e mensuração dos indicadores do desenvolvimento sustentável, respeitando a legislação quanto à segurança da informação. Na contramão do atingimento dessa meta, verifica-se no Brasil, desde o início da pandemia, a falta de registros e de divulgação adequada dos dados sobre a pandemia de Covid-19, além de tentativas de manipulação de dados por parte do poder executivo federal, no sentido de manter obscura a dinâmica da pandemia no país.
Por fim, o ODS 16 – Paz, Justiça e Instituições Eficazes define como metas: reduzir substancialmente a sonegação fiscal, a corrupção e o suborno em todas as suas formas; ampliar a transparência, a accountability e a efetividade das instituições, em todos os níveis; e, garantir a tomada de decisão responsiva, inclusiva, participativa e representativa em todos os níveis. Novamente, as investigações da CPI da Covid-19 no Senado têm trazido à luz problemas sérios de gestão da pandemia no âmbito do Governo Federal, já que boa parte das decisões são tomadas de maneira autoritária e sem embasamento científico, além de evidências de corrupção na compra de vacinas, de insumos médico-hospitalares e na criação de hospitais de campanha. Assim, se tornam mais claros os sérios déficits de accountability na administração pública, ou seja, a falta de responsabilidade (objetiva e subjetiva), de controle, de transparência, o não cumprimento na prestação de contas à sociedade, a falta de justificativas para as ações que foram ou deixaram de ser empreendidas, a falta de punições para má conduta e ações irregulares adotadas por gestores e instituições. Esse é um problema já reconhecido no Estado brasileiro, mas na gestão do atual governo federal, isso tem sido acirrado, em especial no que se refere às medidas de combate à pandemia de Covid-19.
Note-se que os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) nos trazem importantes diagnósticos, indicadores e metas a serem observados pelo planejamento governamental, aspectos essenciais para nortear a ação do poder público. Assim, quanto maior a aderência de uma ação governamental com a realidade, maior a probabilidade de as políticas públicas serem efetivas e atingirem bons resultados. Portanto, levar em consideração o que já se sabe sobre as dinâmicas socioespaciais, bem como as proposições já elaboradas para intervir no processo de desenvolvimento sob o paradigma do crescimento econômico inclusivo, da justiça social e da preservação ambiental, em parte consubstanciados nos ODS, é imprescindível para superarmos a crise pandêmica atual. Isso é especialmente relevante, na medida em que esta breve análise nos mostra que tanto as desigualdades socioespaciais pré-existentes no Brasil influenciam a dinâmica da pandemia de Covid-19 como a própria pandemia impacta no quadro de iniquidades presente no país.
Simone Affonso da Silva é professora adjunta do Instituto de Geografia, Desenvolvimento e Meio Ambiente da Universidade Federal de Alagoas e pesquisadora de Pós-Doutorado no Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
[1] INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA – IPEA. Painel Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/ods/index.html. Acesso em 18 ago. 2021.
[2] FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO – FJP. Déficit Habitacional no Brasil – 2015. Belo Horizonte: FJP, 2018. Disponível em: http://novosite.fjp.mg.gov.br/deficit-habitacional-no-brasil/. Acesso em 18 ago 2021.
[3] BRASIL. MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO REGIONAL – MDR. SECRETARIA NACIONAL DE SANEAMENTO – SNS. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento: 24º Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgotos – 2018. Brasília: BRASIL/MDR/SNS, 2019. Disponível em: http://www.snis.gov.br/diagnostico-anual-agua-e-esgotos/diagnostico-dos-servicos-de-agua-e-esgotos-2018. Acesso em 22 ago 2021.
[4] BRASIL. MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO REGIONAL – MDR. SISTEMA NACIONAL DE INFORMAÇÕES SOBRE SANEAMENTO – SNIS. Painel de Informações Sobre Saneamento. Disponível em: http://www.snis.gov.br/painel-informacoes-saneamento-brasil/web/. Acesso em 22 ago 2021.
[5] ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SAÚDE COLETIVA – ABRASCO. Plano Nacional de Enfrentamento à Pandemia da COVID-19. 3ª versão. Rio de Janeiro: Abrasco, 2020. Disponível em: https://frentepelavida.org.br/uploads/documentos/PEP-COVID-19_v3_01_12_20.pdf. Acesso em 06 ago 2021.
[6] NEGRI, F.; PEREIRA, L. S. Por que falta vacina no Brasil? Nota Técnica Nº 30. Rede de Pesquisa Solidária. Publicada em 07 de maio de 2021. Disponível em: https://redepesquisasolidaria.org/boletins/. Acesso em 18 ago. 2021.
[7] RODRIGUES, Randolfe. A negligência para salvar vidas constatada pela CPI. Le Monde Diplomatique Brasil. Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-negligencia-para-salvar-vidas-constatada-pela-cpi/. Acesso em 29 ago. 2021.
[8] BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. CONSELHO NACIONAL DA SAÚDE. Boletim Cofin. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/boletim-cofin. Acesso em 18 ago. 2021.