Reforma Administrativa: da caricatura às reais necessidades da burocracia
Ao contrário do que indica uma caricatura, o funcionalismo público brasileiro não é formado, em sua maioria, por marajás ou por burocratas encastelados em suas mesas cuidando de processos kafkianos
Na última semana, o pedido de demissão dos secretários do Ministério da Economia, Salim Mattar e Paulo Uebel, responsáveis respectivamente pelos programas governamentais de privatização e reforma administrativa, reacendeu no debate público a pauta reformista do funcionalismo.
A reforma administrativa é importante e necessária para o país. A última ampla mudança no regime ocorreu em 1998, com a aprovação da Emenda Constitucional nº 19, conduzida pelo então ministro Luiz Carlos Bresser Pereira. Passados mais de vinte anos, poucas de suas propostas saíram do papel, antigos problemas se aprofundaram e novas questões surgiram.
O editorial do jornal O Globo do dia 12.08.2020 traz dados que ilustram a necessidade de uma reforma administrativa, mas que merecem ser aprofundados. Segundo publicado, em 2019, 13,7% do PIB brasileiro foi dedicado ao pagamento da folha de pessoal da Administração, somando-se servidores ativos, inativos e pensionistas. Entre 2008 e 2019, o número de funcionários federais aumentou 11%, ao passo que os gastos com sua remuneração cresceram 125%. O Brasil gasta com o funcionalismo público mais do que Chile, França e Alemanha. Além disso, existem grandes diferenças salariais entre o setor público e a iniciativa privada: enquanto a média salarial do setor público em 2019 foi de R$ 6.219, no setor privado ela alcançou apenas R$ 2.498 (uma diferença de 240%).
Como bem argumenta o editorial, porém, o aumento dos gastos com a máquina pública não significou uma melhora na qualidade dos serviços públicos no país. Pesquisa realizada pela CNI (Confederação Nacional da Indústria) em 2016 apontou que 90% dos brasileiros estão insatisfeitos com a qualidade dos serviços públicos e 80% consideram que a qualidade dos gastos públicos poderia melhorar.
Uma percepção tão negativa a respeito dos serviços públicos prestados no Brasil é resultado de uma série de fatores. Por isso, não há uma bala de prata capaz de solucionar sozinha as mazelas da Administração brasileira, mas a reforma administrativa pode ser um passo na direção de uma gestão mais eficiente da coisa pública.
No entanto, para que isso aconteça, é preciso conhecer de maneira mais aprofundada o rosto da Administração Pública brasileira. O Atlas do Estado Brasileiro, publicado pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em 2019, revela importantes nuances que merecem ser destacadas. Listaremos aqui três delas.
A primeira é a diferença de salários entre entes federativos: em 2017, os salários na União eram em média de R$ 9,2 mil mensais, nos estados, R$ 5 mil e nos municípios, R$ 2,9 mil. Considerando que os servidores municipais correspondem a 57% do total do funcionalismo público brasileiro, é possível observar que mais da metade dos servidores tem uma realidade salarial bastante semelhante à da iniciativa privada. Somando-se a quantidade de servidores estaduais e municipais, chega-se a praticamente 90% do funcionalismo brasileiro; os servidores federais – os mais bem remunerados do país – são pouco mais de 10% do total.
A segunda é a diferença de salários entre os três poderes. Em 2017, a média salarial do Poder Judiciário, considerando magistrados e servidores, foi de R$ 12.081,71. No Legislativo, também levando em conta senadores, deputados, vereadores, assessores e servidores de todas as espécies, foi de R$ 6.025,95. Já no Executivo, a remuneração média foi bem mais modesta: R$ 3.895,91 mensais.
Já a terceira demonstra que um número bastante considerável de servidores públicos trabalha diretamente na prestação de serviços básicos à população. Nos municípios, 40% dos servidores são professores, médicos, enfermeiros e agentes de saúde. Já nos Estados, somando-se ainda os profissionais da segurança pública (policiais civis, militares, bombeiros e agentes penitenciários), o percentual de servidores que participam da tríade dos serviços públicos essenciais (segurança, saúde e educação) chega a 60% do total do funcionalismo.
Ao contrário do que indica uma caricatura, o funcionalismo público brasileiro não é formado, em sua maioria, por marajás ou por burocratas encastelados em suas mesas cuidando de processos kafkianos. Pelo contrário: são pessoas que trabalham diretamente na prestação dos mais básicos serviços à população e que recebem salários não muito superiores à média na iniciativa privada. Conhecer essa realidade é importante para que se possam identificar corretamente as disparidades e os gargalos existentes na gestão de pessoas da Administração Pública e, com isso, adotar medidas voltadas para o seu aperfeiçoamento.
Dentro dessa realidade, o que é possível fazer? Em primeiro lugar, é hora de repensar o regime jurídico dos servidores públicos. A atual ausência de avaliações periódicas de desempenho reduz a sua responsividade e dificulta o monitoramento da performance da Administração como um todo e de cada servidor individualmente. Além disso, promoções automáticas por tempo de serviço e remunerações unificadas para os integrantes da mesma categoria podem desmotivar servidores a se engajarem em suas funções. Tais mecanismos podem criar uma “régua de mediocridade”, em que os funcionários se dedicam apenas o suficiente para não terem problemas disciplinares, mas trabalham abaixo de suas potencialidades.
O atual regime apresenta, ainda, uma série de distorções salariais não só em relação à iniciativa privada, mas também – e, talvez, principalmente – entre poderes e níveis federativos. Como visto, a média salarial no Poder Judiciário é quatro vezes maior do que no Executivo; um servidor municipal recebe menos de um terço da remuneração de um federal. Uma reforma administrativa deve, assim, promover uma distribuição mais eficiente das despesas do Estado brasileiro com pessoal.
Mudanças exclusivamente normativas, contudo, não bastam: uma nova legislação aplicada ao mesmo ambiente de trabalho trará poucos resultados práticos. Os costumes institucionais também influenciam o funcionamento e o desempenho da Administração Pública. Repartições públicas em que os ocupantes de cargos de chefia são escolhidos de acordo com afinidades pessoais e políticas, em detrimento da qualidade do trabalho dos servidores, inovações são desencorajadas e a qualificação das equipes de trabalho não é incentivada, dificilmente conseguirão superar velhas práticas patrimonialistas e clientelistas no Estado brasileiro.
Além de uma revisão no regime jurídico dos servidores públicos, portanto, é tão ou mais importante uma ampla reformulação da cultura funcionamento da máquina pública brasileira. Essa será a verdadeira reforma administrativa de que o país necessita.
Anna Carolina Migueis é Doutoranda e Mestre em Direito Público pela UERJ, pesquisadora do UERJ Reg, coordenadora do perfil @oadmfica e procuradora do Estado do Rio de Janeiro.
Leonardo Parizotto Gomes é graduando em direito pela UFRJ. Membro do Instituto de Direito Administrativo do Rio de Janeiro (IDAERJ). Membro do grupo de pesquisa em temas de Direito Administrativo. Estagiário pesquisador do Laboratório de Regulação Econômica da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e integrante da Rede Ágora. Instagram: @leoparizottog.