Reforma ou “deforma” do ensino médio?
Notamos um grande equívoco logo de cara na justificativa que a Lei trouxe: a errônea atribuição do abandono e da reprovação dos alunos basicamente à organização curricular, não considerando os demais aspectos envolvidos
A atual dita “reforma” do Ensino Médio, expressa na Lei 13.415 de 16.2.2017, deferiu alterações radicais na proposta da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), em relação etapa da Educação Básica. Dentre muitos artigos científicos e investigativos produzidos nesses últimos tempos, a tônica adotada em sua maioria é: a reforma causou uma grande “deforma” (ou deformação, se preferir) na qualidade do ensino ofertada aos alunos de todo o Brasil. A proposta, em tese, visa ampliar a gama de possibilidades futuras aos jovens, ofertando-lhes a autonomia na escolha de disciplinas – consideradas optativas – visando sua trajetória após o Ensino Médio. Na prática a proposta representou a marginalização de diversas disciplinas, consideradas por muitos como de “segundo escalão”, dentre as quais a Filosofia e a Sociologia se sobrepõem.
A responsabilidade do Ensino Médio no país é de cada estado da federação, todavia a sua estruturação e a organização curricular partem das políticas estabelecidas no âmbito nacional, a exemplo da Lei de Diretrizes e Bases, dos Planos Nacionais de Educação, das Diretrizes Curriculares Nacionais, através de documentos elaborados por aqueles que exercem cargos em agências governamentais. Todavia, quais são as justificativas para uma mudança brusca na matriz curricular em todo país? Segundo a Lei 13.415 a baixa qualidade do Ensino Médio ofertada no país, acrescentado à necessidade de torná-lo mais atrativo aos alunos, devido aos altos índices de abandono e reprovação escolar, reforça a importância da reforma curricular, tendo por finalidade tornar o currículo flexível, atrativo e dinâmico, atendendo aos interesses dos alunos do Ensino Médio.
Notamos um grande equívoco logo de cara na justificativa que a Lei trouxe: a errônea atribuição do abandono e da reprovação dos alunos basicamente à organização curricular, não considerando os demais aspectos envolvidos. Quais seriam? A péssima infraestrutura da maioria das escolas no país (inexistentes ou péssimos laboratórios, falta de bibliotecas, poucos ou inexistentes espaços para Educação Física e atividades culturais), sem levar em consideração a carreira dos professores, com péssimos salários, e problemas na vinculação a uma única escola, tendo que “se virar” para subsistirem e dar conta de seus boletos. Além disso, quem formulou a lei ignora basicamente o afastamento de muitos jovens da escola, não somente do Ensino Médio, devido à necessidade em auxiliar para a renda familiar, realidade dos jovens de periferia e dos lugares descentralizados do país. Segundo o artigo de Celso João Ferretti intitulado “A reforma do Ensino Médio e sua questionável concepção de qualidade de educação” (2018), um estudo para a Unicef de 2014 evidenciou que os adolescentes pesquisados apontaram como causas do abandono escolar, além das questões curriculares, a violência familiar, a gravidez na adolescência, a ausência de diálogo entre docentes, discentes e gestores e a violência na escola. Ou seja, os desafios externados pelos alunos entrevistados não corroboram com a narrativa da mudança estrutural do currículo regular de disciplinas, sob a justificativa de melhora no conteúdo e preparo para o mundo do trabalho. Esse último, inclusive, com inúmeras justificativas práticas que em tese colaborariam na imersão da juventude no mercado de trabalho, explicita não apenas as contradições e relação antagônica de classes na sociedade, mas busca tornar o jovem cada vez mais técnico e pouco capaz de desenvolver livremente suas próprias capacidades.

Dito isso, disciplinas da área das ciências humanas – Artes, Educação Física, Filosofia, História, Sociologia etc. – são vistas como “perda de tempo”, “ociosas” e “infrutíferas”, que automaticamente atingem a classe docente reduzindo sua atuação profissional. Podemos, inclusive, destacar três conseqüências dessa desvalorização das áreas para o profissional: 1) a exclusão da obrigatoriedade das disciplinas, que na prática restringe o mercado de trabalho para professores que atuam nessas disciplinas; 2) a diminuição das ofertas de trabalho das instituições de ensino para estes profissionais, causando um grave problema de desvalorização de carreira; 3) o olhar sobre a dimensão do trabalho docente sob um aspecto negativo e não atraente. Isso aflige todo o itinerário formativo e profissional do docente, seja ele no passado (aquele que se formou e atua regularmente), no presente (aquele que se formou há pouco tempo/está em processo de formação) e no futuro (quem deseja tornar-se um professor). Ou seja, menos professores e mais técnicos!
A disputa pela hegemonia na educação revela a impossibilidade em considerar os problemas da formação humana capazes de serem resolvidos apenas por mudanças educativas, restritas ao currículo, metodologias, formação, pois o cenário educacional apresenta limites para além das salas de aula. É necessário, segundo Ferretti (2018), “entendê-la, também, como campo de contradições e, portanto, como campo de possibilidades de mudança, pelo menos no âmbito cultural (em sentido amplo)”.
Da mesma forma que o filósofo grego Sócrates foi assassinado pelo Estado, pela sociedade e pelos seus pares, acusado de “desviar” os jovens, hoje as ciências humanas sofrem pelo estigma da desvalorização de seus profissionais e da sua marginalização, devido aos discursos que pejorativamente acusa de exclusivamente “marxista”. A falta de conhecimento histórico e filosófico é uma triste realidade que coaduna com os planos dos grupos que almejam a transformação dos fatos históricos ou seu total esquecimento. Todavia o que me parece tão perigo quanto é o plano abjeto para torná-las repulsivas aos jovens, sem aplicação na vida ou sem utilidade. Esse discurso é constantemente propagado por setores que amam construir teorias de conspiração, repare.
Certamente que existem inúmeras ameaças à educação e o seu acesso pela juventude, mas jamais a Filosofia, a História ou a Sociologia seriam as grandes protagonistas. As grandes seriam o desemprego, a fome, o preconceito, a violência urbana, a falta de saneamento básico, a pouca valorização dos profissionais da educação, a necessidade dos jovens em abandonar as escolas para contribuírem financeiramente dentro de suas casas, o pouco (ou quase nenhum) investimento estrutural, por parte dos governantes, em escolas e creches pelo país, dentre outras muitas coisas. No final das contas todos são afetados pela falta de ação política na educação: profissionais da educação e seus familiares, alunos e seus familiares, a sociedade cada vez menos crítica às realidades impostas por ideologias repressivas e condenatórias, além do futuro totalmente incerto e incapaz, nas mãos de quem realmente planeja apagar com a história.
Reformar sem pensar na estrutura, no alicerce, na base da construção é maquiar sem propósito algum. Pensar nas diversas categorias e setores da sociedade que influenciam na vivência e atuação dos discentes na escola, é trabalhoso, mas profícuo aos olhos de quem tem a educação como prioridade. Porém vai tocar na ferida de muita gente. E quem gosta de ter sua mazela exposta?
Railson da Silva Barboza é bacharel em Filosofia (PUC-Rio). Doutorando e Mestre em Política Social (UFF)