Reformar para excluir?
Se for aprovada a reforma que se vê no horizonte, homens e mulheres, rurais e urbanos, trabalhadores privados e servidores públicos terão de comprovar idade mínima de 65 anos e 49 anos de contribuição para terem acesso à aposentadoria com valor integral
Este artigo, que reflete a opinião do autor, sintetiza um documento elaborado por dezenas de especialistas, que foi organizado pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip) e pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e será lançado em fevereiro de 2017.
No documento, como neste artigo, a reforma da Previdência é compreendida como peça do aprofundamento da austeridade, num cenário em que o próprio establishment econômico global já faz a autocrítica da opção por essa via quando se tentava superar a crise financeira de 2008. As justificativas oficiais dizem que se trataria de ajustar as contas primárias, quando os fatos demonstram que o desajuste tem natureza financeira. A fusão do Ministério da Fazenda com o da Previdência Social – arranjo do qual não se conhece outro caso entre países desenvolvidos ou em desenvolvimento – é indicativa do propósito unicamente fiscalista da reforma.
Em última instância, o que está em jogo é a mudança do modelo de sociedade definido pelo pacto social de 1988. O objetivo é substituir o Estado social pelo Estado mínimo. Além da reforma da Previdência, esse processo está sendo encenado pelo “novo regime fiscal” (que fixa um teto para os gastos primários até 2036); o fim de vinculações de recursos para a área social; a ampliação da Desvinculação de Receitas da União (DRU); o retrocesso nos direitos trabalhistas e sindicais; e a reforma tributária.
Questões sobre a “catástrofe” demográfica
É visão corrente que o envelhecimento seria uma bomba-relógio. É fato que a população está envelhecendo e que o maior número de idosos pressionará as contas da Previdência. Mas isso não implica aceitar o fatalismo demográfico e a ideia de que não há alternativas. Democracias desenvolvidas enfrentaram e superaram essa questão no século passado e gastam mais que o dobro em Previdência, como proporção do PIB, em comparação com o Brasil. Por que o Brasil trataria como “catástrofe” o aumento da expectativa de vida, tão dedicadamente buscado em todo o mundo?
Essa visão catastrofista, favorável ao encurtamento da vida do cidadão, tem a ver com o aumento da “razão de dependência de idosos” (menor proporção de trabalhadores contribuintes para maior número de aposentados). Esse indicador tem por premissa que o financiamento da Previdência dependeria unicamente da contribuição do trabalhador ativo. Isso é falso.
No entanto, o maior equívoco é que esse indicador expressa relações produtivas características da Segunda Revolução Industrial, centrada na base salarial e nas linhas de produção fordista. A Terceira Revolução Industrial automatizou os processos produtivos, eliminou postos de trabalho e ampliou os ganhos de produtividade. Mais graves serão os efeitos da Quarta Revolução Industrial (inteligência artificial, robótica, impressão 3D, nanotecnologia, biotecnologia etc.), em curso, que aprofundará a corrosão da base salarial e tende a perpetuar o desemprego estrutural. Não é razoável fazer projetos para os próximos quarenta anos, como se o cenário em 2060 fosse o mesmo que havia no mundo em 1960. No século XXI, o desafio de financiar a Previdência não será superado por projetos e planos que decretem que a maior longevidade de homens e mulheres seria uma catástrofe. Para superar esse desafio é necessário que os impostos deixem de incidir sobre a base salarial (que só diminui) e passem a atingir a renda e a riqueza financeiras (que só aumentam).
Muitos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) fizeram essa transição em meados do século passado. Nesses países, em média, quase metade do financiamento da Seguridade Social vem da contribuição do governo, por meio de impostos progressivos. No Brasil, os constituintes de 1988 não corrigiram a injustiça fiscal, mas diversificaram as fontes de financiamento da Seguridade: a Constituição criou contribuições que incidem sobre o lucro e o faturamento das empresas.
Além disso, deve-se destacar a experiência de diversos países que instituíram um fundo soberano incidente sobre as receitas de petróleo e gás, as quais, capitalizadas ao longo dos anos, passaram a financiar a Previdência – o caso da Noruega é exemplar.
Para compreender bem os impactos do envelhecimento da população sobre a Previdência também é preciso considerar que o problema não está na demografia, mas no fato de o Brasil não ter ainda modelo econômico compatível com as necessidades do seu próprio desenvolvimento (Bruno, 2016).
Questões sobre a “catástrofe” financeira
O “déficit” da Previdência é outra bomba-relógio de ficção. Tem-se aí uma típica pedalada contra a Constituição, pois o Brasil, desde 1988, segue o modelo tripartite clássico (empregador, trabalhador e governo) adotado em diversos países da OCDE para financiar a Seguridade Social. Em quinze destes, a participação relativa da contribuição do governo é de 45% do total, seguida pela contribuição do empregador (35%), pela contribuição do trabalhador (18%) e por fontes secundárias (2%). Na Dinamarca, a participação do governo atinge 75,6% do total (28% do PIB).
Para que o governo passasse a ter recursos para cumprir sua parte no financiamento da Previdência, os constituintes de 1988 criaram três novas contribuições sociais: a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido das Empresas (CSLL); a Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), cobrada sobre o faturamento das empresas; e parte da contribuição para o PIS/Pasep.
O famosíssimo “déficit” vem do fato de a área econômica de sucessivos governos não contabilizar a contribuição do governo como receita da Previdência. Desde 1989, a área econômica captura esses novos recursos criados pela Constituição de 1988, e o Ministério da Previdência não considera a Previdência parte da Seguridade; assim, desobedece ao que determinam os artigos 194 e 195 da Constituição.
Estudos realizados pela Anfip (2015) revelam que a Seguridade sempre foi superavitária, mesmo com a subtração de suas receitas pela incidência da DRU (cerca de R$ 60 bilhões) e pelas desonerações tributárias sobre suas fontes de financiamento (R$ 158 bilhões em 2015).
Assim, observa-se que não há déficit, porque existem fontes de recursos constitucionalmente asseguradas para financiar a Previdência. O suposto rombo de R$ 91 bilhões (2015) poderia ter sido coberto com parte dos R$ 202 bilhões arrecadados pela Cofins; dos R$ 61 bilhões arrecadados pela CSLL; e dos R$ 53 bilhões arrecadados pelo PIS/Pasep. Ou então pelos R$ 63 bilhões capturados pela DRU e pelos R$ 158 bilhões de desonerações e renúncias de receitas da Seguridade Social.
Também é preciso considerar que não se conhece o modelo atuarial adotado pelo governo e pelos analistas que fornecem “fundamentos” às projeções catastrofistas para 2060. Quais são as variáveis utilizadas? Quais premissas embasam a projeção de cenários? Quão acuradas são as projeções financeiras e atuariais do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) que servem de base para as “profecias” dos críticos da Previdência?
Um grupo de pesquisadores dedicou-se a analisar as projeções contidas nas Leis de Diretrizes Orçamentárias de 2012 a 2015. Esse estudo – que está em fase final e será disponibilizado em breve – constatou erros gritantes de projeção na receita, na despesa e no suposto déficit em apenas quatro anos, o que lhes tira qualquer significado estatístico a longo prazo. Dada a importância crucial dessas projeções para as decisões que serão tomadas agora no Brasil, é dever do Parlamento exigir que o governo abra essa “caixa-preta”. Só assim será possível impedir que prevaleça pela força, não pelo rigor técnico e respeito à Constituição, a visão daqueles que, sem base técnica e desde 1988, em flagrante desrespeito à Constituição, vivem de catastrofismos, com o propósito de fazer regredir direitos.
Também faz parte do alarmismo dizer que “a Previdência é o maior item do gasto público no Brasil”. Em 2015, por exemplo, o país pagou R$ 502 bilhões de juros (8,5% do PIB): montante superior aos R$ 436 bilhões gastos com benefícios previdenciários (7,5% do PIB).
Há ainda o mito de que “o Brasil gasta muito com Previdência”. Mas, para comprovar essa tese e chegar ao falso patamar de 14% do PIB, os especialistas incluem como Previdência inúmeros itens atípicos, como os gastos com os servidores públicos das três esferas de governo. Na verdade, o gasto com a Previdência (INSS) de 7,5% do PIB não é elevado na comparação internacional.
O equilíbrio financeiro da Previdência
Para equilibrar financeiramente a Previdência Social não é preciso criar novos impostos. Basta, exclusivamente, que os artigos 194 e 195 da Constituição sejam cumpridos – o que jamais foi feito desde 1989. Como mencionado, apenas em 2015 nenhum centavo da arrecadação da Cofins, da CSLL e do PIS/Pasep (R$ 53 bilhões) foi contabilizado como receita da Previdência, além das desonerações e da DRU.
O reforço da fiscalização e a gestão interna impediriam que o estoque da dívida ativa previdenciária atingisse R$ 351 bilhões em 2015 (apenas 0,3% recuperado para os cofres públicos). Além disso, estima-se que R$ 91 bilhões deixaram de ser arrecadados neste ano pela falta de fiscalização sobre fraudes praticadas pelos empregadores. (Filgueiras e Krein, 2016). Para cumprir essas funções, é indispensável que o Ministério da Previdência seja recriado, com plena autonomia.
O crescimento econômico é requisito para o equilíbrio financeiro da Previdência, pois suas receitas incidem sobre a folha de salário, o faturamento e o lucro das empresas. A recessão deprime as receitas e o inverso ocorre com o crescimento. Sem crescimento, não é apenas a Previdência que quebra, mas também o Estado brasileiro, incluindo a União, os estados e os municípios.
Com o crescimento, as possibilidades de financiamento podem ser potencializadas pela inclusão dos trabalhadores informais. Em 2014, 37,7% da população ocupada estava fora do sistema, não contribuía e não terá proteção na velhice.
O equilíbrio financeiro pode ser obtido pelo reforço da capacidade fiscal pela maior equidade na contribuição entre classes sociais. Em 2015, o governo federal gastou R$ 502 bilhões em juros e deixou de arrecadar R$ 260 bilhões por conta das desonerações e R$ 456 bilhões em função da sonegação, efeitos da frouxidão fiscalizatória que fez o estoque de dívida ativa da União atingir R$ 1,8 trilhão. Em vez de punir os maus pagadores, o governo decidiu premiá-los, lançando novo programa de parcelamento dos débitos e editando medida que presenteia os produtores rurais inscritos na dívida ativa da União. Contraditoriamente, nesse caso não se veem esforços para “Reformar para Preservar” nem para “Reformar para Garantir o Futuro”.
O mesmo propósito seria mais facilmente obtido se se enfrentasse a questão dos juros, das desonerações e da sonegação, o que potencialmente abriria espaço para economizar parte dos R$ 1,26 trilhão transferidos para as camadas de maior renda. Se a questão fiscal é grave, por que não caminhar nesse sentido, em vez de destruir a Previdência para economizar nos próximos dez anos R$ 67 bilhões por ano, como diz o governo? Se a Previdência está quebrada, por que isentar de contribuição vários setores? E por que premiar sonegadores?
O equilíbrio financeiro da Previdência também requer que se faça uma reforma tributária que promova justiça fiscal (Gobetti e Orair, 2016) e, sobretudo, que se enfrentem as inconsistências do regime macroeconômico. A “pós-verdade” garante que o desajuste fiscal é provocado pelos gastos sociais (déficit primário). A realidade escancara que, em função dos juros, entre 2013 e 2015 o déficit nominal mais que triplicou (de 3% para 10,3% do PIB) e a dívida bruta passou de 56% para 70% do PIB. A contribuição do déficit primário para o déficit nominal (10,3% do PIB) foi de apenas 1,9% do PIB.
Reforma apoiada em mitos
A PEC n. 287 tem sido apresentada sempre apoiada em mitos. Desde 1989 os críticos desenvolvem campanha ideológica para demonizar a Previdência. Essa marcha contempla falácias diversas – por exemplo, a de que o Brasil “não exige idade mínima para a aposentadoria”. Essa suposição desconsidera o que diz o artigo 201 da reforma previdenciária realizada em 1998 (Emenda Constitucional n. 20). Desde então, são duas as possibilidades de aposentadoria:
– Aposentadoria por idade para o trabalhador urbano, concedida aos homens com 65 anos e às mulheres com 60 anos (mais 15 anos de contribuição). Os trabalhadores rurais podem se aposentar aos 60 e 55 anos, respectivamente. Assim, desde 1998, o Brasil exige idade mínima, que, no caso do trabalhador urbano, era superior à praticada por diversos países desenvolvidos. Atualmente, a maior parte das aposentadorias é por idade (64% do total, ante 36% das aposentadorias por tempo de contribuição).
– Aposentadoria por tempo de contribuição, que exige 35 anos para homens e 30 anos para as mulheres, um período severo comparado à carência mínima adotada em muitos países desenvolvidos. Essa regra restritiva é agravada pela incidência do fator previdenciário, criado em 1999, que suprime uma parcela do valor do benefício até que o contribuinte atinja 65/60 anos. Além disso, a reforma dessa modalidade foi feita em 2015 (Lei n. 13.183), quando se introduziu a Fórmula 85/95 Progressiva. Em 2026, passará a vigorar a Fórmula 90/100, uma combinação (idade/contribuição) semelhante à adotada em países da OCDE.
O segundo mito – “a aposentadoria é precoce” – considera a média de todos os tipos de benefícios (por idade, por tempo de tempo de contribuição, rurais, urbanas, homens e mulheres), chega à média de 59,4 anos e compara-a com a média da OCDE (em torno de 65 anos). É um truque que mascara as especificidades de cada situação. No caso da aposentadoria por idade do segmento urbano, por exemplo, a média é de 63,1 anos (em geral os homens se aposentam com 65 anos, e as mulheres, com 60 anos), um patamar já próximo das nações desenvolvidas.
O terceiro mito – “a Previdência é generosa” – tenta, mas não se sustenta. Como já mencionado, desde 1998 a maior parte das aposentadorias não é precoce, e a aposentadoria por idade (65/60 anos), quando introduzida em 1998, era superior à praticada em países da OCDE, como a França, que até hoje exige 62 anos.
Reforma draconiana sem paralelo
A PEC n. 287 unifica as regras para todos os segmentos, acabando com diferenciações previstas pela Carta de 1988, dadas as assimetrias entre gêneros e entre campo e cidade. Aprovada a reforma que se vê no horizonte, homens e mulheres, rurais e urbanos, trabalhadores privados e servidores públicos terão de comprovar idade mínima de 65 anos e 49 anos de contribuição para terem acesso à aposentadoria com valor integral. Nesse caso, será preciso entrar no mercado de trabalho com 16 anos e permanecer no emprego formal por 49 anos ininterruptos. Se estudar e começar a trabalhar com 24 anos (média da OCDE), terá aposentadoria integral aos 73 anos.
Para ter direito à aposentadoria parcial (75% do valor), exige-se idade mínima de 65 anos e contribuição de 25 anos. Quem tem menos de 50 anos (homens) e 45 anos (mulheres) submete-se às novas regras. Quem tem idade maior terá de contribuir por um período 50% maior.
A idade mínima de 65 anos é móvel. Ela será ampliada sempre que aumentar a expectativa de sobrevida aos 65 anos. A reforma proíbe o acúmulo de benefícios e impõe regras severas para pensão por morte, aposentadoria por invalidez e aposentadoria especial.
Uma das maiores crueldades é a elevação da idade (de 65 para 70 anos) e a desvinculação do piso do salário mínimo para o Benefício de Prestação Continuada (BPC) dirigido aos idosos mais vulneráveis (renda familiar per capita de um quarto do salário mínimo) e portadores de deficiências.
Principal mecanismo da proteção social
O documento referido no início, que será lançado em fevereiro, alerta para a evidência de que a PEC n. 287 representa grave ameaça de destruição de um dos principais vetores da proteção social brasileira, o que poderá ampliar ainda mais a pobreza e a desigualdade.
A Previdência e a Seguridade beneficiam mais de 90 milhões e 140 milhões de brasileiros, respectivamente. A maior parte dos benefícios equivale ao piso do salário mínimo e 82% dos idosos têm proteção na velhice. A Previdência combate o êxodo rural, fomenta a agricultura familiar, promove a economia regional, tem papel redistributivo nos municípios mais pobres e reduz a desigualdade da renda e a pobreza. Sem a Previdência e a Seguridade, a pobreza extrema entre os idosos seria muito maior: em 2014, apenas 0,5% da população de 60 anos ou mais estava em situação de extrema pobreza; sem a Previdência, o BPC e as pensões, mais de 50% da população viveria em situação de pobreza extrema.
Extinção do direito à proteção na velhice
O contexto geopolítico do final da Segunda Guerra Mundial preparou o caminho que conduziu à inclusão da Seguridade Social como um dos direitos humanos na clássica Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. O ímpeto destruidor da reforma que se estuda no Brasil não preserva sequer o artigo 25 daquele documento monumental em favor da civilização, pois a maior parte dos brasileiros não gozará os benefícios do direito humano a um padrão de vida que assegure atenção à saúde e bem-estar a cada um e sua respectiva família, inclusive “o direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle”. Os trabalhadores ativos sem proteção jamais serão integrados, e a eles se juntará uma massa de trabalhadores expulsos por não terem capacidade contributiva e saúde para continuar no trabalho e por saberem que é inútil contribuir para fazer jus a um benefício inatingível.
O Brasil é o país da tragédia anunciada. A tragédia da desproteção social começa agora a ser tecida. As questões cruciais que deveriam orientar a reflexão da sociedade, dos parlamentares e do movimento social são: “Que país queremos?” e “Que país os reformistas projetam para o Brasil do século XXI?”.
QUEM GANHA COM A REFORMA
Em função do caráter restritivo da reforma proposta, grande parte dos trabalhadores de menor renda deixará de contribuir. Dissemina-se no seio da sociedade a correta percepção de que “se não vou usar, para que pagar?”.
Daí advêm duas graves consequências. A primeira é o aumento do universo dos trabalhadores sem proteção, além dos atuais 25 milhões (37,7% do total). A segunda é a quebra financeira da Previdência Social, pela retração das receitas provenientes das camadas mais pobres, intensificada pela fuga das classes mais ricas para o setor privado. Tanto quanto se pode avaliar hoje, essas duas consequências seriam os propósitos implícitos da reforma em estudo
PERGUNTAS E RESPOSTAS
É justo impor num país desigual regras mais rígidas que as praticadas em nações igualitárias?
Matijascic, Kay e Ribeiro (ver referências ao final do artigo) sublinham que, em países desenvolvidos, a idade de 65 anos “não é o mínimo, mas a referência”. Em geral, a carência mínima (que assegura o direito a receber o benefício parcial) é inferior à idade de referência (pensão completa). Em alguns países, a diferença é de oito anos. Da mesma forma, a carência mínima exigida (tempo de residência, tempo de filiação, tempo de cobertura ou 15 anos de contribuição) é inferior à carência de referência (tempo de contribuição em torno 35 anos).
É justo que o trabalhador rural do Nordeste do Brasil seja submetido a regras de aposentadoria mais exigentes que as aplicadas ao trabalhador urbano da Escandinávia?
Ao unificarem as regras para todos os segmentos, os reformistas desconsideram as desigualdades de gênero. Atualmente, as mulheres têm o direito de se aposentar com cinco anos a menos que os homens, em função das condições desfavoráveis enfrentadas no mercado de trabalho e pela dupla jornada que realizam. Eles também desconsideram as heterogeneidades da zona rural brasileira. Mais de 70% da pobreza extrema está situada na zona rural do Nordeste.
O que esperar de uma democracia que deixa sem proteção os membros mais vulneráveis da sociedade?
Uma das maiores crueldades em preparação no Brasil é a elevação da carência mínima de 65 para 70 anos, para a concessão do BPC a idosos socialmente mais vulneráveis (renda familiar per capita de um quarto do salário mínimo) e portadores de deficiências, que hoje beneficia mais 16 milhões de pessoas. Esse indivíduo, expulso do sistema, se chegar aos 70 anos, será condenado à pobreza extrema até que morra, pois receberá pensão inferior a um salário mínimo, de valor arbitrado pelo governo.
Por que não se deve buscar inspiração na OCDE
É uma impropriedade inspirar a reforma brasileira em modelos de países igualitários. Isso porque há um abismo a separar o contexto histórico e as condições de vida daquelas nações e no Brasil, sociedade com longo passado escravagista, de industrialização tardia e com incipiente experiência democrática. Essas diferentes condições traduzem-se em profundas desigualdades e heterogeneidades socioeconômicas, demográficas e regionais:
- Nos países igualitários, o índice de Gini é inferior a 0,30; no Brasil, é 0,52. O PIB per capita situa-se num patamar entre US$ 30 mil e US$ 61 mil; aqui, é de US$ 15 mil. O salário mínimo na Alemanha é cinco vezes maior que no Brasil.
- No Brasil, quase 50% da população ocupada é informal, o que não se verifica na OCDE. A rotatividade do mercado de trabalho é elevada: 50% dos trabalhadores brasileiros tinham menos de três anos no atual trabalho na comparação, por exemplo, com a Itália (20%). Na OCDE, os jovens entram no mercado de trabalho por volta de 24 anos; aqui, 45,9% dos homens urbanos e 78,2% dos homens rurais começam a trabalhar com até 14 anos.
- A expectativa de vida ao nascer no Brasil (75 anos) é mais de seis anos inferior à de muitos países da OCDE. No caso dos homens, ela é cerca de dez anos menor. O IBGE estima que o brasileiro só alcançará os parâmetros de nações da OCDE em 2060.
- No Brasil, a expectativa de sobrevida aos 65 anos é três anos mais curta que a verificada em muitos países da OCDE.
- A expectativa de duração da aposentadoria aqui é cerca de oito anos inferior à verificada em alguns países desenvolvidos.
- Aqui, a probabilidade de não atingir 65 anos de idade é 37,3%; no Canadá, é de 9,3%.
- Estimativas da Organização Mundial da Saúde (2001) apontam que no Brasil a probabilidade de vida sem saúde, no caso dos homens (20,2%), era mais que o dobro da verificada na Itália (9,2%).
- A média de anos de estudo aqui (7,6 anos) é inferior à da Alemanha (12,9 anos), por exemplo.
- A taxa de mortalidade infantil (antes dos 5 anos) no Brasil (16,4%) é mais de quatro vezes superior à de muitos países da OCDE.
- A expectativa de vida saudável aqui (64 anos) é quase dez anos menor que a da Itália (73 anos).
- Atualmente, as doenças crônicas respondem por mais de 70% das causas de mortes no Brasil. Essas ocorrências geram incapacidades e limitação das pessoas em suas atividades de trabalho e, com o envelhecimento, espera-se significativo aumento da incidência dessas doenças.
A gravidade desse quadro intensifica-se se olharmos essas desigualdades no contexto da heterogeneidade regional brasileira. A expectativa de vida ao nascer no Brasil (ambos os sexos) é de 75 anos. Mas em dezoito unidades da federação ela é menor que isso. No caso dos homens, em mais da metade das unidades da federação ela é inferior à média nacional (73,9 anos). Em 3.170 municípios, a expectativa de vida é menor que a média nacional.
Dos 5.565 municípios brasileiros, apenas 0,8% tem IDH semelhante ao das nações da OCDE (“Muito alto”) e 34% têm IDH próximo da média nacional (“Alto”). Os demais têm IDH “Médio” (40% do total), semelhante ao verificado em Botsuana e no Iraque; “Baixo” (24,6%), padrão verificado no Congo e na Nigéria; e “Muito baixo” (0,5%), algo próximo do Senegal e do Afeganistão.
*Eduardo Fagnani é professor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Cesit-IE-Unicamp) e coordenador da rede Plataforma Política Social (www.plataformapoliticasocial.com). E-mail: [email protected].
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 115 – fevereiro de 2017}