Regionalização da produção de TV nas capitais cresce, mas não convence
Pesquisa inédita do Intervozes mostra queda na produção regional de emissoras públicas e aumento de conteúdos locais nas emissoras privadas, com destaque para programas policialescos
Em 2009, o Observatório do Direito à Comunicação, projeto do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, lançou uma pesquisa que focou em um dos problemas do modelo de TV historicamente implementado no Brasil: a falta de regionalização da produção. O estudo indicou um baixo nível de regionalização nas produções das emissoras de TV nas 11 capitais estudadas: apenas 10,83% da programação semanal em média.

Quinze anos depois, com a adaptação e atualização da metodologia empregada no levantamento de 2009, o coletivo Intervozes revisita o mercado de televisão em novo estudo que aponta um salto na produção local média das emissoras de TV para 15,47% da programação semanal produzida localmente, incluindo emissoras afiliadas a redes públicas e comerciais. Isso representa, em média, 26 horas locais por semana por emissora.
A pesquisa estudou a programação de 59 emissoras geradoras, localizadas em todas as regiões brasileiras, nas cidades de Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Curitiba, Brasília, Cuiabá, Belém, Salvador, Recife, Natal e Fortaleza. Em 2009, foram analisados 58 canais de TV nessas mesmas capitais.As emissoras analisadas pertencem ou são filiadas às grandes redes nacionais da Globo, Record, SBT, Band e TV Brasil/TV Cultura-SP. O estudo ainda analisou três emissoras afiliadas à Rede TV. Contudo, não foi possível obter acesso à grade de programação local da RedeTV! para as demais cidades e suas próprias afiliadas.
Em termos gerais, a maior parte dessa programação local consiste em conteúdos jornalísticos, 37,17%, e policialescos, 31,5%. É preocupante o grande percentual de programas com apelos policiais na programação, sendo o segundo maior gênero encontrado na pesquisa. O Intervozes tem denunciado diversos casos de desrespeito aos Direitos Humanos nesse tipo de programa, como os que ocorreram na Paraíba.
O terceiro tipo de conteúdo mais frequente foi classificado como de gêneros diversos, com 9,58% do total. Esse grupo inclui programas de entrevistas de temática livre, debates, automóveis, turismo, direitos e cidadania, relacionamentos e atrações destinadas a um determinado público (jovens ou pessoas idosas).

Mas o crescimento registrado na pesquisa ainda é inferior à principal proposta de regulamentação da regionalização na programação de emissoras de TV brasileiras, engavetada há 10 anos no Congresso Nacional. O projeto de Lei 256/1991, da deputada Jandira Feghali (PCdoB/RJ), previa que a programação regional deveria corresponder a 30% da grade televisiva. Embora tenha sido aprovado na Câmara dos Deputados em 2003, o projeto não venceu o lobby dos radiodifusores e terminou arquivado em 2014, após 23 anos de tramitação.
É importante relembrar que a regionalização da programação está prevista no Capítulo V da Constituição Federal, sobre a Comunicação Social:
Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: II – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;
Mesmo com o amplo debate em torno do antigo PL 251/1991, esse preceito constitucional nunca foi regulamentado pelo Congresso Nacional, que permanece omisso em relação à necessidade de adequação da legislação de radiodifusão para atender aos princípios constitucionais. O setor ainda é regido pelo anacrônico Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962.
Emissoras Comerciais
Em 2024, os dados da pesquisa apontam que as 46 emissoras de TV ligadas às grandes redes comerciais têm ampliado os espaços destinados à produção local em suas grades semanais. Os programas locais ocupam agora, em média, 27,5 horas semanais por cada emissora, ou 16,43% do total da grade desses canais. Em comparação, em 2009 esse número era de 9,14%.
Nas emissoras privadas, os principais gêneros encontrados também foram o jornalismo e os programas policiais, com 41,24% e 36,66%, respectivamente. Seguidos de conteúdos esportivos, 6,75%, e de entretenimento, 6,35%, nas grades de programação.
Nesse cenário, uma das emissoras mais destacadas foi a TV Cidade, de Fortaleza, afiliada à Rede Record, que dedica 26,54% da sua grade com atrações locais. A programação inclui programas jornalísticos, esportivos e de gêneros diversos, mas a maior parte da programação local é dominada por programas policiais, que abocanham quase 38 horas semanais na grade da emissora. Isso sem considerar a percepção de que as reportagens “policialescas” têm influenciado a linguagem dos telejornais “tradicionais” em diversas cidades. Esse fato amplia o espaço das narrativas com viés policial no jornalismo das TVs abertas.
O fenômeno também é evidente em outra afiliada da Record, a TV Guararapes, localizada no Recife. A emissora destina 25,15% de sua grade a programas locais, com mais de 30 horas semanais dedicadas aos policialescos.
O destaque negativo é o SBT Pará, com apenas 5,21% da programação regionalizada, se restringindo a um jornal local de segunda à sexta, de 21 minutos. A Band Brasília e a emissora Pantanal, afiliada à RedeTV!, também apresentam baixos índices de produção regional, com 7,14% e 7,74%, respectivamente.
Emissoras Públicas
Enquanto isso, os ataques às emissoras públicas nos últimos anos refletiram diretamente na sua programação regional. Esses canais passaram de 25,5% da grade para produções locais em 2009 para apenas 12,08% em 2024, menos de 20,3 horas semanais por cada emissora, em média.
A crise enfrentada pela TVE do Rio Grande do Sul é um exemplo dessa situação. Em 2016, a Fundação Piratini, que administrava os veículos públicos estaduais, começou a ser extinta. Tanto a TVE quanto a Rádio Cultura passaram a ser controladas diretamente pela assessoria de imprensa do governo do estado, desmantelando toda a estrutura pública gaúcha. Hoje, a TVE-RS tem um índice de regionalização de 15,48%, ante 22,82% em 2009.
Nessas emissoras, o principal gênero encontrado foi os classificados como diversos, chegando a 34,16%, impulsionado pelos programas turísticos da TV Paraná Turismo, que, desde 2019, mudou seu foco para divulgação desse setor.
O jornalismo aparece como segundo gênero mais frequente na programação destas emissoras públicas, com 17,62%, seguido de programas culturais, que representam 17,4%.
Chama atenção a ausência de programação local da TV Brasil, emissora gerida pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC), em Brasília e no Rio de Janeiro. Nessas cidades, não há produção de nenhuma atração local, nem mesmo jornalística – toda a programação realizada pela emissora federal de TV nessas duas cidades é dedicada à grade de programação da rede nacional, indicado que elas funcionam como cabeça de rede. Mas já houve programação destinada a própria região anos atrás, como os telejornais locais. Desde 2016, a EBC vem sendo desestruturada, culminando até mesmo nos estudos para privatização durante o governo de Jair Bolsonaro. Neste atual momento, a emissora está em lenta recuperação, mas a programação local não parece ser prioridade, apesar de anunciar investimentos de R$ 110 milhões em editais para a compra de produção independente, mas não foi anunciada nenhuma reserva regional – o edital ainda não foi publicado.
Por outro lado, outras emissoras públicas se destacam positivamente. A Rede Minas regionaliza 32,74% da sua programação. Entre os destaques estão as produções culturais, com 15 horas semanais de atrações musicais e shows gravados. Outro destaque é a própria TV Paraná Turismo, com 30,65% de programação local, dedicada principalmente à promoção dos pontos turísticos do estado.
No Nordeste, o destaque é a TV Futuro, de Natal, afiliada da TV Cultura, com quase 20% de sua programação regionalizada. Essa emissora, apesar de estar em uma rede pública, é de uma Fundação privada e seu conteúdo reproduz a programação das outras emissoras comerciais, o que mostra a complexidade do campo público. Em Natal, ainda temos a TVU, da UFRN, afiliada à rede da TV Brasil, que tem um baixo índice de regionalização, alcançando apenas 6,85%. Outro destaque da região é a TV Ceará, que retransmite parte da programação da TV Cultura e da TV Brasil, tendo alcançado 19,64% de programação local, contra 15,97% em 2009. A TVE-BA, uma emissora tradicional da região, também teve uma queda em seu índice de regionalização, marcando 12,30% em 2024 em comparação com 14,78% em 2009.
A pesquisa
Nos dois estudos, de 2009 e 2024, são classificadas como produção regional ou local os programas realizados no estado da emissora que os veicula, direcionados à população da cidade de origem da emissora. Assim, diferencia-se a produção regional dos conteúdos produzidos para exibição nacional de emissoras chamadas de “cabeças de rede”, como a Globo e a TV Brasil, que, mesmo produzindo em suas sedes no Rio de Janeiro e em Brasília, por exemplo, destinam a maior parte de seu conteúdo à exibição em rede.
O estudo de 2024 contabilizou, ao todo, 1.533 horas semanais de programação regional nas emissoras avaliadas. Os dados foram coletados entre os meses de outubro a novembro de 2024.
Os resultados desta pesquisa são importantes para retomar a discussão sobre o cumprimento do preceito constitucional da regionalização. O sistema de mídia brasileiro precisa ser revisto conforme os princípios da nossa democracia, e isso traz à tona o modelo monopólico das redes nacionais existentes no país. A pluralidade da nossa mídia é diretamente afetada por essa baixa produção regional de conteúdo.
É inconcebível que após 36 anos da promulgação da Constituição, esse e outros dispositivos constitucionais da comunicação social não estejam regulamentados. A pesquisa completa está prevista para ser lançada pelo Intervozes em março de 2025.
Alex Pegna Hercog, Ana Veloso, Gésio Passos, Iano Flávio e Luciano Gallas – Pesquisadores e associados ao Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social