Relato da vivência na universidade pública de quem não é um idiota útil
Estamos diante de um governo que não está preocupado em solucionar problemáticas recorrentes; estamos vendo um descaso com as universidades, com enormes cortes que podem paralisar o ensino, como já anunciado por instituições como a UFT, que prevê a ausência de água e energia nos próximos meses, nos campi de todo o estado. As manifestações continuarão. Resistiremos, como os povos indígenas de todo o país, desde a invasão dos europeus.
Era outubro de 2008. Os pequis, frutos típicos do Cerrado, já estavam caindo do pé com cheiro e sabor marcantes, sol forte – 40 °C –, como é de costume por aqui. Esse é o Tocantins, o mais novo estado do Brasil, com apenas trinta anos, localizado no Norte do país, no centro geodésico, antigo norte goiano. Nesse cenário estava eu, jovem, estudante, com sonhos imensos, inclusive de ter uma formação acadêmica. E via na universidade pública do estado mais quente da federação a possibilidade de tornar meus sonhos uma história real de conquistas.
Antes de continuar essa história, preciso afirmar que há um consenso no jornalismo e na antropologia de que ninguém melhor para falar sobre determinada condição sociocultural do que aquele que vive imerso nessa realidade. Por esse motivo relato aqui minha própria história e as percepções que tive durante a trajetória acadêmica, da graduação à pós-graduação. Penso que, talvez, eu seria o retrato de uma parcela representativa de alunos, que perpassaram escolas públicas, vindo do interior do Brasil, de uma diversidade sociocultural e numa vontade de mudar determinada realidade por meio da educação. Busco, por fim, refletir os avanços e os desafios da universidade pública brasileira. E, claro, a triste situação das universidades federais atualmente.
Volto à história. Em 2008, quando aos 17 anos me preparava para o vestibular da Universidade Federal do Tocantins (UFT), eu ainda morava na pacata cidade de Figueirópolis, uma cidade interiorana com pouco mais de 5 mil habitantes no sul do Tocantins, a cerca de 250 km da capital, Palmas. Eu e a maioria dos meus colegas da escola pública almejávamos dias melhores, o que ia muito além do desejo de apenas ter uma profissão. Ao mesmo tempo tínhamos de lidar com os medos e as incertezas da juventude.
Reconheço que pré-vestibulandos de escolas públicas e particulares têm algo em comum: estão sempre mergulhados em inúmeras leituras e releituras. A diferença é que, enquanto os segundos estão preocupados apenas com os conteúdos escolares – português, matemática, física e a tal da química, tão complexa –, os primeiros precisam lidar com estruturas físicas escolares degradadas e professores desestimulados pelos baixos salários, sem falar nas realidades periféricas. Eu vi muitos estudarem com fome, outros vivenciarem violência em casa. Meninas trocavam os livros pela gravidez indesejada, os meninos trocavam a sala de aula pelo trabalho. Era evidente que o aprendizado deles estava comprometido. Problemáticas enfrentadas em escolas públicas que dificilmente são vistas em escolas particulares, isso é fato. O que interfere também no acesso à graduação.
Ora, se a educação básica não é de qualidade, dificilmente terão o mesmo acesso daqueles que tiveram bons ensinos. Nesse contexto, a disputa por uma vaga nos cursos de graduação é, quase sempre, desigual. Por esse e por outros motivos, são de extrema importância os programas educacionais de inclusão às universidades, como o sistema de cotas, o ProUni e o Fies, implantados e efetivados a partir da primeira década de 2000. Falarei mais sobre eles posteriormente. E, que fique claro, a educação das escolas públicas precisa melhorar, sim! Mas vale refletir: o que faremos com todos os alunos que não tiveram acesso ao ensino de qualidade ou passaram por inúmeras dificuldades sociais? Não podemos simplesmente deixá-los sem acesso.
Volto à história, ainda em 2008. Vários colegas da pacata Figueirópolis tentavam uma vaga na universidade pública do Estado, porém uma minoria conseguia. “Universidade federal é para quem estudou em escola boa”, dizia minha avó materna, à sombra de uma mangueira. Felizmente, a frase da minha avó, com o passar dos anos, já não era mais uma verdade absoluta. Graças às horas e horas em frente aos livros, com direito a fazer promessa para Nossa Senhora de Natividade (padroeira do Tocantins), e especialmente aos programas de inclusão às universidades, uma parcela significativa da população iniciou a graduação. Alguns em faculdades particulares, por meio do ProUni e do Fies. Outros, por meio do sistema de cotas para indígenas e quilombolas. Como foi meu caso. Você deve estar se perguntando se eu sou indígena ou quilombola. Sou Pankararu do Tocantins.
Figueirópolis é também onde vivem os Pankararu. Infelizmente, sem uma demarcação do território indígena. E, por isso, poucos sabem ou poucos os reconhecem. O Tocantins possui, em sua totalidade, onze etnias, sendo os Akwe-Xerente, Apinajé, Krahô, Krahô-Kanela, Karajá, Javaé, Xambioá, além dos Avá-Canoeiros, Atikum, Kanelas do Tocantins e Pankararu, originários de outros estados. Vale lembrar que cada uma dessas etnias tem suas expressões culturais próprias e difere uma das outra. Prova de que índio não é tudo igual. E o Tocantins também possui indígenas – frase crítica àquele termo preconceituoso “No Tocantins ou Norte do país não tem só indígenas”, que desconsidera a existência dos povos nativos.
Minha comunidade veio do extremo sertão de Pernambuco, expulsa por fazendeiros e posseiros de suas terras originárias, além da falta do que comer ou beber, como os outros milhares de nordestinos. Meu avô, tios e parentes vieram para Figueirópolis e Gurupi há mais de setenta anos, quando ainda éramos o antigo norte goiano. Vivemos numa luta e espera constantes por demarcação da nossa terra indígena e pela sobrevivência nos centros urbanos. Por vivermos nos centros urbanos de Figueirópolis e Gurupi, nossas tradições culturais foram sendo esquecidas pouco a pouco. “Sem terra, sem nossa cultura”, falava meu avô Manoel Pankararu. Minha mãe – Pankararu – casou-se com meu pai, que é gaúcho e agricultor familiar. “Então você não é índio, já que seu pai é gaúcho?”; “Então você não é índio porque nasceu na cidade?”. Equivocadamente me perguntam isso diariamente. Darcy Ribeiro foi sábio e incisivo ao dizer: “No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é”, reforçando que o grande problema é provar quem não é indígena, visto que a sociedade brasileira foi formada inicialmente por indígenas que aqui já estavam, sem desmerecer as outras comunidades importantíssimas na constituição da população brasileira, como os africanos. Entretanto, a sociedade nega, não reconhece e rejeita a ideia de sermos brasileiros e ao mesmo tempo indígenas. Sou, portanto, a prova desse hibridismo cultural, da diversidade, do conhecido termo “miscigenação” – prefiro usá-lo a apenas “descendente de indígenas”, visto que isso ignora o fato de “ser”. Indígena é primeiramente autoidentificação, valorização, pertencimento e respeito. Em resposta à segunda pergunta, é preciso entender de uma vez por todas que, além de ser um direito vivermos na cidade, nas aldeias ou em qualquer lugar, somos ainda brasileiros. Como já escrito, temos o direito de ir e vir (acrescento morar), resguardado pela Constituição Federal de 1988. As terras dos indígenas foram e estão sendo brutalmente invadidas, mas mesmo assim não podemos dividir o mesmo espaço com os não indígenas? Repense, isso pode ser um tanto preconceituoso.
Peço desculpas por me alongar nesse assunto. Mas vejo como extremamente relevante para este texto. A UFT foi a primeira entre as universidades públicas brasileiras a incluir o sistema de cotas. Uma luta que começou com representantes da União dos Estudantes Indígenas do Tocantins (Uneit), iniciada em 2001, mas que se efetivou apenas em 2004, por uma resolução que reservou 5% de vagas no vestibular para indígenas. E, em 2013, destinou mais 5% das vagas para quilombolas. De lá para cá, o sistema de cotas se tornou realidade. Além disso, graças ao sistema, alunos como eu puderam ter uma oportunidade maior na concretização do sonho da graduação. As barreiras da desigualdade estavam começando a se quebrar.
Volto à história, agora em 2009, quando efetivamente eu já estava na graduação e me apresentava como indígena para minha turma de Comunicação Social – Jornalismo. Naqueles primeiros meses de graduação, os equívocos, as “piadinhas”, os questionamentos preconceituosos surgiam a todo tempo. Ouvi de outros parentes indígenas: “É melhor não deixar claro que você é índio”. Tínhamos de viver, muitas vezes, num casulo pela sobrevivência, já que a universidade pública não estava ou muitas vezes não está preparada para receber essa pluralidade social. O corpo administrativo e o docente dificilmente sabem nos incluir no processo de ensino-aprendizagem. E, como a maioria dos ambientes sociais, as universidades trazem também consigo aqueles que insistem em achar que esses grupos e suas particularidades não existem e os negam. Depois de tamanha luta pelo acesso, o problema então era a permanência e a sobrevivência na universidade.
Nesse meio-tempo, já me deparava também com as dificuldades de outros indígenas. A escolarização de muitos era precária, já que as escolas indígenas sofriam (e ainda sofrem) com o descaso e a falta de investimentos. A educação indígena grita por mais investimentos. Por isso, muitos tinham dificuldades em língua portuguesa, matemática e tantas outras disciplinas cobradas no processo de graduação. Sem falar que estes vinham de difíceis realidades socioeconômicas. Morar, se alimentar e pagar transporte público eram as principais dificuldades. Em Palmas, até havia uma casa indígena para abrigar os alunos, mas a situação também era precária. Por esses fatores, os estudantes indígenas não permaneciam na universidade. Deixavam os cursos pelo meio. Eu precisava fazer algo.
Em 2010, resolvi colaborar para modificar essa realidade. Com ajuda de outro programa de inclusão acadêmica, o Programa Institucional de Monitoria Indígena (Pimi), passei a ser monitor e a ajudar no reforço escolar de acadêmicos. No entanto, isso ajudou apenas em parte, não na totalidade, pois, como escrevi, não havia apenas dificuldades no aprender, mas também aquelas problemáticas sociais que certamente influenciam no ensino-aprendizagem. Ou seja, para muitos, viver na cidade, sem trabalho, sem uma renda, em meio a preconceitos (até mesmo na academia), os distancia das universidades, da graduação. Portanto, aprendi nesse tempo que de nada adiantava o acesso à universidade se as políticas públicas universitárias ou governamentais não ajudassem na permanência e no fim da evasão.
Há muitos professores qualificados em suas áreas técnicas, mas a estrutura da universidade pública é precária, e a UFT me provou isso. Nos quatro anos da minha graduação (segundo semestre de 2009 ao segundo semestre de 2013), o que vi foram laboratórios defasados, uma biblioteca com poucos exemplares, salas de aula sem estrutura física adequada. A era da informática já estava a todo vapor e poucos sabíamos, na prática, de jornalismo on-line ou telejornalismo.
Nesse tempo de graduação, passei por três greves que atrasaram a conclusão do meu curso de quatro anos, greves essas iniciadas por professores, alunos e técnicos administrativos por melhores condições de ensino em todo o país, não apenas no Tocantins. Antes com greves do que à mercê de um descaso, sem nenhuma voz. Precisávamos ser ouvidos. “Máquina a vapor não é computador”. Eu nunca me esqueço desse grito de guerra dos alunos de Ciência da Computação, durante uma greve por equipamentos tecnológicos de qualidade. E tantos outros gritos foram entoados.
Por outro lado, o baixo investimento na estrutura não era uma realidade para todos os cursos. Enquanto Comunicação, Ciências da Computação e Arquitetura, por exemplo, tinham poucos laboratórios, estudavam em “blocos” antigos e degradados, do início da universidade (em 2001), e com poucos exemplares na biblioteca, nos cursos de Medicina e Engenharia Civil a realidade era bem diferente. Eram considerados internamente os mais beneficiados, com laboratórios novos, salas de aulas estruturadas e os acervos bibliográficos mais completos da universidade. Falta de equidade sempre foi notável entre os cursos de graduação.
Formei-me em 2013. A dedicação foi imensa durante os anos. As lutas foram diárias. A festa do término durou três dias. Era outubro, lá se ia mais uma temporada do pequi. Deixava para trás os mesmos problemas encontrados em 2009.
Tornei-me jornalista. Trabalhei desde então, de sol a sol, da produção ao fechamento de um jornal, de atendimento a construção de briefing publicitário. Nesse tempo, resolvi fazer uma pós-graduação, em 2015, e novamente por meio de um sistema de cotas para indígenas. Lá estava eu, retornando para a UFT, vendo as mesmas dificuldades deixadas em 2013, além de colegas com as mesmas ideias equivocadas sobre os povos indígenas. Mudam-se os tempos e os lugares, no entanto as problemáticas permanecem. O coitado do pequi sobrevive em meio às queimadas e ao desmatamento ilegal do Cerrado.
Em 2016, comecei o mestrado em Comunicação e Sociedade. Adivinha, na mesma universidade, na temporada do pequi – outubro. Os preconceitos estavam enraizados nos colegas e nos professores. Surgiriam novas lutas ou seriam lutas antigas? Sentia-me lá em 2001, quando meus parentes de diversas etnias lutavam pela inclusão do sistema de cotas na graduação. Dezesseis anos depois, lá estávamos nós, discutindo novamente o acesso de indígenas, negros e quilombolas. Havia doutores e pós-doutores contrários à inclusão, infelizmente. Mas, por fim, o direito foi respeitado. O sistema de cotas passou a ser uma realidade no Mestrado de Comunicação e Sociedade da UFT em 2018. Nesse tempo vi outros programas sociais sendo implementados. Vi concursos. Mais professores. Menos greves. Os laboratórios de jornalismo ficaram prontos, finalmente. Bolsas de permanência aos acadêmicos de escolas públicas, quilombolas, indígenas ou de baixa renda.
Porém, quando tudo parecia ir bem, eis que o caos se instala. Dois mil e dezenove chega com tantas notícias ruins para a educação. O Ministério da Educação (MEC) anuncia, em abril, corte nos repasses para todas as universidades federais. E as obras em andamento? Aquelas necessárias? E o principal, as bolsas que ajudam na permanência de tantos alunos com vulnerabilidade social? Como ficarão meus parentes: retornarão às suas casas, aldeias e comunidades? São tantos questionamentos, medos. Acadêmicos, professores, simpatizantes da educação superior foram às redes, com protestos em todo o país. E no Tocantins não poderia ser diferente. “Não somos idiotas úteis, ok, idiota inútil!?”, era o principal grito de guerra.
E o tempo do pequi? Tudo indica que este ano deve ter um florada bem mais tarde do que o normal e o gosto não será o mesmo de tantos anos, mas amargo, como o que estamos vivendo nos tempos difíceis.
Os problemas nas universidades públicas sempre foram frequentes, como se fosse a temporada do pequi (que acontece anualmente entre outubro e fevereiro). No entanto, neste ano de 2019 estamos vendo nossos direitos a uma educação superior, de acesso a todos e de qualidade, serem devastados. Triste. É como não ver a florada do pequi (sem flor, sem fruto). Estamos diante de um governo que não está preocupado em solucionar problemáticas recorrentes; estamos vendo um descaso com as universidades, com enormes cortes que podem paralisar o ensino, como já anunciado por instituições como a UFT, que prevê a ausência de água e energia nos próximos meses, nos campi de todo o estado.
As manifestações continuarão. Resistiremos, como os povos indígenas de todo o país, desde a invasão dos europeus.
Por aqui, 40 °C no Cerrado tocantinense. Volto para minha história em construção, para meus sonhos. Sou jornalista, especialista e mestre em Comunicação, tudo graças a uma universidade pública do Norte do Brasil. Pertenço à comunidade Pankararu do Tocantins. E, como tantos outros indígenas estudantes, tive uma oportunidade única, que não pode ser silenciada, tudo isso pelo nosso povo, nossas comunidades, por nosso país. Que o respeito, a solidariedade e a empatia prevaleçam, seja na terra dos pequis, seja em qualquer outra região do país. E que fique claro: não irão nos calar.
Elvio Marques é jornalista e mestre em Comunicação e Sociedade pela Universidade Federal do Tocantins (UFT).