Religião é coisa da terra
Influência religiosa nas eleições nos desafia a olhar semelhanças e não só diferenças entre católicos e evangélicos
Há alguns anos, Flávio Pierucci, pesquisador brasileiro, lembrava um clássico da sociologia da religião, Max Weber, segundo o qual “religião é coisa da terra”. Acompanhando o investimento da campanha eleitoral nas pautas religiosas, vemos, uma vez mais, o quanto ele tinha razão. Religiões são criações humanas e, portanto, fazem parte da dinâmica social. Não se restringem à esfera privada, à escolha individual de uma crença. São importantes agentes na esfera pública, presentes na economia, na cultura, na política.
Na história do Brasil, a Igreja Católica fez parte do Estado por quase quatrocentos anos, até a Constituição republicana de 1891, e seguiu mantendo influência. A partir do processo constituinte de 1988, no entanto, os evangélicos ganharam a cena pública, inaugurando um modelo corporativo confessional de representação política, concretizado na Bancada Evangélica no Congresso Nacional. De lá para cá, representantes políticos confessadamente católicos e evangélicos passaram a ocupar cada vez mais espaço no Legislativo.
Nas eleições de 2018, o apoio de lideranças religiosas a candidatas/os ao Executivo acentuou-se. O que marca a diferença entre contextos anteriores e o das eleições de 2018 e 2022?
Surge um Messias. Grupos religiosos ultraconservadores investem na figura de Bolsonaro como capaz de conduzir uma “nação cristã”, legitimada por uma maioria demográfica formada por católicos e evangélicos e apoiada por setores conservadores da comunidade judaica, mas sob a liderança político-pastoral dos evangélicos. Esse projeto político-religioso exclui da identidade nacional outras religiões, especialmente as de matriz africana, demonizadas e alvo de ataques violentos a seus templos e líderes.
No centro do discurso dos ultraconservadores é possível identificar uma contraofensiva moralizante que atualiza os sentimentos de ameaça aos valores do cristianismo. Ela inclui a defesa da família tradicional, branca, patriarcal e heteronormativa em contraposição às políticas de gênero e aos direitos conquistados por mulheres e pela população LGBTQIA+, a crítica a políticas afirmativas em nome da suposta meritocracia, propostas punitivistas para a segurança pública e uma adesão às políticas neoliberais.
A “defesa” de uma ordem social e religiosa “ameaçada” une a essa parte dos religiosos outros grupos sociais que buscam conservar privilégios e manter uma estrutura que perpetua as desigualdades sociais e econômicas, como determinados setores do agronegócio, do empresariado e dos militares.
A mentira vos libertará?
Esses segmentos religiosos reverberam com força sua agenda nas mídias tradicionais e nas redes sociais.
No Brasil, diferentemente de outros países da América Latina, parte do poder de igrejas e lideranças religiosas cristãs se fortaleceu por meio da distribuição de concessões de rádio e TV. Como mostra o Monitoramento da Propriedade da Mídia, 9 dos 50 veículos comerciais de maior audiência no país são de propriedade de igrejas e lideranças religiosas católicas e evangélicas. Esse número seria maior se a pesquisa tivesse incluído mídias religiosas de grande tiragem e circulação gratuita, como a Folha Universal, da Igreja Universal do Reino de Deus, que, em uma de suas muitas publicações a favor de Jair Bolsonaro (PL) nesta eleição, pergunta: “Por que Lula tem fama de ladrão?”.
Somam-se as redes sociais que impulsionam ainda mais a influência de religiosos no debate político. E, de modo geral, foram evangélicos e católicos conservadores que primeiro ocuparam esse espaço.
Influenciadores ultraconservadores advogam falar em nome de um cristianismo verdadeiro, pondo-se como anunciadores de uma suposta verdade da qual seriam portadores, e buscam esconder a heterogeneidade tanto do catolicismo como das igrejas evangélicas.
Nessa constelação de produtores de conteúdos encontram-se clérigos e leigos, tanto evangélicos quanto católicos. Entre os primeiros, podemos citar hits dessas eleições como o pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, o cantor e pastor André Valadão, da Igreja Batista da Lagoinha, e o jovem Nikolas Ferreira, que se tornou o deputado federal mais votado em todo o país, com apenas 26 anos. Dos segundos, os padres Paulo Ricardo, que já foi fotografado ao lado de Olavo de Carvalho, mentor de Bolsonaro, com uma arma na mão, Chrystian Shankar e Edvaldo Betioli, e o leigo Bernardo Küster, um dos principais disseminadores do conceito de “ideologia de gênero” no país.
Não é coincidência que o slogan de Malafaia em seu Twitter seja “uma voz em defesa da Verdade”, que o padre Paulo Ricardo faça propaganda para atrair novos alunos à sua plataforma com o intuito de ensinar “a verdade do catolicismo” e que um dos versículos bíblicos usados nas campanhas de Bolsonaro seja “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”.
No entanto, em sua cruzada contra o que consideram políticas de esquerda, esses influenciadores lançam mão de estratégias de desinformação, aproveitando os algoritmos das grandes plataformas digitais, que estimulam a multiplicação de conteúdo sensacionalista e discurso de ódio para lucrar cada vez mais, inclusive nestas eleições.
As postagens desinformativas nutrem sentimentos de perseguição, de defesa da fé e dos valores cristãos a qualquer custo, instigando o medo na população. Se nas eleições de 2018 a principal fake news se referia ao imaginário “kit gay” que seria distribuído nas escolas, em 2022 a “ideologia de gênero”, bem consolidada no imaginário brasileiro, divide espaço nos grupos de mensageria religiosos com construções discursivas igualmente fantasiosas como a “cristofobia”, a “perseguição aos cristãos” e o fechamento de igrejas, como mapeou o Coletivo Bereia.
Por outro lado, o combate à desinformação, garantia para uma sociedade democrática e com pluralidade e diversidade de vozes, passa a ser, no discurso desses grupos, “censura”, limitação à “liberdade de expressão”, “perseguição religiosa”, e até mesmo “cristofobia”.
O vídeo no qual o pastor André Valadão simulou que Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, havia determinado que ele se retratasse por acusações feitas a Luiz Inácio Lula da Silva é o exemplo mais dramático dessa estratégia de estímulo a uma “guerra santa” em que católicos e evangélicos ultraconservadores batalham do mesmo lado. Mas contra o quê e contra quem?
Amar o próximo como a si mesmo
No segundo turno das eleições, aumentaram as denúncias de que evangélicos/as que votam em Lula têm sido perseguidos dentro das próprias igrejas, que fiéis incomodados com o assédio bolsonarista e com a instrumentalização da religião pela política estão deixando de frequentar os templos, além de relatos de padres que, a exemplo do que aconteceu em Aparecida, foram questionados aos gritos por fiéis em suas próprias paróquias ao mencionar nomes como o de Marielle Franco ou o combate à fome e a defesa da democracia, pautas caras ao catolicismo oficial no Brasil.
Assim, a perseguição desencadeada entre os/as fiéis, sobretudo entre evangélicos/as que apoiam majoritariamente o candidato do PL à Presidência, parece se tornar maior à medida em que crescem também os apoios públicos de lideranças cristãs ao candidato do Partido dos Trabalhadores.
Evidencia-se, portanto, uma resistência interna à direita cristã nas próprias instituições que, historicamente, registram o conhecido apoio da Igreja Católica e de padres católicos à democracia e a pautas da esquerda, assim como o menor e menos conhecido apoio de lideranças evangélicas.
Nestas eleições, a crítica de evangélicos a pautas conservadoras tem se tornado mais visível. Na canção “Messias”, por exemplo, que juntou músicos evangélicos consagrados como Leonardo Gonçalves, Kleber Lucas e Clovis, os artistas, citando pregações de pastores que se posicionaram contra o bolsonarismo, defendem que a religião que o Deus cristão aceita é a que “cuida do órfão, do gay, do preto, da mulher” e criticam os “mercadores do templo” que apoiam um governo que estimula a violência e que contribuiu para a morte de quase 700 mil pessoas na pandemia da Covid-19.
Nesse sentido, católicos e evangélicos que podem ser definidos como progressistas têm também se posicionado a favor do Estado laico, entendido como aquele que respeita a liberdade religiosa e que permite o debate de agendas a partir de perspectivas seculares e a disputa por espaços de representatividade política de minorias sociais, sexuais, étnicas e raciais.
Religião como política no cotidiano
Mas como as fissuras internas do catolicismo e das igrejas evangélicas têm influenciado o voto?
Segundo o Datafolha, a identidade religiosa de candidatas/os tem sido um dos critérios de definição de voto nessas eleições: 49% de eleitoras/es afirmam dar importância à fé ou religião do/a candidato/a, embora apenas 22% digam que o apoio do líder religioso a um candidato afeta muito sua escolha. As pesquisas também apontam uma apoio de 66% de evangélicos/as a Bolsonaro no segundo turno, enquanto entre os/as católicos/as Lula é o escolhido por 58%.
No entanto, com razão, pesquisadores/as questionam a existência de um “voto evangélico”. Por exemplo, ao observarmos que são as mulheres, mesmo as evangélicas, as que mais resistem a legitimar o projeto bolsonarista, podemos dizer que na prática há inúmeros fatores a influenciar o voto, incluindo marcadores de classe, gênero, raça/etnia e território.
Além disso, se a existência de religiosos e leigos midiáticos tensionam a institucionalidade das religiões ao visibilizar posturas muitas vezes desatreladas das instâncias oficiais, como o Vaticano ou a CNBB no caso do catolicismo, facilitando o desenvolvimento de um cristianismo ultraconservador, vemos também emergir novas formas de vivência da religiosidade com visões progressistas que fogem das instituições tradicionais e de suas lideranças, como no exemplo citado da música religiosa.
Se religião é coisa da terra, e seguirá exercendo papel político independentemente do resultado das urnas, os próximos anos nos permitirão observar de que forma as dinâmicas internas do cristianismo podem acionar os afetos e racionalidades que movem a política.
Maria José Rosado Nunes é doutora pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais/Paris, professora da PUC-SP, pesquisadora do CNPQ e presidenta da Católicas pelo Direito de Decidir.
Olívia Bandeira é coordenadora do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, pesquisadora do LAR – Laboratório de Antropologia da Religião da Unicamp e pós-doutorada em Ciência da Religião na PUC-SP.
Brenda Carranza é professora visitante no PPGHS/FFP-UERJ, professora colaboradora no Departamento de Antropologia Social da Unicamp e co-coordenadora do LAR – Laboratório de Antropologia da Religião.