Renovação da licença da Ternium exclui a população e ignora violações ambientais
Instalada no Rio de Janeiro, a maior siderúrgica da América Latina busca flexibilizar ou excluir condicionantes que há mais de uma década seguem descumpridas
Responsável por mais da metade das emissões de gases de efeito estufa do Rio de Janeiro[1] (um dos dez municípios brasileiros que mais emitem GEE, de acordo com informações divulgadas pelo Observatório do Clima em junho deste ano), a Ternium Brasil aguarda a conclusão do processo de renovação da sua licença de operação. Instalada no bairro de Santa Cruz, zona oeste da capital fluminense, a maior siderúrgica da América Latina busca flexibilizar ou excluir condicionantes que há mais de uma década seguem descumpridas. O pedido apresentado ao Instituto Estadual do Ambiente (Inea) ignora as denúncias apresentadas há quase uma década pelos moradores e tenta construir uma narrativa que reinventa o passado marcado por violações socioambientais.
Com o início de suas instalações em 2006, a empresa entrou em pré-operação em 2010. Operou a partir de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) – somente em 2016 obteve sua Licença de Operação. Por mais de uma década, a Ternium Brasil (antiga TKCSA),[2] que também já teve a mineradora Vale como acionista, foi responsável por diversos impactos na região, afetando a biodiversidade, comprometendo a atividade pesqueira e prejudicando a saúde dos moradores.
A série de violações cometidas pela empresa gerou reação da população e de órgãos públicos, resultando em ações judiciais e um TAC, firmado entre o poder público estadual e a siderúrgica em 2012. Mas, como atesta o próprio documento apresentado pela Ternium para solicitar a renovação da licença, grande parte dos problemas existentes no passado seguem sem solução definitiva.
Assim, o Instituto Pacs, o Instituto Direito Coletivo e a Justiça Global apresentaram em dezembro de 2021 uma manifestação ao Inea elencando uma série de inconformidades na atuação da empresa e solicitando ao órgão a suspensão de qualquer decisão enquanto não houver readequação às leis descumpridas. As organizações alegam que há o descumprimento de pontos relevantes previstos desde a época da primeira versão do TAC e que as informações técnicas apresentadas pela Ternium são insuficientes para avaliar o pedido de renovação da sua licença.
“Com relação à gestão dos efluentes líquidos, desde a redação original do TAC 02/2012, o Inea vem registrando inconformidades por parte da siderúrgica. Foi constatada a contaminação de águas pluviais nas canaletas de drenagem, bem como o lançamento irregular de efluentes, devido não só a problemas operacionais, mas também de questões estruturais ligadas ao projeto do complexo industrial”, aponta a manifestação entregue ao Inea.
O documento também cita o próprio Relatório de Vistoria do órgão, de 2019, em que foram identificadas duas condicionantes não atendidas: uma sobre os critérios e padrões para lançamento de efluentes líquidos e outra sobre a proibição do lançamento de resíduos na rede de drenagem ou nos corpos d’água. Esse descumprimento se refere à inadequação dos endereçamentos oferecidos pela Ternium para a gestão de seus efluentes e a incapacidade de gestão do cianeto, respectivamente.
População é ignorada
Um dos principais pontos que a manifestação destaca é a ausência de participação popular nas etapas do processo de renovação da licença de operação da Ternium. As organizações que assinam a manifestação sugerem ao Inea que garanta a participação da população atingida, a partir de algum mecanismo de interação direta no processo. Uma das possibilidades é a formação de uma comissão que inclua os moradores, Defensoria Pública, Ministério Público e um corpo técnico especializado e independente.
A exclusão dos moradores nesse processo faz com que a Ternium construa uma narrativa diferente da realidade vivenciada pela população local. O anúncio de melhorias para reduzir o despejo irregular de efluentes líquidos nos rios ou de emissão de partículas tóxicas e gases que provocam o efeito estufa não corresponde ao que é vivenciado pelos moradores.
De forma recorrente, a população local denuncia o aumento da emissão de poluentes, sobretudo durante a madrugada, onde a possibilidade de fiscalização é reduzida. Para avaliar o cumprimento da legislação ambiental, a Ternium foi obrigada a monitorar sua emissão de gases. No entanto, como atesta o relatório emitido pelo Inea em 2019,[3] tal medida não vem sendo cumprida a contento. As justificativas apresentadas pela empresa para a inconstância desse monitoramento vão desde um “desligamento acidental” do sensor, falta de energia e até motivos de “força maior”.
A poluição ignorada pela siderúrgica é sentida no dia a dia da população. Além de relatos sobre o aumento dos problemas respiratórios entre os moradores e de casos de câncer e infecções, a emissão de materiais poluentes pode ser vista no céu e nas casas, através de partículas escuras que alcançam as plantações dos quintais, as roupas e os corpos dos moradores.
“Eles falam que tá tudo bem, tá tudo certo, que dá pra respirar. Mas se está atingindo as frutas, imagine a gente”, afirmou Dona Regina, moradora habituada com o aparecimento de manchas escuras nas frutas do quintal, onde recorrentemente cai um pó preto derivado da poluição industrial. Um vídeo que circulou nas redes sociais, publicado pela Associação de Pescadores do canal do Rio São Francisco, também denuncia o despejo irregular de efluentes que contaminam a baía de Sepetiba.
Morador antigo do bairro, o pescador Jaci lamenta a dificuldade de sustentar a família, diante da impossibilidade da pesca. “Ali onde eles montaram o píer, as estacas, as plataformas, era um berçário de camarão que os peixes vinham comer e a gente pescava. Até robalo chegava. Hoje, acabou. Bagre até acha um pouco, mas com a cabeça mole, por causa da química, porque não conseguiu se desenvolver”, afirma.
Tal descaso revela uma prática habitual da empresa, de postergar e nunca solucionar em definitivo suas violações. Conforme manifestação apresentada ao Inea, há um esforço da empresa, em seu pedido de renovação da licença de operação, de caracterizar suas insuficiências e violações como pontuais. Porém, a totalidade dos problemas apresentados pelo órgão ambiental estão ligados às obrigações que têm origem no TAC de 2012.
Cumprir a lei virou benevolência
Ao anunciar seu Programa de Melhorias para Tratamento de Efluentes e Drenagem de Águas Pluviais, a Ternium reconhece os problemas que resultam na contaminação dos rios. Condução de dejetos sólidos para a drenagem pluvial, deficiência no sistema de lavagem dos gases do alto-forno e falhas nos seus equipamentos e serviços são apontados pela própria empresa.
No entanto, a siderúrgica promete soluções por meio de grandes campanhas publicitárias que trazem a ilusão de que seus investimentos são voluntários, uma espécie de favor que vai além de suas obrigações. Soma-se a isso os programas que a Ternium executa junto aos moradores de Santa Cruz, como aulas de balé, corrida de atletismo e doações. Supostos investimentos também são divulgados como parte de sua política de responsabilidade socioambiental.
Nessa estratégia, a empresa afirma desenvolver ações em acordo com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) – metas definidas pela ONU – com a finalidade de ampliar o prazo de sua licença. No entanto, a maioria dessas ações correspondem às medidas de adequação exigidas pelo Inea por meio do TAC de 2012 e a outros acordos com órgãos municipais. Portanto, são obrigações, não voluntarismo.
Mudanças climáticas
A Ternium Brasil produz até 5 milhões de toneladas de placas de aço por ano. De acordo com a Agência Internacional de Energia, a produção de aço é a indústria que mais consome carvão e a segunda maior em consumo de energia. “É um exemplo emblemático de como a industrialização global baseada em queimas de combustíveis fósseis contribui para o aquecimento local”, afirma Ole Joerss,[4] pesquisador sobre mudanças climáticas e siderurgia para o Instituto Pacs.
Os impactos da elevada emissão de CO2 na cidade do Rio de Janeiro já era discutida por Seu Ozeas, pescador que faleceu no início de 2022, aos 90 anos. Crítico à presença da Ternium em Santa Cruz, ele já percebia as mudanças que vinham ocorrendo na região:
“Aqui temos a restinga da Marambaia que garante que o mar grosso fique na restinga, depois vem a baía. Da última vez que eu fui, estava uma alturinha dessa assim para passar por cima. Se vier um vento forte, de 150 km, a água vai passar por cima. Se passar por cima, alaga, e vai levar as casas nas pedras. Vai pegar isso aqui onde eu moro, tudinho. Não acreditam no que eu falo, mas eu tenho medo disso. Eu fui lá da última vez e vi. A gente vê a água batendo por cima da restinga. Ela fica mais alta que a restinga quando venta.
Não passou ainda. Mas provavelmente vai passar. Vai ser o que vai destruir a droga da (TK)CSA. Não vai ser nem eu, nem você, nem ninguém que tiver ali, vai ser a água. Então eles vão ter que fazer um dique na Pedra de Guaratiba até Itacuruçá. Isso é o que eu acho que eles deviam estar fazendo.
Eu já falei isso para eles. Há muitos anos. Falei quando eles entraram aí. Eu falei, vocês estão fazendo um processo que não é assim. Ali é baixo. Eles aterraram. Mas aterro de dois, três metros, não é aterro pro mar não. A água tá subindo.”
Confirmando a preocupação de Seu Ozeas, a prefeitura do Rio de Janeiro classificou Guaratiba e Santa Cruz como as áreas de maior risco relacionado à elevação do nível do mar e ao perigo climático de inundação, conforme divulgado no Plano de Desenvolvimento Sustentável e Ação Climática da Cidade do Rio de Janeiro. O documento da Prefeitura também aponta Guaratiba como uma das quatro regiões identificadas como de “impacto máximo” em relação à elevação do nível do mar. A estimativa é de que em 2030, nos bairros de Guaratiba, Campo Grande e Santa Cruz, 94% do território esteja exposto a ondas de calor, 27% a inundações e 25% a deslizamentos de terra.
[1] Dados do “Monitoramento das Emissões de Gases de Efeito Estufa da Cidade do Rio de Janeiro: 2012 a 2017” indicam a emissão anual de 20,56 MtCO2, enquanto que a Ternium emitiu 11,63 MtCO2, de acordo com o “Inventário de Emissões de Gases de Efeito Estufa (2017)”, divulgado pela empresa.
[2] A ThyssenKrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA) foi vendida para o grupo Ternium em 2017.
[3] Parecer Técnico PT GEAR 14/2019
[4] No artigo “Qual o preço do desenvolvimento?”, o pesquisador apresenta dados sobre a emissão de gases de efeito estufa e analisa o papel da Ternium Brasil dentro da cadeia de produção global da Ternium. Disponível em: http://biblioteca.pacs.org.br/wp-content/uploads/2021/12/MassaCritica_Mudan%C3%A7asClimaticasTernium.pdf
[5] Previsão apontada pelo estudo “Climate Change and Cities” (2018), que contou com a participação do Instituto Oswaldo Cruz e da COPPE/Universidade Federal do Rio de Janeiro.