O (des)conhecido universo das prisões federais: reflexões sobre a repercussão das fugas em Mossoró
Na medida em que, diariamente, aumentam os números de agentes policiais ao redor do Presídio de Mossoró, aumentam as dúvidas sobre o funcionamento da unidade
A fuga realizada por duas lideranças do Comando Vermelho no presídio de segurança máxima de Mossoró chamou a atenção da sociedade para um outro contexto carcerário, que tem ainda mais desconhecimento ao seu redor: o das unidades prisionais federais. O sistema prisional brasileiro, anunciado em diversos meios de comunicação como um organismo em crise, possui uma “ilha” que, até então, era de ordem pouco explorada.
Francisco Crozera, em seu texto “Onde começam os massacres?”, fala sobre como as questões das prisões preocupam a sociedade prioritariamente quando elas extrapolam os muros em nossa direção e, no caso da administração dos presídios federais, não foi diferente. Aquele que era posto como intocável chamou a atenção quando a sua estrutura de segurança se mostrou falha.
Entre as dúvidas, suspeitas e peças soltas que precisam ser encaixadas durante a investigação, essa fuga trouxe outra questão à tona: o pouco (ou quase nada) que se sabe sobre o funcionamento do sistema prisional federal. O projeto, que teve a primeira de 5 unidades inauguradas em 2006, nunca havia figurado como ambiente de evasão, sendo este o primeiro registro de fuga ao longo de quase 18 anos de existência. Porém, recentemente, o sistema prisional federal tem sido foco das principais notícias do país enquanto a busca pelos fugitivos se alonga pelos dias.
Em termos genéricos, quando se trata do sistema prisional no Brasil, pesquisas e literatura especializada estão mais focadas na descrição do ambiente prisional de administração estadual, cujo cenário geral revela superlotação e tratamento desumanizado. Ao contrário, quando se trata de sistema de segurança máxima federal, há uma inevitável variação desse cenário, que revela ausência de superlotação e rebeliões.
As análises sobre o que pode ter auxiliado na fuga dos detentos têm esbarrado no desconhecimento gerado pelo obscurantismo desse cenário prisional federal. Por outro lado, algumas vezes se apoiam em hipóteses genéricas ou fundadas na realidade vivida em unidades prisionais de administração estadual. No entanto, apesar de ambos serem espaços de privação de liberdade, tais análises parecem evadir-se das inúmeras diferenças ao tratarmos unidades estaduais e federais.
O Sistema Penitenciário Federal teve sua missão instituída pela Portaria do Departamento Penitenciário n. 103, de 18 de fevereiro de 2019, voltada para o combate ao crime organizado, isolando suas lideranças e presos de alta periculosidade, por meio de um rigoroso regime de execução penal, salvaguardando a legalidade e contribuindo para a ordem e a segurança da sociedade. Nesse contexto, há profissionais do direito que dizem não ter segurança em afirmar quais os requisitos para um apenado ser transferido para o sistema federal, o que pode ser compreensível pelo uso “pontual” do equipamento e pela disciplina de execução penal e os estudos profundos da Lei de Execução Penal (LEP) não serem exatamente regra incontestável nas faculdades de direito.
É certo, todavia, que, mesmo com a recente alteração do dispositivo pelo Pacote Anticrime, a Lei 11.671/2008, que dispõe sobre a transferência e inclusão de presos em estabelecimentos federais de segurança máxima, não prevê critérios objetivos para condução de um apenado para as instituições de segurança máxima. Tal definição se deu pela inclusão de dispositivo complementar do artigo 3º da referida legislação, que dispõe sobre a necessidade de o apenado ser uma liderança ou atuar de forma relevante em uma organização criminosa e/ou participar de uma quadrilha ou bando com fins de práticas reiteradas de crime de violência ou grave ameaça.
A reprodução da ideia de que a fuga acontece em virtude de a população carcerária ser enorme, efeito atribuído à superlotação, fenômeno que dificultaria a vigilância, poderia ser considerada se estivéssemos tratando das unidades de gestão estadual, mas não é o caso. Os números mais recentes do SISDEPEN apontam 489 indivíduos nessas 5 unidades (cerca de 47% de ocupação), sendo destes 46 em Brasília, 115 em Campo Grande, 126 em Catanduvas, 134 em Porto Velho e 68 em Mossoró (cerca de 32% de ocupação), onde ocorreu a fuga. Considerando que cada uma dessas unidades tem capacidade para 208 internos em celas individuais, a tese da falta de cuidado pela superlotação não apenas não se sustenta como destaca o tratamento desigual ante o contexto penitenciário nacional.
Caso o problema que resultou na fuga seja estrutural, chama a atenção o fato de a unidade ter sido inaugurada no ano de 2009. As críticas gerais sobre falta de investimento nos sistemas prisionais não parece encontrar eco no sistema federal, já que uma reportagem do portal G1 aponta para um custo de aproximadamente 35 mil reais mensais por interno no sistema federal, quase 20 vezes a média do custo de um interno em unidades estaduais. Andrea Malcher, em reportagem do Correio Braziliense, cita como a fuga deu “novo gás” na discussão que visa proibir as “saidinhas” para os presos, mesmo que os internos do presídio federal já não tivessem esse direito. A dinâmica revela uma tendência ao populismo penal dissociado da realidade contextual, servindo o episódio como um argumento que, a partir de tratamento diferenciado para alguns, incide sobre aqueles para os quais a LEP é um livro de fantasia de forma mais dura. Aliás, o imaginário de descontrole das populações penitenciárias torna-se ainda mais latente, culminando em pautas que restringem ainda mais direitos de apenados.
O pouco domínio das informações sobre as prisões federais parece não se encerrar na sociedade civil, já que números recentes do relatório periódico da SENAPPEN indicam que não houve uma coleta e sistematização do tempo de pena daqueles acautelados nas 5 unidades. A informação não está disponível em 20% dos casos dos internos dos presídios federais, mesmo que estes não somem nem 500 indivíduos.
A unidade de segurança máxima, projetada para receber as maiores lideranças do crime organizado do país e indivíduos considerados de altíssima periculosidade, tinha 124 câmeras inoperantes de um total de 192, questão identificada pelo setor de inteligência do presídio em relatório do ano de 2021, situação também desconhecida pela SENAPPEN, ou conhecida e deixada sem solução até a fuga. Se a inoperabilidade das câmeras já havia sido constatada há anos através do relatório produzido internamente, deve-se, então, discutir os motivos que embasaram a ausência de reparo dentro de um contexto de segurança máxima.
Embora os cinco presídios federais custem caro e não estejam superlotados, têm parte da sua estrutura de segurança, vigilância e monitoramento comprometida. Apesar disso, abrigam indivíduos classificados como “de alta periculosidade” e estão cercados por um desconhecimento ainda mais profundo que o “sistema comum”. Desconhecimento alimentado por um desapreço pela figura do preso somado ao baixo quantitativo de indivíduos que atendem às exigências para serem transferidos.
Apesar de tudo isso, as buscas aos fugitivos e a tentativa de identificar responsáveis pelas falhas de segurança seguem a todo vapor e, tudo indica que, seja em um presídio federal ou estadual, as grades e as vidas que elas mantêm encarceradas só serão lembradas no próximo caso de repercussão – e talvez lá ainda não saibamos muito mais do que isso sobre essas histórias. Apesar dos esforços para compreender os eventos que levaram à fuga dos detentos e identificar possíveis falhas no sistema de segurança, persistem várias lacunas no entendimento do funcionamento das prisões federais. A falta de transparência e informações detalhadas sobre as operações e protocolos de segurança dessas unidades contribui para um ambiente de especulação e incerteza. Além disso, a complexidade das dinâmicas que envolvem as prisões federais, especialmente no que diz respeito à gestão de indivíduos considerados de alta periculosidade e líderes de organizações criminosas, torna ainda mais desafiadora a análise e compreensão dos eventos ocorridos.
A ausência de dados precisos sobre a duração das penas dos detentos nessas instituições, assim como a falha em manter em funcionamento adequado equipamentos de vigilância, como as câmeras de segurança, levanta questões sobre a eficácia e a adequação dos recursos investidos nessas instalações. Essas lacunas de informação não apenas dificultam a avaliação das condições de detenção e o cumprimento dos objetivos do sistema penitenciário federal, mas também suscitam preocupações sobre a prestação de contas e a responsabilidade das autoridades responsáveis pela administração dessas instituições, o que implica na necessidade de maior transparência. Em última análise, a recente fuga em Mossoró destaca a necessidade premente de uma investigação aprofundada e transparente, não apenas para garantir a recaptura dos fugitivos, mas também para abordar as deficiências sistêmicas que permitiram esse incidente e prevenir futuras ocorrências semelhantes.
A falta de informação transparente e acessível ao público também impede a sociedade de avaliar criticamente as práticas e políticas do sistema prisional, dificultando a identificação de possíveis abusos, violações de direitos e discriminações, emoldurada pelo argumento de garantia da ordem pública pela rotulação de determinados sujeitos como “de alta periculosidade“. A mobilização do argumento da segurança para justificar a falta de divulgação de informações sobre as decisões de transferência dos presos pode ser entendida como uma forma de manter o controle e a arbitrariedade no sistema, sem a devida prestação de contas à sociedade.
Na medida em que, diariamente, aumentam os números de agentes policiais ao redor do Presídio de Mossoró, aumentam as dúvidas sobre o funcionamento e sobre os procedimentos adotados na unidade, tornando todo esse cenário um ambiente ainda muito desconhecido.
Escapa a realidade de ser impossível contar com perfeição em algo que depende do ser humano imperfeito.