Vidas atravessadas pela prisão: o que sobra delas?
O rompimento com a sua “atribuição” social e todas as penalidades que o acompanham atingem o seu auge no cárcere, onde são impostas às mulheres condições torturantes
Maria*, mulher negra, mãe de dois filhos e moradora de uma comunidade distante do centro da cidade, onde é empregada doméstica, tem parte de sua rotina marcada pelo cárcere. Aos finais de semana, com uma sacola de alimentos, itens de higiene e roupas, pega o ônibus e se desloca por horas para visitar o marido que está preso. “Ele está pagando pelo que fez, mas não devia ser assim, tratado pior do que bicho”, pensa. Não sabe que quem paga é ela.
Quando um homem é preso, as vidas das mulheres que o rodeiam são profundamente afetadas pela prisão. Afora assumirem mais obrigações em suas vidas cotidianas, por não contarem mais com o apoio de seus companheiros e familiares, sentem o peso da responsabilidade pela própria pessoa privada de liberdade.
Para que uma mulher consiga representar o papel de cuidadora que lhe é exigido socialmente, o orçamento familiar, que antes contava com mais um fornecedor, precisa ser esticado para, além de cobrir as despesas da casa, assegurar visitas e itens básicos que serão entregues ao familiar encarcerado. Considera-se, ainda, que as mulheres que visitam as prisões são, em sua maioria (68,1%), negras, o que adiciona mais uma camada de vulnerabilidade, até porque elas possuem como renda mensal média R$ 1.948, cerca de 62% da média de renda mensal das mulheres brancas.[1]
Tais esforços fazem com que essas mulheres sacrifiquem tudo e tenham que lidar com muitos obstáculos para conseguirem arcar com o que lhes é imposto – malabarismos financeiro e temporal a fim de sustentar a casa e os filhos, estigmas da sociedade por ser relacionada a uma pessoa presa, agressões verbais e psicológicas durante as visitas por medo de retaliações a si ou a seus familiares. Suas vidas passam a existir em função do sistema punitivo – ainda que não estejam diretamente presas.
Do outro lado da cidade, encontramos Ana, mãe de três filhos, moradora de uma favela. Após uma busca pessoal motivada por uma suposta “atitude suspeita”, foi detida por portar uma pequena quantidade de droga. A sua conduta não envolvia nenhum tipo de violência a outra pessoa, nem sequer poderia ser considerada grave – mesmo assim, teve sua liberdade provisória negada e passou a responder, já presa, por uma ação penal que poderia resultar em uma condenação de até quinze anos de prisão.
Aquele processo de cuidado, sacrifícios e apoio à pessoa presa não se estende à Ana, e raramente se apresenta quando o alvo do encarceramento é uma mulher. Diferentemente das extensas filas observadas nas prisões masculinas em dias de visita, os sábados e domingos são solitários para milhares de mulheres privadas de liberdade.
Ana perdeu seus filhos para abrigos, porque o pai das crianças nunca lhe deu amparo e não havia uma rede de apoio para permanecer com suas crianças enquanto ela estava presa. Na cadeia, viu-se completamente só – nem o papel de mãe, que tanto se esforçava para desempenhar, pôde manter.
Assim como as outras mulheres que lhe fazem companhia em celas escuras, Ana possui um perfil socioeconômico pré-definido, em uma clara manifestação da prisão como uma perpetuação das opressões que ocorrem extramuros. O Relatório de Informações Penais da Secretaria Nacional de Políticas Penais revela que cerca de 65% das mulheres presas, no Brasil, identificam-se como pretas ou pardas, assim como 75% delas têm até o ensino médio incompleto, um indicador de baixa renda.
Ana e Maria são personagens fictícias, uma amálgama dos muitos casos de torturas e violências recebidos e acompanhados sigilosamente pela Pastoral Carcerária Nacional de mulheres encarceradas e familiares mulheres (87 casos no total vêm sendo acompanhados), a fim de proteger a identidade e segurança dessas mulheres.
Essa “atitude suspeita” atribuída a muitas mulheres em todo o país está intimamente ligada a esses dados. De fato, na maior parte dos casos, as interpelações policiais e as prisões decorrentes não são consequências de comportamentos reais que demonstrariam uma ameaça de delito, mas, sim, resultados de uma política criminal amplamente guiada por preconceitos raciais e de classe – e isso é notado, além de experienciado no cotidiano, por meio de dados, que apontam que pessoas negras possuem 4,5 vezes mais chance de serem abordadas pela polícia.
A soma do fator gênero a esse conjunto traz mais uma camada de condições sociais que devem ser consideradas quando se discute criminalidade e prisão. Enquanto a lógica punitiva brada que a função das polícias e do cárcere é reprimir crimes e trazer mais segurança à sociedade, o cenário das mulheres privadas de liberdade no país demonstra o objetivo real dessa política.
Constata-se, por exemplo, que a maioria das mulheres presas responde por crimes cometidos sem violência. Não obstante, nos últimos anos, o encarceramento feminino cresceu de forma vertiginosa (de 2000 até 2023, houve um aumento de cerca de 492%). Esse acréscimo, por sua vez, está amplamente relacionado à Lei de Drogas, sancionada em 2006, que tipifica o crime pelo qual respondem mais da metade das mulheres privadas de liberdade no Brasil.
Tais prisões, entretanto, ignoram o contexto das mulheres submetidas à sanção penal: não são raros casos de mulheres que cometem atos ilícitos para poder sustentar seus filhos, mais uma vez sufocadas por terem que lidar, sozinhas, com o papel de cuidado.
Contudo, independente do que façam, as atitudes dessas mulheres são vistas pela sociedade como uma quebra do estereótipo da feminilidade, de forma que elas têm seus locais de “mãe” e “esposa” questionados, sendo afastadas de seus filhos de forma arbitrária e sofrendo punições duplas, pois, além da reprimenda estatal, são censuradas por suas comunidades.
O rompimento com a sua “atribuição” social e todas as penalidades que o acompanham atingem o seu auge no cárcere, onde são impostas às mulheres condições torturantes, comuns a quase todos (ou a todos) os espaços de privação de liberdade: superlotação; agressões; convivência com ratos e espaços absolutamente insalubres; jejum forçado; racionamento de água, etc.
Também nas prisões, a dualidade do “ser mulher” torna-se mais latente: o fato de a pessoa privada de liberdade ser uma mulher (cis ou transgênera) é considerado para intensificar as violações praticadas contra ela – como as violências sexuais perpetradas por agentes penitenciários; em contrapartida, muitas vezes, o gênero também é ignorado, e com isso também as particularidades e as demandas ligadas ao ser mulher.
Essa realidade pode ser verificada a partir da pobreza menstrual vivenciada no cárcere, da negligência ao processo de hormonização de pessoas trans, ou da verificação de como se dá a gestação da mulher presa – em que a ausência de exames, de pré-natal, as diversas violências sofridas e a imposição frequente do parto observado por agentes de segurança pública são só exemplos dessas violações.
A prisão é, em si, uma violação de direitos, e o desamparo que atinge mulheres presas tem muitas consequências: além da intensificação do sofrimento decorrente da negligência do Estado para com as pessoas presas (as mulheres recebem com menos frequência de seus familiares os itens de necessidade básica, bem como apoio emocional e psicológico), outro problema decorrente é a invisibilização dessas mulheres.
As violações de direitos sofridas por mulheres são menos denunciadas, pois os principais responsáveis por comunicar as violências às autoridades são familiares das pessoas presas.[2] A escassez de visitas a mulheres privadas de liberdade, portanto, faz com que as violações se intensifiquem e se reproduzam com mais facilidade.
Além disso, a sensação de que há menos pessoas do lado de fora lutando por essas mulheres faz com que o Estado, habituado a cercear direitos e violentar pessoas presas, aja como se as vidas das mulheres privadas de liberdade tivessem menos valor.
Exemplos disso ocorrem diariamente nas prisões femininas. No Maranhão, a Secretaria de Administração Penitenciária transferiu todas as mulheres presas para uma única unidade: a Unidade Prisional de Ressocialização Feminina, em São Luís. Em um estado com dimensões consideráveis, mulheres foram transferidas em viagens de mais de 10 horas de duração, com pouco ou nenhum acesso a água e alimentos, em condições de segurança e higiene deploráveis. E vai além: não houve comunicação da transferência ao Judiciário, à Defensoria Pública, aos familiares ou até mesmo às próprias mulheres, a não ser poucos momentos antes de serem colocadas no camburão para enfrentar horas de deslocamento.
O descaso do governo com essas mulheres está calcado no sentimento de controle sobre seus corpos e na certeza de que a sociedade também as negligenciaria. Nesse caso em específico, porém, a sociedade (ou, ao menos, setores dela) se importou. A Defensoria Pública ingressou com Ação Civil Pública,[3] que ainda está em trâmite, e o assunto foi debatido em comitês nacionais de combate à tortura, o que pode proporcionar a essas mulheres um pouco de voz e, talvez, as aproximem do desencarceramento ou, pelo menos, de uma amenização dos abusos suportados.
Seja por meio da fome, da sede ou das agressões; todas essas impostas às presas; ou da imposição de esperar longas horas e custear itens que são obrigação do Estado, ou de lidar com humilhações; já essas direcionadas às familiares que visitam pessoas presas; as vidas das mulheres que percorrem esses espaços são repletas de violências inimagináveis, que sequer chegam a ser denunciadas. Ou, se são, as autoridades e a sociedade desconsideram seu valor, frequentemente legitimando-as por serem cometidas contra essa mulher que violou os pactos jurídico e social, a “bandida” ou a “mulher de bandido”, ambas não dignas de seu papel feminino.
As mulheres encarceradas e familiares merecem uma vida em que o seu destino não seja o cárcere, de forma direta ou indireta. Uma vida em que seus filhos e filhas não precisem dizer na escola que seu pai está preso, ou ter vergonha de dizer isso. Elas merecem não precisar pensar se vão ter o que comer, ou, pior, se terão o que dar de comer, no dia seguinte e, temendo que não, fazer de tudo para sobreviver e fazer viver os seus.
Para conquistar tudo que essas mulheres merecem, para fazer com que não precise “sobrar” nada de suas vidas porque elas e os seus têm tudo, temos de colocar no centro do debate o cárcere em si – ver sem o véu do punitivismo os muros das prisões e nos colocarmos à frente para derrubá-los.
Thainá Barroso, Mayra Balan, Isadora Meier e Carolina Dutra são assessoras jurídicas da Pastoral Carcerária Nacional.
[1] Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV).
[2] Segundo relatório da Pastoral Carcerária Nacional, por exemplo, considerando os casos denunciados por pessoas que especificaram sua relação com a pessoa presa, 73,5% dos denunciantes eram familiares.
[3] Ação Civil Pública nº 0818960-89.2023.8.10.0040, tramitando perante a 2ª Vara da Fazenda Pública de Imperatriz/MA