Respondendo à pergunta “você sabe o que é sentido figurado?”, do presidente Jair Bolsonaro
Nosso objetivo não é somente repercutir, mas sim responder à pergunta “você sabe o que é sentido figurado?”, de Bolsonaro. Ele resume o “sentido figurado” à língua portuguesa. Muitos de nós sabemos que ao falarmos de sentido figurado, sugerimos uma interpretação simbólica e variada com relação ao sentido original ou literário
O assassinato a tiros na madrugada do domingo (10/07/2022) do tesoureiro do PT em Foz do Iguaçu Marcelo Arruda domou as discussões políticas nessa segunda-feira (11/07/2022). Foi notícia reproduzida em TVs, jornais e internet. No Palácio do Planalto, o presidente Jair Bolsonaro se aproximou dos jornalistas e ficou irritado ao ser interrogado sobre o assassinato do Marcelo Arruda, pelo policial penal Jorge Guaranho, simpatizante do bolsonarismo. “Agora, o que é que eu tenho a ver com a mor…, com esse episódio de Foz do Iguaçu?”, questionou o presidente a uma repórter. O motivo da irritação foi uma repórter perguntar: “o senhor chegou a falar no passado sobre fuzilar petistas. O senhor acha que essas declarações não têm relação com o que aconteceu no domingo?”, então, Bolsonaro a retrucou: “você sabe o que é sentido figurado? Você sabe o que é sentido figurado?”, e a repórter respondeu que “a população tem consciência…”, mas Bolsonaro voltou a questioná-lo: “você acha que, você sabe o que é? Você estudou português na tua faculdade ou não?”, e a repórter disse: “estudei”.
Nosso objetivo não é somente entrar nessa grande repercussão, mas sim responder à pergunta “você sabe o que é sentido figurado?”, de Bolsonaro. Ele resume o “sentido figurado” à língua portuguesa. Muitos de nós sabemos que ao falarmos de sentido figurado, sugerimos uma interpretação simbólica e variada com relação ao sentido original ou literário. É nesse aspecto que podemos compreender as metáforas enquanto instrumentos elaboradores de imagem. Nos textos literários, o sentido figurado aparece exatamente para induzir a palavra a dizer mais, anunciar melhor os sentimentos e as emoções, alargar ideias e raciocínios. Grosso modo, sentido figurado é metáfora, na acepção de que metáfora é uma figura de linguagem, mais particularmente uma expressão com sentido figurado.
Mas por que nos estendermos para algo tão óbvio como esse? Pelo fato de que a pergunta de Bolsonaro é tão rasa que ele não sabe, ou talvez finja não saber, que metáforas, embora imaginárias, são intensamente reais, no sentido que interferem na realidade humana enquanto algo material. Nenhum discurso é neutro, a metáfora – com seu itinerário em anunciar melhor os sentimentos e alargar ideias de quem a produz – implica aquilo que denominamos de ideologia, principalmente ao se falar de política, Estado, Justiça, representante legal de uma nação, dentre outros correlativos.
Nessa perspectiva, por exemplo, é muito difícil alguém não compreender que a representação da estrutura de toda a sociedade é como um edifício que comporta uma infraestrutura (economia, trabalhadores…) sobre a qual se levanta a superestrutura (o Direito, o Estado, o Governo…) é uma metáfora. Como todas as metáforas, ou sentido figurado, sugerem a ver alguma coisa. Mas o quê? Que, em um edifício, os andares superiores (superestrutura) não poderiam “manter-se” no vácuo sozinhos se não se apoiassem de fato na sua base (infraestrutura).
A metáfora do edifício tem, portanto, como objetivo representar que os andares da superestrutura não são decisivos em última análise, mas que são determinados pela base. Então o Estado, que é uma das superestruturas sociais, carrega consigo aparelhos ideológicos para dominar o trabalhador, a economia ou a infraestrutura que o sustenta. Mas vamos logo ao ponto. O Estado é visto como repressor e como ideologia dominante para muitos, porém algo o distingue: o aparelho repressivo de Estado funciona pela violência, enquanto os aparelhos ideológicos de Estado funcionam pela ideologia. Mas cabe saber que o aparelho repressivo de Estado trabalha de uma maneira prevalente pela repressão, embora funcione secundariamente pela ideologia e vice-versa. Não há aparelho puramente repressivo ou aparelho puramente ideológico. O filósofo Louis Althusser pode nos dar um exemplo disso: “o Exército e a Polícia repressivos funcionam também pela ideologia, simultaneamente para assegurar a sua própria coesão e reprodução e pelos valores que projetam no exterior e, por outro lado, a escola e as Igrejas ideológicas ‘educam’ por métodos apropriados de sanções, de exclusões, de seleção etc. não só os seus oficiantes, mas as suas ovelhas. Assim a Família… Assim o Aparelho Ideológico do Estado cultural”[1].
Então, o Estado tem, em todas as suas formas, a ideologia. A questão é também que a ideologia era concebida como pura ilusão, puro sonho, isto é, nada. Toda a sua realidade estava fora de si própria. Era pensada como uma construção imaginária cujo estatuto era exatamente semelhante ao estatuto teórico do sonho nos autores anteriores a Freud. Para tais autores, o sonho era o resultado puramente imaginário, ou seja, sem ressonância com a realidade. Havia um resíduo de realidade, mas o sonho era o imaginário com resíduos da única realidade: a do dia. Com efeito, assim como o sonho, a ideologia não tinha história, mais especificamente que ela não tinha história própria.
Mas depois de Freud, a ideologia passa a representar a relação imaginária dos indivíduos com as suas condições reais de existência histórica[2]. Aqui envolve a ideologia religiosa, a ideologia moral, a ideologia jurídica, a ideologia política etc. enquanto “concepções do mundo”. E aqui é que entra também o entendimento de que do Estado é ideológico, e Bolsonaro é representante estatal, logo, a sua pergunta que há, por um lado, “você sabe o que é sentido figurado?” tem, por outro, os seres humanos que se representam sob uma maneira imaginária as suas condições de existências reais, com efeito, a ideologia tem uma existência material. Uma ideologia existe sempre nas suas práticas. Esta existência é material. Vide a ideologia religiosa que só pode existir frente aos seus rituais: ir à Igreja, ajoelhar-se, rezar, confessar-se etc., já ao crê na Justiça, submete-se a ela também, por exemplo. Em suma, se se crê em algo, terá comportamentos correspondentes nas práticas rituais desse algo.
Portanto, em qualquer caso, a ideologia reconhece, apesar da sua modificação imaginária, que as “ideias” de um sujeito existem nos seus atos e se isto não acontece, fará outras ideias correspondentes aos atos (mesmo perversos) que ele realiza escrevendo no seio da existência material ideológica, entendendo que, principalmente na política, só existe ideologia pelo sujeito e para sujeito. O sujeito é constituinte de toda a ideologia, mas, simultaneamente, o sujeito é constituído de toda a ideologia, já que a ideologia tem por função constituir sujeitos. É neste jogo de dupla constituição que se incide o funcionamento ideológico.
Longe de a ideologia do Estado ser algo “fantasmagórico”, ela funciona de forma a “recrutar” sujeitos entre todos os indivíduos, essa ação específica se denomina de interpelação material: se alguém na rua chama: “ei, você!”, nessa cena ficcional, o indivíduo interpelado volta-se. Por esta simples conversão de se voltar ao chamado, torna-se sujeito. Por quê? “Porque reconheceu que a interpelação se dirigia ‘efetivamente’ a ele, e que ‘era de facto ele que era interpelado’ (e não outro)” [3].
E a ideologia interpelante nos é sutil, pelo simples fato de que a ideologia nunca diz “sou ideológica”. É necessário estar fora de uma ideologia para poder dizer: “estou na ideologia”, caso extraordinário, mas não impossível. Portanto, se a ideologia interpela e constitui os indivíduos como sujeitos, então, agora apreendemos com profundeza a pergunta do repórter ao interpelar Bolsonaro: “o senhor chegou a falar no passado sobre fuzilar petistas. O senhor acha que essas declarações não têm relação com o que aconteceu no domingo?” Com efeito, se a ideologia de Bolsonaro matou Marcelo Arruda, ao mesmo tempo Bolsonaro dirá que não tem nada a ver com isso. É sabido que a acusação de se estar na ideologia só é feita relativamente aos outros, e nunca relativamente ao próprio.
Em suma, o indivíduo é interpelado como sujeito (livre) para que se submeta às ordens do Sujeito (com “S” maiúsculo), para que aceite (livremente) a sua sujeição, tornando-se “realizável sozinho” os atos da sua sujeição. Só existem sujeitos para e pela sua sujeição. Aceitar livremente a sua sujeição (leia-se: Jorge Guaranho) às “ordens” do Sujeito (leia-se: Bolsonaro) é preciso que sejam “desconhecidas” as próprias formas do reconhecimento de uma ideologia. Então, respondendo à pergunta de Bolsonaro: “você sabe o que é sentido figurado?” Sim, sei, é a função de “constituir” sujeitos, como um Jorge Guaranho, e não somente uma questão de língua portuguesa.
Marcelo Vinicius Miranda Barros é doutorando em Filosofia pela UFBA e autor do livro ‘Do reconhecimento ao corpo: diálogos entre Sartre, Hegel e Honneth’ (UFPel, 2021).
[1] ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa: Editorial Presença/Martins Fontes, 1980, p. 46.
[2] Em Psicologia das Massas e a Análise do Eu (1921), Freud opõe o exército e a igreja, o que seriam os aparatos repressivo e ideológico do Estado, respectivamente, para usarmos a lógica althusseriana, embora Freud não tenha teorizado sobre o Estado.
[3] ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa: Editorial Presença/Martins Fontes, 1980, pp. 99-100.