Respostas participativas frente aos conflitos socioambientais na América Central
Historicamente, os governos centro-americanos têm evitado a necessidade de adotar respostas legítimas, emancipatórias e sistêmicas às crises ecológicas e territoriais que atravessam suas fronteiras. Sobretudo, nos territórios dos povos indígenas
Começou em 25 de outubro de 2021 e durou 30 dias. O estado de sítio imposto pelo governo da Guatemala parecia ser o auge da repressão violenta e sistêmica do Estado contra a resistência das comunidades Maya-Q’eqchi, em El Estor. As comunidades denunciavam a extração e processamento ilícito de níquel na Mina Fénix – um elemento-chave para o desenvolvimento de energias renováveis. O metal tem sido extraído há décadas na região, mas ganhou importância quando a Guatemala se tornou uma das bases extrativistas da chamada “transição verde”. As comunidades exigiram o direito de serem consultadas sobre a presença desta mina em seus territórios e, em 2019, o Tribunal Constitucional decidiu a favor delas, suspendendo as obras da mina até que uma consulta fosse realizada.
Entretanto, com a criminalização dos protestos e a declaração de estado de sítio e de estado de prevenção em 2021, a intimidação das comunidades por parte do governo tem crescido. Ataques, prisões, perseguição a jornalistas e líderes comunitários, despejos forçados em comunidades vizinhas e uma consulta pensada para replicar os erros do passado. Em outras palavras, um espaço de participação cuja base é uma comunidade dividida e a seleção direcionada de quem irá participar da consulta. Acima de tudo, uma consulta desenvolvida por meio de estratégias de negociação que usurpam a possibilidade de deliberar sobre um futuro em troca de serviços básicos ou da esperança de pagamento de dívidas históricas, como a legalização de terras comunitárias.
A consulta prévia em El Estor resultou na reativação das atividades da mina em troca de um plano de desenvolvimento para a área. Porém, a história de como este mecanismo de consulta acabou sendo um espaço de negociação e desapropriação não é uma história isolada na América Central. Conflitos socioambientais eclodem em toda a região. Por isso, há necessidade urgente de compreender a conexão entre causas estruturais e as respostas implementadas pelos governos. Por exemplo, os mecanismos de participação autônoma ou institucionalizada, e sua capacidade intrínseca de influenciar e transformar as formas de governança centro-americanas diante de crises ecológicas e territoriais causadas por diferentes formas de extrativismo.
Como entender os conflitos territoriais e socioambientais na América Central?
Historicamente, os governos centro-americanos têm evitado a necessidade de adotar respostas legítimas, emancipatórias e sistêmicas às crises ecológicas e territoriais que atravessam suas fronteiras. Sobretudo, nos territórios dos povos indígenas. A exploração da natureza e os diferentes ciclos de colonização alimentam um modelo extrativista que prevalece em toda a região. Por sua vez, eles reproduzem o poder hegemônico e hierárquico de Estados que não reconhecem a plurinacionalidade de seus territórios – repetindo paradigmas ocidentais de mudança e ignorando as dependências coloniais ainda vigentes.
Apesar da binaridade por meio da qual estes conflitos geralmente são lidos, a América Central não ignorou completamente as tendências participativas das democracias regionais ou as tentativas de elaborar respostas deliberativas às mudanças climáticas e aos legados históricos do colonialismo. Nicarágua, Guatemala, Honduras e Costa Rica ratificaram o direito à consulta prévia – a Convenção 169 da OIT – durante a virada participativa dos anos 1990, na qual estratégias de descentralização e inovação democrática foram institucionalizadas em todo o espectro político latino-americano. A Convenção 169 estabeleceu que os governos devem incluir os povos indígenas em todos os processos decisórios que afetem seus territórios ou direitos coletivos.
A ratificação desta convenção tem dado frutos positivos em alguns territórios. Por exemplo, a implementação do processo de consulta em relação à construção do Projeto Hidrelétrico El Diquís na Costa Rica. Este foi o primeiro processo de consulta no país e inaugurou o Mecanismo de Consulta Geral, realizado por meio de um processo deliberativo entre o governo e os diferentes povos indígenas do território. Essa “consulta sobre a consulta” é inédita na América Central – envolve 120 espaços de cocriação entre o governo e todos os territórios indígenas na Costa Rica, desenvolvidos entre 2016 e 2018.
Para além do caso da Costa Rica, seria possível desenvolver um mecanismo participativo que possa responder à intensificação dos conflitos socioambientais em toda a região centro-americana? Seria possível fazê-lo em um contexto de crescente repressão violenta e erosão democrática? De depredação de territórios e dos corpos que os habitam? De suspensão das garantias democráticas (como foi o estado de sítio no El Estor)? De cooptação de processos que buscam fortalecer a deliberação e a ação comunitária?
Não é nenhum segredo que a América Central é uma região com altos índices de violência direta contra os defensores ambientais. De acordo com dados da Global Witness, um total de 233 líderes foram mortos entre 2012 e 2020. A maioria deles indígenas. Os países com as maiores taxas de assassinatos (per capita) são Honduras, Guatemala e Nicarágua – não por acaso, os países com os menores níveis de qualidade democrática e democracia deliberativa da região.
Em resposta, as comunidades locais – diretamente afetadas pelos projetos de mineração, pela expansão das monoculturas (por exemplo, palma africana, açúcar) e pela exploração dos rios devido ao aumento dos projetos hidrelétricos -, organizam-se e protestam contra o extrativismo e a contaminação da água, do ar e do solo. Elas exigem o planejamento, a implementação e, às vezes, o poder de convocação de uma consulta prévia. Elas se posicionam contra um modelo de governança que ameaça sua autodeterminação e um ambiente ecologicamente equilibrado. E embora os mecanismos de dissidência e legalidade subalterna que utilizam sejam muito semelhantes em toda a região (por exemplo, bloqueios, recursos de proteção legal, bloqueios de estradas, etc.), o tipo de consulta prévia que demandam e as formas pelas quais se envolvem em processos institucionalizados de participação são muito diferentes.
Isso pode ser explicado pelo fato de a América Central ser uma região muito heterogênea. Sua economia política varia conforme as reformas agrárias, os programas de conservação e a estabilidade ou instabilidade política. Em alguns países, como a Guatemala, El Salvador e Nicarágua, a história é marcada por conflitos armados extremamente violentos, cujas consequências ainda persistem nos territórios. Em parte, a história, as políticas e a qualidade democrática de suas instituições atuais definem como os conflitos ambientais se desenvolvem de forma diferente. Eles também definem como as respostas participativas a eles são projetadas e implementadas.
Enquanto Honduras e Guatemala são (per capita) os países mais violentos para os defensores ambientais do mundo, Costa Rica mal aparece em suas listas. Honduras e Nicarágua são consideradas autocracias eleitorais, enquanto a Costa Rica tem um dos mais altos índices de qualidade democrática na América Latina. Na Costa Rica, os conflitos tendem a ser institucionalizados. Ou seja, as comunidades locais que rejeitam projetos extrativistas tendem a recorrer a mecanismos estatais para fazer valer seus direitos e interesses, tais como consultas prévias ou recursos de inconstitucionalidade. Em contraste, as comunidades em Honduras e Guatemala têm rejeitado sistematicamente propostas de institucionalização de consultas prévias, a maioria das quais são realizadas de forma hierárquica (embora o sistema judicial ainda seja utilizado para resolver disputas socioambientais).
A atual concepção e implementação de mecanismos participativos como a consulta prévia nos convidam a imaginar espaços que revelam “a complexidade e a multiplicidade” daqueles que vivem dentro de um modelo econômico que se alimenta sistematicamente da destruição da natureza em que habitam, de suas relações sociais e de suas formas de governança. Um espaço de deliberação que acolha e discuta, ao invés de evitar, os conflitos socioambientais (e os problemas estruturais que os definem) poderia ser capaz de transformar as formas de governança do território centro-americano. Isso poderia impedir que a concepção e implementação de consultas prévias diante de novos conflitos socioambientais deem origem a um novo ciclo de colonização e exploração dos povos indígenas, comunidades afrodescendentes e populações locais historicamente discriminadas.
Respostas participativas: negociação, desapropriação ou resistência?
Em alguns casos, a consulta prévia foi reduzida a dar às comunidades a possibilidade de rejeitar a implementação de projetos extrativistas em seus territórios. Em outros, foi um mecanismo para a indústria extrativa obter a aprovação das comunidades afetadas por meio de espaços de negociação implementados por instituições representativas fracas. Assim, o sucesso da consulta sempre esteve ligado às sensibilidades políticas da época, ao papel do judiciário e às estratégias organizacionais das comunidades. Isso abriu a porta para a criação de espaços de consulta prévia com níveis de qualidade democrática muito baixos. Estes espaços estão sujeitos às limitações próprias de um referendo, onde os problemas na base da transição verde dependem de instituições com conhecimento limitado sobre a elaboração colaborativa de processos participativos.
Um caso emblemático que nos permite compreender melhor como as consultas prévias foram implementadas de fato na América Central é o dos processos que foram organizados de forma assíncrona devido à construção da usina hidrelétrica OXEC nos territórios Maya-Q’eqchì de Cahabón, a 65 quilômetros de El Estor, na Guatemala.
O primeiro processo de consulta, e o único realizado antes da construção da barragem, foi realizado pela empresa hidrelétrica OXEC (parte da Energy Resources Capital Corp) em 2012. A empresa demarcou a área afetada hierarquicamente e fez uma seleção direcionada de lideranças do território. A consulta foi realizada através de uma série de negociações, pesquisas e acordos legais com os representantes que eles haviam identificado. Os acordos previam a construção de templos religiosos e centros de saúde, pequenos negócios e uma compensação monetária anual. Esta última dependia da ruptura do tecido social: aqueles que haviam assinado o acordo se comprometeram a não se envolver com diversas ONGs, ativistas e organizações indígenas que se opuseram a projetos hidrelétricos e de mineração no passado.
A barragem foi construída e começou a operar. Bernardo Caal Xol, que está preso por denunciar a destruição do rio Cahabón, fez uma denúncia histórica contra o Ministério de Energia e Minas. Juntamente com os movimentos de defesa do território em Cahabón, ele rejeitou a consulta realizada pelo setor privado, a destruição de terras e riachos sagrados e a violação de tratados internacionais. A Corte Constitucional declarou que a consulta do setor privado era insuficiente e, em maio de 2017, mais de duas décadas após a ratificação da Convenção 169, estabeleceu hierarquicamente o primeiro marco legal para o governo da Guatemala realizar uma consulta prévia.
O governo realizou uma segunda consulta em 2017. A concepção deste espaço participativo repetiu muitos dos erros e estratégias que reduziram a primeira consulta a um espaço de negociação, e que vimos novamente anos depois, na consulta da comunidade El Estor. Decisões sobre quem convocaria e desenharia a consulta, a seleção dos participantes, a divisão da comunidade e suas lideranças, a impossibilidade de deliberar sobre a cessação das operações do projeto, a exclusão dos processos de consulta convocados por líderes indígenas e defensores ambientais, e o espaço físico da consulta – implementado a mais de 250 quilômetros dos territórios Maya Q’eqchí de Cahabón. A consulta convocada pelo governo acabou sendo um mecanismo de desapropriação não só do território, mas também de formas de governança indígenas.
Diante das deficiências democráticas e da desapropriação que a consulta do governo trouxe consigo, as lideranças comunitárias e a resistência Maya Q’eqchì organizaram uma terceira consulta. Esta incluía cerimônias religiosas, reuniões informais, mesas de diálogo e assembleias de cidadãos – apesar de vários obstáculos administrativos, burocráticos e policiais. Foi projetada e implementada em paralelo à consulta do governo. Estava aberta a qualquer pessoa que quisesse participar e a fase final consistia em uma votação por braços erguidos. Um total de 26.537 pessoas[1], que eram contra a presença da barragem hidrelétrica de Oxec em seus territórios, participaram.
Uma consulta prévia convocada e projetada pelas próprias comunidades indígenas não é novidade. Em alguns casos, como na Guatemala, as comunidades indígenas e a sociedade civil organizada se apropriaram do mecanismo de consulta prévia para transformá-lo em espaços autônomos de protesto e participação. Não há números oficiais sobre essas consultas, mais conhecidas como consultas de boa fé, mas pelo menos 82 foram monitoradas pela Defensoria dos Direitos Humanos na Guatemala.
Os fundamentos de autonomia, resistência e incidência indígena questionam a própria existência do Estado-nação – não na esperança de transformar essas instituições representativas, mas de acabar com a desapropriação de seus territórios e suas formas de governança. A consulta da Convenção 169, como muitos outros instrumentos participativos desta época, continuou sendo excludente em seu núcleo e tomou como certa a prevalência hierárquica do Estado-nação sobre os sistemas de governança das pessoas que habitam as terras exploradas. A falta de um projeto deliberativo para o planejamento, implementação e institucionalização da consulta realizada pelo governo impediu que as comunidades pudessem, de fato, rejeitar um projeto extrativo sem implementar, em paralelo, numerosos mecanismos de resistência, defesa e denúncia.
Qualquer tentativa de melhorar a consulta prévia precisa levar em conta as transformações exigidas pelas consultas solicitadas pelas próprias comunidades e compreender os erros na concepção deste mecanismo participativo. Estes erros foram descritos no caso emblemático da hidrelétrica OXEC, mas estão presentes em toda a região. Um processo participativo convocado por uma instituição precisa assegurar informações relevantes, equilíbrio de perspectivas e diversidade de opiniões através de estratégias deliberativas (tais como seleção aleatória de participantes e compensação para aqueles que se envolvem no processo) e práticas cocriativas e localizadas (como a “consulta sobre a consulta” realizada pelo governo costarriquenho ou estratégias de transparência, tais como votação por braços erguidos).
Mas não apenas isso.
Para evitar que um processo deliberativo seja cooptado ou siga tendências extrativistas, ele precisa prever e impedir que outros mecanismos de negociação que possam romper o tecido social das comunidades sejam implementados. Isso pode ser feito através de instrumentos administrativos que garantam que o processo de consulta comece antes que qualquer projeto seja licenciado. Além disso, em sua fase de concepção, ela precisa enfrentar desafios estruturais. Isso significa que o Estado precisa garantir serviços básicos e o pagamento de dívidas históricas antes do início de qualquer ciclo de tomada de decisão.
Novos mecanismos participativos
Trinta anos após a Convenção 169, surgiu o Acordo de Escazú. Este é um acordo juridicamente vinculativo que entrou em vigor em abril de 2021 e procura implementar o Princípio 10 da Declaração do Rio-92 sobre a participação cidadã em questões ambientais. É um bom ponto de partida para a resolução de conflitos socioambientais na região. Ela procura assegurar a proteção dos defensores ambientais e dos direitos humanos, o acesso às informações sobre ameaças ambientais e a proteção e defesa da participação pública em assuntos ambientais (Nações Unidas 2018).
Entretanto, até o momento, a Nicarágua e o Panamá foram os únicos países do istmo a o ratificaram. Sua ratificação é urgente, mas é ainda mais importante permitir e assegurar que os mecanismos internos para sua implementação não reproduzam os erros cometidos na implementação da consulta prévia. É necessário assegurar que os mecanismos participativos não acabem sendo espaços de negociação e desapropriação, e que eles acomodem as demandas das comunidades afetadas por antigos e novos ciclos de extrativismo e desapropriação.
Azucena Morán é pesquisadora no Institute for Advanced Sustainability Studies, doutoranda na University of Potsdam e fellow na Public Agenda. Ela também faz parte do Comitê Diretor do Grupo Permanente sobre Inovações Democráticas do European Consortium for Political Research (ECPR).
Grettel Navas é pesquisadora no Institute of Environmental Science and Technology da Universidade Autónoma de Barcelona e professora Associada de Saúde Planetária na Universidade Aberta de Catalunya. Ela também faz parte do Grupo de Trabalho sobre Ecologia Política da CLACSO e do mapa global de justiça ambiental EJAtlas (www.ejatlas.org).
As autoras agradecem a Marco Teixeira, Victor Moreto e Ana Azenha pelas revisões deste artigo.
[1] No município moram cerca de 70 mil pessoas.