Retrato do insurgente com doença mental
Para combater os contestadores, o poder dispõe do envio de um exército para destruir as barricadas. Mas, os defensores da ordem também podem levar a luta ao terreno das representações simbólicas pois, como revelado pelos alienistas do século XIX, os militantes podem ser enquadrados no campo da psiquiatria
Poucos dias após a abdicação do rei Luiz Felipe e a proclamação da 2ª República Francesa, os membros da Sociéte Médico-Psychologique organizaram em 6 de março de 1848 um debate a respeito “da influência das comoções políticas e sociais sobre o desenvolvimento das doenças mentais”. Seria a política “a causa principal da alienação mental” ou alguém enlouquece “por não ter sido forte o suficiente para suportar” a “excitação advinda da política”?
Alguns meses mais tarde, o alienista francês Alexandre Brierre de Boismont fez uma avaliação clínica das agitações políticas de 1848: “Quase todos os indivíduos que pertenciam ao partido conservador apresentavam um quadro de monomania [fixação ou delírio] triste enquanto que aqueles que haviam abraçado novos ideais apresentam manias ou monomanias alegres”. Ele deixou entrever sua preocupação: “um número considerável de indivíduos que se precipitaram para as utopias destes tempos não são considerados como loucos, apenas como ovelhas negras. No entanto, me é impossível, em termos de minha prática médica, esquecer da aparência, dos gestos e das palavras de muitos desses personagens que observei em asilos, nada distintos das pessoas que costumamos receber em nossas casas e, se alguma vantagem adviesse da comparação, seria em favor dos nossos pacientes, nos quais os acessos de fúria são extremamente raros”.1
A publicação, dois anos mais tarde em Berlim, da tese do doutor Carl Theodor Groddeck, traduzida para o francês sob o título De la maladie démocratique: nouvelle espèce de folie (Da doença democrática: nova espécie de loucura) (Paris: Germer-Baillière, 1850), prolongou esse debate. Ao comentar a obra, Brierre de Boismont evocou a crença de um de seus colegas médicos, que classificava os rebeldes em cinco categorias: “demagogos, maníacos, monomaníacos, dementes e idiotas ”.2
Em 1863, o doutor Louis Bergeret apresentou a seus colegas um relatório sobre dez casos de loucura “atribuídos às perturbações políticas e sociais de fevereiro de 1843”.3 Ele acusou “a imprensa de baixo nível e a retórica política” e “os absurdos ideais infantis presentes em todos os segmentos do socialismo, comunismo e do fourierismo”, classificando-os como “heresias” que acreditavam na “possibilidade de se atingir neste mundo o ideal de felicidade completa”. Desses dez casos, oito eram de mulheres. Essa proporção não poderia ser outra, já que os médicos as consideravam menos resistentes que os homens, em virtude de sua constituição física e nervosa. Assim, seriam elas as primeiras a ceder à loucura se expostas a um desequilíbrio principalmente de origem emocional.
Um exemplo é o caso de Victorine U., “que sempre realizou com perfeição e constância seus deveres de esposa e mãe, antes que as circunstâncias fatais levassem essa alma simples e ingênua” a considerar-se ”Mãe da República” e a levassem a Paris para libertar os presos políticos Armand Barbès, Auguste Blanqui, Louis Blanc, François-Vicent Raspail e Alexandre Ledru-Rollin. Ela se declarou pronta “a sacrificar seus filhos” a fim de extinguir o “despotismo”. Louise N., boa mãe e hábil operária, passou a dedicar-se à leitura das “mais loucas e passionais teorias políticas” ao ponto de esquecer “completamente de seus deveres profissionais e familiares”. Seus gestos se tornaram “frenéticos, ela vocifera com raiva e seus gritos selvagens ecoam por toda a vizinhança”, entre os quais se destacam as seguintes imprecações: “Basta de miséria, basta da exploração do homem pelo homem, basta de ricos e de policiais! O homem tem o direito de ser governado por ele mesmo”. Ainda há o caso de Augustine, tomada por uma “eroticomania que já dura meses” após a leitura de um poema de Lamartine.
A paixão política
Essas mulheres estavam, segundo Bergeret, imbuídas de uma paixão política, causa de sua exaltação e alienação. Nesse caso, a abordagem médica revela o espanto de ver emergir o papel do segundo sexo no cenário político. Ainda que idealizados nos traços de Marianne ou glorificados nas figuras alegóricas da Nação e da República, as mulheres eram consideradas como eternas “crianças”. E se alguns raros homens como Condorcet considerassem que sua “inferioridade” se devesse à falta de educação, outros até mais brilhantes reduziam “a mulher ao simples ato da maternidade”.
Aos homens o espaço público e às mulheres a esfera privada, ou seja, sempre no recesso do lar. Toda a mulher que pretendesse escapar do papel pré-estabelecido não seria apenas considerada perdida, mas também perigosa, pois ameaçaria o equilíbrio sexual da sociedade. Bergeret se incomoda mais ainda ao ver que Victorine “se aprofundou tanto nas ideias de Fourier que perdeu o rumo” ao ponto de “sair vestida como um homem”.
Um artigo semelhante no La Chronique Médicale de 15 de outubro de 1897 faz referência às primeiras manifestações de loucura de Théroigne de Méricourt, que após uma surra humilhante em público passou a ter o comportamento de uma criança desobediente “nos primeiros atos de sua vida pública” antes de “se tornar completamente louca. Louca fisicamente, como diriam nossos pais, e louca de espírito…”. Não é à toa que, a respeito das “petroleuses” (mulheres incendiárias da Comuna de Paris) surgiu uma teoria segundo a qual as mulheres descontroladas seriam movidas por uma sexualidade desenfreada e que o engajamento de seus corpos na batalha as fez se distanciar de seu “eu” em termos mentais. Sejam elas “megeras revolucionárias ou harpias realistas, todas as mulheres se comportam do mesmo modo quando se envolvem com política”,4 afirmaram em 1906 os doutores Augustin Cabanès e Lucien Nass.
Loucos demagógicos e perigosos
Em 1871, a Comuna foi motivo para a Société Médico-Psychologique retomar as discussões iniciadas em 1848 a respeito do efeito das revoluções. O doutor Jean-Baptiste Laborde colocou em pauta a “predisposição hereditária” à qual as circunstâncias conferem “um alívio especial”.5 Brierre de Boismont preconizou, em 1871, o emprego de meios coercivos para restringir os corpos, usando de preferência a “constrição mecânica” aos “loucos demagógicos que são extremamente perigosos”, entre os quais os participantes da Comuna, “esses sectários que querem destruir a sociedade” e que pretendem impor “à família, à propriedade, à liberdade e à inteligência valores tão contrários à natureza, que somente a loucura poderia respaldar”.6
Sob a pena de nobres escrivães e médicos, como consta nos relatórios oficiais – em particular naquele escrito pelo general Félix Appert em 1875 –, descreve-se os communards como tendo corpos disformes, rostos como se tivessem sido possuídos e as mulheres com risadas deploráveis, reconduzidas a uma bestialidade errante e degenerada.
A isso julgaram conveniente acrescentar que os médicos franceses estavam sendo atacados com ferocidade pelas publicações de seus pares ingleses ou alemães, que temiam que um contágio popular dessa loucura atravessasse as fronteiras, ao mesmo tempo que criticavam a peculiaridade do povo francês de mergulhar em revoluções. Na Inglaterra, os caricaturistas James Gillray e George Cruishank há muito veiculavam a representação de um sans-cullote famélico, fanático e sanguinário. Na imprensa britânica, como crítica à Comuna, apareceram desenhos que comparavam o caráter irascível dos nacionalistas irlandeses ao dos communards.
Na mesma época, Carl Starck, um médico alemão, publicou um estudo intitulado De la dégénérescence physique de la nation française, son caractere pathologique, ses symptômes et ses causes (Da degeneração física da nação francesa, seu caráter patológico, seus sintomas e suas causas) no qual ele coloca a culpa “no orgulho e presunção inerentes à nação francesa” e “no cérebro inferior, organizado de modo muito particular, dos franceses”.7
Desse grupo de representações que enfoca o perfil do “rebelde passional” ao invés do “cidadão equilibrado”, encontram-se ecos nos discursos contemporâneos que fustigam uma França “doente”, “febril”, “esquizofrênica” e até mesmo “autista”, cada vez que toma força algum movimento social.