Revolta ameaça o poder no Camboja
A crise política eclodiu no dia seguinte às eleições gerais de 28 de julho de 2013. Em um pleito marcado por irregularidadesPhilippe Revelli
Phnom Penh, 3 de janeiro de 2014. O sol nasce na Avenida Veng Sreng, transformada em campo de batalha. Os grevistas das fábricas de roupas, numerosas no bairro, ergueram barricadas e atacam as forças da ordem. Pedradas, coquetéis molotov. Muitas centenas de policiais fortemente armados revidam com golpes de cassetete, granadas de gás lacrimogêneo e rajadas de AK47. Os confrontos acontecem no momento em que a greve, lançada no dia 24 de dezembro por iniciativa das seis principais centrais sindicais do país com a reivindicação de dobrar o salário mínimo – de US$ 80 para US$ 160 ao mês –, paralisa quase todas as empresas.
No dia anterior, a Brigada 911, uma unidade paraquedista de elite, reprimiu brutalmente os grevistas da empresa Yakjin. As escaramuças com as forças da ordem continuaram por toda a noite e até o início da tarde. Saldo: cinco mortos, quarenta feridos graves, 23 grevistas e líderes do movimento presos e severamente espancados. No dia seguinte, enquanto metralhadoras do Exército patrulham a Avenida Veng Sreng, uma horda de policiais e mercenários à paisana atacam o Freedom Park, área em pleno coração da capital onde há meses o partido de oposição instalou seu campo de base. Depois de caçar brutalmente os militantes, monges e jornalistas ali presentes, o braço forte do poder saqueia o palanque, tendas, latrinas e chega a destruir um altar budista. O governo anuncia a proibição de manifestações e comícios por período indeterminado.
A crise política eclodiu no dia seguinte às eleições gerais de 28 de julho de 2013. Em um pleito marcado por irregularidades, o Partido do Povo do Camboja (PPC, antigo Partido Comunista), do então primeiro-ministro Hun Sen, foi declarado vencedor com 48,83% dos votos e 68 dos 123 assentos que compõem a Assembleia Nacional. Num claro recuo, perdeu 22 deputados em comparação com as eleições de 2008. O Partido de Salvação Nacional do Camboja (CNRP, na sigla em inglês), que obteve 44,46% dos votos, ficou com 55 deputados, mas denunciou que as eleições teriam sido fraudadas e pediu uma comissão de inquérito.
A partir de setembro, a oposição tomou o Freedom Park. Suas manifestações semanais reuniram um número crescente de participantes, que exigiam a renúncia do primeiro-ministro e novas eleições. Os líderes do CNRP rejeitaram todos os convites para negociar com o PPC, e seus eleitos recusaram-se a tomar assento na Assembleia Nacional.
Greves e movimentos sociais multiplicaram-se desde o início de dezembro. Os condutores de tuk-tuk– mototáxis equipados com um reboque onde se sentam os passageiros – pedem que o preço dos combustíveis seja reduzido. Os membros da Rede de Monges Independentes por Justiça Social (Independent Monk Network for Social Justice) viajam pelo país colhendo reivindicações de comunidades camponesas e indígenas, que protestam especialmente contra a grilagem de terras. Um sindicato de professores chama a greve. E, finalmente – sem dúvida a ameaça mais séria ao poder –, os operários da indústria têxtil, um setor-chave da economia, lançam uma greve geral ilimitada.
Embora os cálculos do CNRP tenham claramente influenciado a agenda dessas lutas, a extensão das críticas expressa um descontentamento profundo, que se estende a setores cada vez mais amplos da população.
É verdade que na última década o Camboja registrou um crescimento anual de 7% a 8%.1 Em Phnom Penh, shoppings brotam como cogumelos; os reluzentes veículos 4×4 que congestionam as ruas já não são apenas os dos funcionários das Nações Unidas ou dos gestores de ONGs. Os condutores de mototáxis conectam-se ao Facebook com seus telefones celulares, e as jovens gerações urbanas têm novas perspectivas. Mas, embora a pobreza tenha diminuído, um terço dos cambojanos continua vivendo com menos de US$ 1,5 por dia, e as taxas de crescimento de dois dígitos das indústrias do vestuário, turismo e da agroindústria têm como corolário salários de miséria, despejos de comunidades camponesas para tomar posse de suas terras e danos ecológicos preocupantes.
Setor têxtil: quatro quintos das exportações do país
Com um volume de negócios de US$ 5,53 bilhões em 2013, o setor de vestuário representa 80% das exportações do Camboja. Mais de quatrocentas empresas empregam quase meio milhão de pessoas, 95% delas mulheres, e produzem peças para as principais marcas do prêt-à-porter e grandes distribuidores ocidentais. Desmentindo as previsões alarmistas da associação de empregadores têxteis, nem as repetidas greves realizadas desde o final de 2013 nem a agitação política desencorajaram os investidores. Pelo contrário: a alta dos salários na China levou muitas empresas a deslocalizar sua produção para o Camboja e países vizinhos. E, durante o ano passado, as exportações de têxteis e calçados esportivos aumentaram 20%.2
Essa boa saúde econômica contrasta com a degradação das condições de trabalho, insalubres, até perigosas, e com a queda do poder de compra dos empregados. “O patrão não nos respeita mais”, protesta uma operária da zona industrial de Pochentong. “Para ele, a única coisa que interessa é o rendimento, e tanto faz se estamos exaustas.” A lista de abusos apontados no último relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) é longa: 85% das empresas utilizam mais de duas horas extras por dia, seis dias por semana; o calor é excessivo em 65% dos locais de trabalho; as saídas de segurança estão bloqueadas em 53% das fábricas etc.3
Em maio de 2013, com menos de uma semana de intervalo, prédios desabaram em duas fábricas. Menos mortais que o de Rana Plaza, em Bangladesh,4 esses acidentes ainda assim mataram dois trabalhadores e deixaram trinta feridos. No ano passado, mais de setecentos casos de desmaio por exaustão foram registrados.5 Mesmo depois de passar a US$ 100 mensais, em fevereiro de 2014, o salário mínimo continua entre os mais baixos do Sudeste Asiático. Ele perdeu quase um terço de seu poder de compra ao longo da última década e continua bem abaixo do salário mínimo vital, que, segundo o próprio Ministério do Trabalho, se situa entre US$ 157 e US$ 177. Todos esses motivos de indignação, num setor que tem um movimento sindical combativo, explicam os quase 130 movimentos de greve registrados no último ano, antes mesmo da greve geral de dezembro.
Movimentos que o poder tenta conter por meio de uma repressão feroz: os 23 grevistas presos em janeiro ainda estavam na prisão em março. O direito de manifestar-se depende da boa vontade das autoridades. Empresários aproveitam esse contexto liberticida para demitir elementos indesejados. Com o objetivo de atacar os sindicatos pelo cofre, ações judiciais foram abertas contra uma centena de militantes, em nome dos danos causados à empresa durante a greve. Mas o descontentamento pode muito bem revelar-se mais forte que o medo.
Também no campo a cólera ronda. Desde a adoção da lei sobre a propriedade da terra em 2001, que autoriza a atribuição de terras do Estado a empresas privadas, sob a forma de “concessão fundiária econômica” (CFE),6 3 milhões de hectares – 16,6% do território – passaram para as mãos de empresas nacionais e estrangeiras.7 Num país onde 80% da população reside em zonas rurais e a agricultura responde por 55,8% dos empregos, tamanhas mudanças na estrutura fundiária só poderiam gerar conflitos.
Assim, aproveitando o programa da União Europeia “Tudo menos armas”, que isenta de impostos o açúcar cambojano, agroindústrias se aferraram a essa produção. Cerca de 75 mil hectares foram concedidos na forma de CFE, e as exportações de açúcar mais que dobraram entre 2012 e 2013. Em contrapartida, milhares de agricultores foram expulsos de suas terras. Privados de seus meios de subsistência, muitos agora são obrigados a se empregar como operários agrícolas nas plantações de cana-de-açúcar. As condições de trabalho exaustivas e a presença de menores foram denunciadas pela rede de ONGs nacionais e internacionais associadas à “Campanha por um açúcar limpo”.
Philippe Revelli é jornalista.