Round 6: metáfora da perversão do Rei Guedes
Se engana quem acha que os pobres que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá. Os jogadores pobres do seriado são os mesmos pobres daqui
Pessoas desesperadas por dinheiro são convidadas a participar de uma série de jogos mortais para concorrer a um prêmio bilionário. Esse é o enredo do seriado Round 6 da Netflix, que prende a atenção como tudo que mostra a face abjeta da natureza humana. Recheado de violência, tortura psicológica, sangue, mortes, trapaças, suicídio, tráfico de órgãos e várias faces da perversão, é uma fotografia viva de nossos tempos, uma metáfora das consequências horrorosas do neoliberalismo quando considerado não só como razão de mundo, como querem Dardot e Laval, mas também como razão de vida.
O mote da pobreza material e a denúncia de um capitalismo sem limites fazem lembrar o enredo do também coreano Parasita, ganhador do Oscar em 2019. Foi de parasitas, aliás, que Paulo Guedes chamou os funcionários públicos. A pichação no Ministério da Economia, depois de revelado que uma grana grossa do chefe da pasta estava escondida em paraísos fiscais, é uma dura poesia do Brasil: “Guedes no paraíso e o povo no inferno. Guedes lucra com a fome do povo”. Há uma frase célebre de Freud que, se alguém procurar, não achará, que diz: “quando Guedes fala dos funcionários públicos sei mais de Guedes do que dos funcionários públicos”. E ainda chamam a corrupção meio-que-de offshore, que é pro povão não entender nada desses problemas sérios de gente muito rica. A definição disso é de Eduardo Moreira: “dizer que offshore é empresa é enganação pra esconder a realidade. Empresa produz algo, presta algum serviço. Offshore é esquema pra ter conta em banco gringo pra não pagar imposto e pra esconder o dono. Normalmente porque a origem é ilegal”.
Se engana quem acha que os pobres que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá. Os jogadores pobres do seriado são os mesmos pobres daqui. Aqueles que Guedes não quer que participem da festa danada de ir para a Disney, afinal, se empregadas domésticas pegam gosto pelo estrangeiro são capazes de acabar colocando dinheiro em algum desses paraísos fiscais. É tudo isso que torna o recado de Guedes muito claro: só otário sonegador de imposto tem legitimidade de ir pra Disney ou ter uma offshore.

Essa gente pobre, que tem literalmente roído o osso pra matar a fome no Brasil de Guedes, está metaforizada no personagem principal de Round 6: um cara demitido, falido, fodido pela violência dos agiotas, esfomeado e que tem que roubar dinheiro da própria mãe doente para sobreviver. Dava até para estranhar que esse cara do seriado não falasse português. No jogo da ficção como na vida de um brasileiro pobre, o que está em disputa, a cada nova rodada de abrir de olhos, é a própria vida, naquilo que de mais básico ela requer: manter a carcaça em pé.
Sem dinheiro nenhum, não é apenas o corpo que padece, mas também os laços familiares e sociais. A falta de dinheiro pode matar tanto de fome quanto de discriminação e tristeza. É isso que se deixa ver quando o pai, sem qualquer rede de apoio, tem que ficar longe da filha porque não pode pagar a pensão.
Esse estado de coisas da ficção e da realidade conjumina totalitarismo e neoliberalismo, dois significantes centrais de nossos tempos bolsonaristas.
Dos nazismos de ontem e de hoje, os beliches e o racionamento de comida no seriado remontam à lógica dos campos de concentração. Inevitável a lembrança da sopa rala e do rangido dos beliches em que judeus dormiam em duplas ou trios em Auschwitz, do angustiante relato de Primo Levi em É isto um homem.
A uniformização é uma das nuances do arcabouço totalitário. O uniforme dos jogadores exerce uma dupla função: despersonaliza o sujeito ao transformar nome em número, ao mesmo tempo em que busca homogeneizar a massa de pessoas assujeitadas a um sistema autoritário. O uniforme dos trabalhadores que cuidam, em nome do líder, dos jogadores, faz da patente (círculo, quadrado e triângulo), ora colocada no lugar do rosto, o esconderijo que sempre oculta a identidade dos carrascos.
No totalitarismo neoliberal capitaneado por Guedes, no entanto, a uniformização obedece a uma lógica mais sofisticada que, para além da roupa, passa a pasteurizar dimensões imaginárias e simbólicas. No Brasil, jogadores e jogadoras também estão uniformizados, só que de pobreza, sonhando com a possibilidade de vestir – e de ser e ter – outras coisas.
Por isso é eficaz, nesse modelo, a estratégia de manter o foco dos pobres em uma riqueza que, na prática, é inalcançável. Esse é o papel que a esfera recheada de dinheiro exerce sobre os jogadores no seriado: servir de sol, de deus, de destino, de ideal. A força das representações da divindade também se deixa ver nas figuras totêmicas que vão aparecendo no seriado, seja na grande boneca delatora do primeiro jogo mortal, seja no próprio símbolo do jogo, que acavala um círculo, um quadrado e um triângulo.

Com um cenário que titubeia entre o luxuoso, o contemporâneo, o tecnológico e o infantil, Round 6 mostra a necessidade de induzir a pobreza em erro a partir da dimensão imagética, cumprindo, na trama, o que novelas e propagandas fazem na vida real ao prometer idílios pouco realistas a quase todo mundo.
Os jogos negociais que os economistas chamam de “mercado”, também estão metaforizados no seriado. No jogo das bolitas, a faceta mais cruel da tragédia desse totalitarismo de privilégios ataca a sensível esfera dos afetos humanos. Está posta ali, quando fica escancarado que mesmo nossos amigos são, no fundo, concorrentes na apertada vitrine da inclusão social. No jogo da vida, um desses perversos roteiros foi recentemente revelado CPI da Covid-19: tanto com a empresa que diz que “mortes também são altas”, quanto com empresários que propagam a negação da vida – até mesmo da própria mãe – para que a receita aumente.
A fábula da meritocracia, sempre tão cara ao discurso de engodo do neoliberalismo, reaparece quando, no final do jogo da ponte de cristais, um dos vencedores julga a própria vitória como meritória, desprezando na conta dos vencedores o fator sorte, sempre tão determinante para jogadores ou herdeiros.
A natureza humana está nua no ar de nossos tempos e é provável que, a seguir assim, a revolta dos esfomeados aconteça por força de uma justiça que não é essa dos nossos tribunais. A fome sempre foi a mais eficiente das lâminas para cortar a cabeça de reis.
A coisa está dita e inscrita na cultura, do Leviatã de Hobbes ao Ensaio sobre a cegueira de Saramago. E, agora, no Brasil das 600 mil mortes que pesam nas costas de Bolsonaro, também nesse genial seriado que já é um dos mais vistos da história.
Aos pobres conscientes, como o personagem de Pedro no também genial livro Os supridores, de José Falero, resta escolher entre alguma escravidão ou alguma bandidagem. O que Round 6 e o totalitarismo neoliberal de Guedes acrescentam à lista é que, talvez, a morte seja uma terceira opção.
Paulo Ferrareze Filho é professor universitário, realiza pesquisa de pós-doutorado em Psicologia Social na USP e é psicanalista em formação.