Salve os malditos!
Um senhor de setenta anos, mais jovem e atual que tantos outros, Jards Macalé é uma das poucas vozes no cenário musical que se faz ouvir contra os desmandos atuaisValéria Guimarães

O show de Jards Macalé no Sesc Pompeia em 15 de janeiro inaugurou 2017 com a energia de que estamos precisando em dias tão sombrios. Resultado da turnê de seus cinquenta anos de carreira iniciada em meados de 2016 e com o propósito de lançar o álbum que marca a efeméride, Macalé deu seu recado. Ele e sua banda de apoio formada por jovens talentosos, a Let´s Play That (homônima de uma de suas músicas com Torquato Neto) chegaram sem rodeios e qualquer interação com o público. Nem por isso deixaram de impactar com uma massa sonora de arrepiar. A performance dividiu-se em três partes, sendo a do meio com um solo ao violão, não sem avisar a banda que se retirou: “Voltem!”. Foi a primeira vez que falou, arrancando um riso ainda tímido dos que desconfiaram de que deve ter havido ocasião que a banda se perdera por aí…
Artista experiente, Macalé teve o público em suas mãos desde o início da performance virtuosa de composições próprias, como Farinha do Desprezo, Mal Secreto, Let’s Play That, e de outros artistas que marcaram a geração de muitos que, como eu, ficaram justamente emocionados. Mas é quando canta sozinho ao violão Revendo Amigos que o domínio se faz pleno. Esta última é a música que encerra o clássico filme Amuleto de Ogum de Nelson Pereira dos Santos do qual ele assinou a trilha e atuou como o cego Firmino. Então convidou os ouvintes a fazer o corinho final e a empolgação definitivamente tomou conta da galera. Aproveitando a deixa, antes de cantar Gothan City, contou a história já bem conhecida das vaias estrondosas que recebeu no Festival Internacional da Canção em 1969 no Rio. Truque de sucesso, não falhou: as vaias foram ensurdecedoras – não a Jards, claro! Mas à atualidade do que representa essa sofisticada música de protesto que fala de caça às bruxas e de morcegos temerosos à espreita na porta principal.
Quando a banda voltou (na hora combinada!) e, com ela, todo o improviso jazzístico que caracteriza o poder criativo do artista popular que não se rende a fórmulas fáceis, os ânimos se aqueceram ainda mais com o biscoito fino fartamente saboreado pelas várias gerações que ali estavam. Luiz Melodia que me perdoe, mas a versão de Farrapo Humano ficou genial, com toda quebradeira instrumental que essa obra de arte merece. E lá vem na sequência Acertei no Milhar de Wilson Batista – a famosa música da polêmica com Noel Rosa – que levou definitivamente a plateia à loucura quando ele acrescenta ao último verso “Etelvina me acordou, Foi um sonho minha gente – tem um japonês na porta!”. E nova alusão à condição atual do país foi feita na versão de Canalha de Walter Franco com redobrada participação dos presentes que, a seu pedido, fizeram coro em uníssono ao encerrar a música com o grito incontido “canalhas!” remetido diretamente aos corruptos de plantão.
Um senhor de setenta anos, mais jovem e atual que tantos outros, Jards Macalé é uma das poucas vozes no cenário musical que se faz ouvir contra os desmandos atuais. Dito “maldito” – que ele não gosta, rótulo que lhe privou de certo circuito –, ele carrega a verve de uma geração de gênios que traduziu tão bem o Brasil pelas vias alternativas. Daí que, se o rótulo não lhe foi favorável comercialmente, deveria ser visto com orgulho por aquele que não cooptou, aquele que estando no registro do popular, do rebaixamento bakhtiniano, do underground e dos outsiders manteve-se fiel a uma proposta de altíssima cultura, um modernismo zappiano, uma ousadia estética de raro alcance. Tenho repetido o quanto a conjuntura atual ainda não nos deu uma grande música que a represente. Toda época tem sua manifestação artística marcante. Ou deveria ter. Assim como Macalé se entristece em saber o quanto as coisas não parecem ter mudado, fazendo com que suas composições tenham uma atualidade a toda prova, sinto – pela veneração que devoto à música e à arte em geral – o quanto estamos carentes de uma reação estética a altura da banalização do mal que nos assola. Enquanto isso, restam as lágrimas nos olhos que traduzem o êxtase que apenas um grande artista pode proporcionar. Salve os malditos!
*Valéria Guimarães é professora de História Cultural na UNESP e autora de Notícias diversas: suicídios por amor, leituras contagiosas e cultura popular em São Paulo dos anos dez, Ed. Mercado de Letras.