Santa Efigênia, Luz e Campos Elíseos: a Prefeitura derruba
Menos de seis meses após assumir a Prefeitura de São Paulo, em 2017, o prefeito João Dória Jr. e o governador Geraldo Alckmin desencadeiam uma ação policial para dispersão dos usuários de crack, agora concentrados no bairro de Campos Elíseos. As ações de dispersão seguem o mesmo roteiro das estratégias adotadas na gestão José Serra/ Gilberto Kassab: o protagonismo da Polícia; a lacração de estabelecimentos comerciais; apreensões, prisões. E, assim como Kassab, João Dória comemora as demolições e declara o fim da Cracolândia.
Na história da cidade de São Paulo, os bairros por onde vem se deslocando o chamado “fluxo” ou as “novas e velhas Cracolândias” são os que desde o final do século XIX abrigam grupos sociais diversos; estrangeiros de diferentes origens; palacetes e cortiços, espaços de produção e de comercialização, assim como as atividades ilícitas e os excluídos tratados como caso de polícia. Moradores de cortiços, mulheres prostitutas, vendedores ambulantes, usuários de drogas, são os alvos recorrentes de administrações que não reconhecem seu lugar na dinâmica metropolitana, nem seu direito a políticas públicas que atendam à dimensão social, econômica ou de saúde pública que assumem em diferentes momentos.
Da Delegacia de Fiscalização de Costumes e Jogos da primeira metade do século XX ao Departamento Estadual de Narcotráfico (Denarc), que desde os anos 1980 é responsável pela repressão ao crack, estes bairros vêm sendo submetidos a autoridades e práticas policiais específicas que os reduzem a “Boca do Lixo” ou “Cracolândia”.
A permanência deste território não é mero acaso. Fora do raio de atuação privilegiado pelo setor imobiliário a partir da década de 1950, Santa Efigênia, Campos Elíseos e Luz, assim como outros bairros centrais, persistem como contra – exemplo do padrão de urbanização dominante na metrópole paulistana. A oferta de empregos, a disponibilidade de equipamentos, de transporte público e de moradias de aluguel mantiveram estes bairros como opção para um amplo leque de grupos sociais – de moradores de cortiços e de pensões a parcelas da classe média que ocupam kitchenettes e apartamentos. Santa Efigênia e Luz já nascem com esta diversidade social e funcional. Campos Elíseos, embora surja como primeira tentativa de um bairro exclusivamente residencial para a elite, não se realiza como tal, e em menos de 20 anos será preterido e superado pelo boulevard Bouchard em Higienópolis e em seguida pelo Jardim América.[1]
Estes bairros escaparam à lógica da contínua demolição e reconstrução ancorada na hegemonia da terra como valor econômico que se impõe em São Paulo. Através da adequação de seus espaços dão novos usos e sentidos às construções ecléticas do século XIX e das primeiras décadas do século XX, às construções que incorporam o art-déco nos anos 1930 e 1940, e aos grandes edifícios modernos dos anos 1950.
A representação deste setor da cidade vem sendo socialmente construída como área degradada, deteriorada e, mais recentemente, também como área esvaziada ou despovoada. Esta representação não se restringe à materialidade das construções, há décadas privadas de investimentos por seus proprietários, mas se estende aos valores sociais, culturais e significados atribuídos aos usos e usuários destes espaços. Nos últimos trinta anos a retomada do interesse pelo setor imobiliário e por proprietários de imóveis tem o suporte do poder público numa sequência de ações que potencializam a retórica da degradação.
Em Santa Efigênia, Campos Elíseos e Luz, o patrimônio foi uma alavanca para esta retomada. Mais especificamente, o patrimônio interpretado como memória de um passado promissor de São Paulo das últimas décadas do século XIX, associada ao café e à ferrovia. A partir dos anos 1990 uma estratégia urbanística que articula patrimônio e infraestrutura cultural incorpora como âncoras para o processo de reurbanização da área da Luz as estações da Luz e Julio Prestes, o edifício do Liceu de Artes e Ofícios, ocupado pela Pinacoteca do Estado, o Jardim da Luz, a praça Julio Prestes, o antigo prédio do DEOPS.
Duas faces de uma mesma moeda – o reconhecimento de um passado promissor e a retórica da degradação que nega o tempo presente na trajetória dos bairros – estes são os valores atribuídos ao patrimônio cultural nos projetos de reurbanização propostos em 1986, na gestão de Jânio Quadros; em 2005, na gestão José Serra/ Gilberto Kassab; na atual gestão do prefeito João Doria Jr.
Quando o prefeito Jânio Quadros declara de utilidade pública para desapropriação quase 200 mil metros quadrados no bairro de Santa Efigênia[2] abrindo uma fronteira para empreendimentos imobiliários, da reação imediata do presidente do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (CONDEPHAAT) e de arquitetos e urbanistas, resultou a abertura de estudo de tombamento de uma extensa área abrangendo Santa Efigênia, Campos Elíseos e Santa Cecília. Em Santa Efigênia, o traçado urbano e 46 imóveis foram citados. [3]
A resposta de Jânio é emblemática: em memorando ao Secretário de Planejamento, afirma “não saber como pardieiros e cortiços com vários andares possuam interesse histórico” e determina: “Trace os planos de reurbanização e conserve os imóveis ocupados, por prostitutas, em muitos casos, ou homossexuais, como ilhas nas avenidas que devem ser rasgadas.” [4]
O projeto foi definitivamente encerrado em 1990 com a revogação do decreto pela prefeita eleita Luiza Erundina. O processo de tombamento permaneceu aberto e as intervenções nos imóveis listados e no traçado do bairro sob controle do CONDEPHAAT.
Na gestão dos prefeitos José Serra/ Gilberto Kassab, cerca de trinta quadras no polígono formado pelas avenidas Ipiranga, São João, Duque de Caxias, Cásper Líbero e rua Mauá são declaradas de utilidade pública.[5] Formulado num contexto de maior organização dos setores interessados na retomada do centro e de institucionalização de programas e instrumentos de parceria público/privada,[6] o projeto visava transformar Santa Efigênia em um polo tecnológico.
Duas estratégias se combinam para viabilizar a participação da iniciativa privada no projeto denominado Nova Luz. Por um lado, o instrumento de concessão urbanística, que efetiva a drástica redução do papel do poder público municipal ao transferir ao consórcio de empresas vencedor poderes de desapropriação, execução de obras urbanísticas e comercialização dos imóveis desapropriados e construídos. Por outro lado, a Polícia se torna um agente do projeto de reurbanização. Desde 1995 as ruas de Santa Efigênia se mantinham policiadas, devido à ocupação por usuários do crack. A Nova Luz se inicia pelas operações policiais de dispersão dos usuários – estratégia de combate ao tráfico de drogas assumida pelo DENARC. Numa associação entre Subprefeitura da Sé e Polícia foi desencadeada a “Operação Limpa,” que atuou na lacração de hotéis, bares, prisões, apreensão de armas, de drogas e, naquele momento, também de CDs e DVDs piratas. [7] A operação policial foi sucedida pela demolição de imóveis, comemorada por Kassab como o fim da Cracolândia.[8]
A limpeza da área se completa com a revisão da decisão de tombamento. Com o argumento que “a preservação dos imóveis poderia inviabilizar o projeto de revitalização, a ser feito pela iniciativa privada,”[9] o número de imóveis indicados foi reduzido, os níveis de preservação foram alterados e o traçado do bairro foi excluído.[10] Com exceção de 3 imóveis, nos demais listados somente as fachadas deveriam ser preservadas e as intervenções internas não seriam submetidas para avaliação do CONDEPHAAT.
Se a presença ativa do órgão de patrimônio foi fundamental para sustar o plano de Jânio, a estratégia de tombamento por si só mostrou seus limites para ultrapassar minimamente a preservação dos edifícios consagrados como âncoras.
Cabe destacar que ao se contrapor ao projeto de Jânio, o discurso de alguns profissionais associava à preservação dos imóveis a não expulsão de moradores e de comerciantes e reivindicava a participação da sociedade no processo de decisão, reverberando os princípios das cartas patrimoniais que a partir dos anos de 1960 ampliam o conceito, as práticas e os agentes de patrimônio cultural.[11]Nessa perspectiva, a preservação não se esgota na dimensão física de um lugar, de um edifício, mas inclui as formas de apropriação, de usos, os atores envolvidos.
O plano elaborado pelo consórcio das empresas Concremat Engenharia, Companhia City, Aecom Technology Corporation e Fundação Getúlio Vargas foi contestado pelos grupos organizados da sociedade civil – Associação dos Comerciantes de Santa Efigênia; Sindicato do Comércio Varejista de Material Elétrico; Associação dos Moradores de Santa Efigênia; movimentos de moradia. Além disso, foram encaminhadas ações judiciais de inconstitucionalidade e ilegalidade do instrumento de concessão urbanística, incompatibilidade com o Plano Diretor e não legitimidade das audiências públicas.[12]
Revela-se nesse momento uma trama de interesses para muito além do capital imobiliário, que articula um amplo leque de agentes – do capital comercial aos moradores de cortiços. E as conquistas de participação da cidadania e de direito à cidade trazidas pela Constituição de 1988 e pelo Estatuto da Cidade aprovado em 2001, garantiram os espaços institucionais para que se manifestassem, diante da ameaça de expulsão, os grupos sociais que, mais uma vez colaboraram para a permanência do patrimônio construído da área do projeto. O plano foi cancelado pelo Prefeito Fernado Haddad em 2013.
Menos de seis meses após assumir a Prefeitura de São Paulo, em 2017, o prefeito João Dória Jr. e o governador Geraldo Alckmin desencadeiam uma ação policial para dispersão dos usuários de crack, agora concentrados no bairro de Campos Elíseos. As ações de dispersão seguem o mesmo roteiro das estratégias adotadas na gestão José Serra/ Gilberto Kassab: o protagonismo da Polícia; a lacração de estabelecimentos comerciais; apreensões, prisões. E, assim como Kassab, João Dória comemora as demolições e declara o fim da Cracolândia.
Em todas estas ações há uma escalada da violência: centenas de agentes policiais mobilizados, as demolições de moradias e hotéis chegam ao extremo de ignorar a presença de pessoas no interior de um edifício; as ações de lacração de estabelecimentos ignoram equipamentos e os pertences dos funcionários; tratores derrubam barracas e as idas e vindas do “fluxo” são combatidas com balas de borracha. O emparedamento de hotéis e de outros estabelecimentos ignora as regras estabelecidas pelos órgãos de patrimônio para o entorno da Estação Julio Prestes, Largo Coração de Jesus, Palácio dos Campos Elíseos.
Os embates agora envolvem novos atores da complexa tessitura deste setor da cidade. A estratégia de dispersão enfrenta resistência das entidades dos profissionais de diferentes áreas e de organizações envolvidas no programa “De braços abertos“ iniciado na gestão do prefeito Fernando Haddad, assim como dos atendidos pelo programa. Com a mudança de enfoque de segurança pública para saúde pública, a concentração dos dependentes químicos ganhou novo sentido nos Campos Elíseos. Concentrar a população usuária implicou na oferta de moradia e emprego, atendimento à saúde, oferta de cursos e uma renda diária. Em última instância, o programa reconheceu o direito desta população em estado de extrema vulnerabilidade de ter um lugar na cidade e o acesso a uma política pública.
Ë este reconhecimento o alvo da guerra à qual se referiu o Secretário Municipal da Justiça, Anderson Pomini, numa reunião do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo, logo após o início das ações policiais no bairro.” “Numa guerra, se precisar derrubar prédio tombado, [a Prefeitura] derruba”, afirmou o Secretário e também conselheiro.[13]
Em seu livro “Expulsions: brutality and complexity in global economy,[14] Saskia Sassen argumenta que a linguagem de mais desigualdade, mais pobreza, mais prisões mais destruição ambiental, e assim por diante, é insuficiente para marcar a proliferação de condições extremas. Propõe o conceito de expulsão, direto e forte, pois não se trata de mais uma coisa ruim, mas de uma ruptura radical.
A ruptura radical, expressa tanto nas ações da atual administração em Campos Elíseos como na fala do Secretário da Justiça, está na total aderência aos interesses do capital imobiliário, sem mediações. No processo em curso de mudanças nos instrumentos urbanísticos, a adequação aos interesses do mercado também foi explicitamente colocada como objetivo pela Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento.
Se aprofundam de forma extrema e ganham nova dimensão as contradições entre valor cultural e valorização econômica, entre interesse público e privado, parte constitutiva das disputas pelo território em Campos Elíseos, Santa Efigênia e Luz, desde o projeto de Jânio Quadros.
* Professora Livre docente Senior -IAU-USP; Pesquisadora do CNPQ