Saúde universal, ecologia planetária e outro modo de vida
Se, no mundo, a necropolítica faz valer seu aspecto racista e sanguinário com os genocídios fundantes dos Estados-nações, no Brasil, ela persiste e se perpetua tanto na relação violenta com o Estado, como nas micro relações cotidianas típicas de uma sociedade autoritária, desigual, oligárquica e antidemocrática
Salvar a economia ou salvar vidas? Essa seria uma escolha viável? Seria nossa única escolha? Essa disjuntiva tem filiação clara e inconteste: o nosso sistema capitalista neoliberal. Somente uma ameaça mortífera fora capaz de escancarar a hierarquia de valores a que estamos submetidos: o lucro vale mais do que a vida. As vidas podem e têm sido sacrificadas em nome do mercado. Perguntar se temos de escolher entre economia e vida é um modo mais atenuado ou velado da indecente pergunta sobre quanto custa cada vida perdida nesta pandemia. Por detrás dessa pergunta encontra-se outra de fundo: que vida é esta? Cada vida vale o que cada um pode pagar por ela? Assim parece funcionar a engrenagem do sistema de saúde privado. Para ser mais explícita: o recorte de gênero, raça e classe evidencia que vale menos ou quase nada a vida pobre, negra, indígena e de mulheres. Basta verificar os números de quem morre mais sem ou com pandemia[1]. Simplesmente declarar que há uma banalização da vida e uma naturalização da morte não basta. É mais justo especificar: a banalização de certas vidas e a naturalização de certas mortes.
E se o sistema capitalista nos impõe essa disjuntiva neoliberal, essa escolha indecente, essa contabilidade obscena entre vida e economia, é porque sua natureza mesma promove a radical desigualdade entre vidas que podem ser vividas e vidas que não podem. Vidas precárias, para usar um termo de Butler[2]. Vidas vulneráveis, deixadas à mercê da sorte e da morte. Vidas matáveis. Morre-se de bala ou morre-se de descaso do poder público e de desprezo dos poderosos. E quem morre de bala, na verdade, é vítima do deixar morrer ou do fazer morrer do Estado. No primeiro caso, porque a vítima estava privada de direitos básicos garantidores de uma vida minimamente vivível (saneamento básico, moradia, comida, segurança, saúde, educação, mobilidade), ou porque é exterminada pela violência policial que é uma violência de Estado. O Estado mata ou deixa morrer os mais necessitados de sua presença. Essa política de extermínio não poderia ter outro nome senão necropolítica, como bem formulou Mbembe[3].
Se, no mundo, a necropolítica faz valer seu aspecto racista e sanguinário com os genocídios fundantes dos Estados-nações, no Brasil, ela persiste e se perpetua tanto na relação violenta com o Estado, como nas micro relações cotidianas típicas de uma sociedade autoritária, desigual, oligárquica e antidemocrática. Urge nos darmos conta da realidade da perda histórica de certas vidas, apenas acentuada e escancarada a olho nu nessa pandemia, e construirmos a narrativa de que os governantes são responsáveis pelo morticínio que estamos vivendo, seja por omissão, seja por intenção. Eles são constitucionalmente responsáveis por garantir a nossa saúde e preservar a nossa vida, minimizando os riscos de adoecimento e morte por meio de políticas públicas[4]. Não preciso listar aqui as várias ações e declarações de Bolsonaro que são, portanto, criminosas. Bastam duas: o seu macabro “e daí?”, menosprezando as vidas perdidas por covid-19, e ao dizer “lamento, mas todo mundo morre um dia”, eximindo a responsabilidade do Estado por tais mortes.
Se fosse uma fatalidade, como se molhar quem está sob a chuva, então não haveria o que fazer. E Bolsonaro se comporta exatamente assim: como se não houvesse o que fazer no combate ao vírus. Essa omissão é criminosa. Administrar o deixar morrer, abandonando “vidas improdutivas”, que, em verdade, são vidas vulneráveis não poderia ser senão uma política da morte, cruel e desumana. Seu comportamento negligente e indiferente com as vidas perdidas nessa pandemia opera como um mecanismo de desumanização de tais vidas, como se elas não fossem passíveis de lamento e de luto. Opera como um veto à melancolia nacional. E por que essa insensibilidade à dor e ao sofrimento? O que parece estar em jogo aqui é o esforço em promover o apagamento dessas vidas perdidas ao não se falar sobre elas, ao ocultar sua existência, por não ganharem representação alguma, além de um suposto lamentar a fatalidade da morte.
A vida, Bolsonaro, não tem preço. Seria indecente perguntar quanto custa uma vida. O capitalismo quantifica em número e cifras as vidas. E não custa dizer diante daqueles que cultivam a apatia generalizada ou a desumanização do outro e a naturalização de sua morte: são pessoas e não números. Cifrar o valor da vida é a demonstração da monstruosa crueldade desse sistema. O valor da vida não se mede porque é valor absoluto. Não poderia ser relativizado sem incorrer no risco de promover a desumanização. Se uma vida vale mais do que outra, então é porque uma vida é considerada mais humana e mais digna de ser vivida do que outra. A condição de humanidade deve ser compreendida aqui como condição para que a vida seja vivível, como preservação da agência do sujeito, garantindo-lhe a liberdade de ser e existir com dignidade e respeito. O processo de humanização pressupõe a libertação enquanto saída não do estatuto de menoridade, mas de algo mais elementar: a saída do estatuto de “coisa”, de um estado de dominação que coisifica, violenta e subjuga o outro, anulando sua capacidade de agência, portanto, sua condição de sujeito.
A dignidade e o respeito ao outro pressupõem o reconhecimento de sua humanidade, do que se segue imediatamente um afeto vinculante à alteridade na medida em que ocorre uma identificação com o outro e uma percepção da precariedade de vida do outro e da vulnerabilidade da própria vida humana. Vínculo afetivo e laço de solidariedade sobre o pilar de que todas as vidas têm o mesmo valor. E por que se opor a que toda vida tenha o mesmo valor? Não se opor significa limitar o capitalismo, como bem demonstrou Butler[5].
Se o alicerce de nossas lutas pela transformação desse nefasto sistema e modo de vida neoliberais está na defesa irrestrita do valor universal igualitário de toda vida, então cabe refletirmos sobre quais serão as nossas estratégias. A partir de nossa premissa primeira – toda vida tem o mesmo valor, podemos depreender três princípios norteadores da práxis: (i) princípio de saúde universal para todos, (ii) princípio ecológico planetário e (iii) princípio ético de mudança de modo de vida. Saúde universal, ecologia planetária e outro modo de vida ou epidemias em séries e risco de extinção da humanidade.
Saúde e equilíbrio ecológico são, indiscutivelmente, questões para serem tratadas globalmente e com urgência. A saúde não se obtém criando fronteiras e separações, mas a partir de um novo equilíbrio com os outros seres vivos do planeta. Como bem nos alertou Klein[6]: o nosso status quo é uma emergência e nos exige uma política de cuidados consigo e com os outros, laços de solidariedade, pensamentos e ações globais.
Para tanto, primeiramente é preciso discernimento sobre a realidade da perda e do potencial destrutivo do capitalismo somados à pandemia. E não haverá discernimento ou consciência da perda se não nos emocionarmos com as vidas perdidas e “se essas vidas continuarem inominadas e não lamentadas, se elas não aparecerem em toda a sua precariedade e destruição, não nos emocionaremos com elas”[7]; consequentemente, não criaremos vínculo com o outro e tampouco laços de solidariedade. Mas é preciso também coragem para encarar nossas dificuldades e injustiças, e esperança para lutar para que o amanhã não esteja à venda, parafraseando Krenak[8].
Discernimento, coragem e esperança no lugar do medo, angústia e insegurança. O medo e a insegurança nos paralisam e nos tornam submissos a quem nos promete segurança, preparando o caminho para tiranos e estados de exceção, como nos alertou Agamben. Não podemos mais viver uma forma de vida neoliberal. Ela se mostrou autodestrutiva, injusta e perversa. Ela nos conduziu a esse estado de ruína e nos ameaça a tirar a democracia e a própria vida. Ela nos constrange a viver, como nos alertou novamente Agamben[9], uma vida nua, de sobrevivência apolítica, frenética e consumista. Diante da atual crise global e da necropolítica de nosso Estado, é inadiável que aprendamos a viver um modo de vida mais simples, saudável, ecológico e democrático.
[1] A mortalidade por covid-19 entre negros é 60% maior que entre brancos diz estudo: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2020/08/mortalidade-por-covid-19-entre-negros-em-sp-e-60-maior-que-entre-brancos-diz-estudo.shtml.
[2] Ver BUTLER, J. Vida precária. Contemporânea – Revista de Sociologia da UFCar. São Paulo, 2011, n.1, p. 13-33. Disponível em: http://www.rogerioa.com/resources/Diversidade/12repres.pdf, e BUTLER, Judith. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
[3] Mbembe, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2018.
[4] Como está expresso no artigo 196 de nossa Constituição: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
[5] BUTLER, Judith. O capitalismo tem seus limites. Disponível em: https://www.redebrasilatual.com.br/blogs/blog-na-rede/2020/03/judith-butler-sobre-a-covid-19-o-capitalismo-tem-seus-limites/.
[6] Klein, Naomi e Davis, Angela. Construindo movimentos. Boitempo Editorial (Kindle).
[7] BUTLER, ibidem, p. 31.
[8] Krenak, Ailton. O amanhã não está à venda. Companhia das Letras. Edição do Kindle.
[9] Agamben, Giorgio. Reflexões sobre a peste: ensaios em tempos de pandemia. Boitempo Editorial (Kindle).