Sejam livres, é uma ordem!
Os ideólogos do jihadismo internacional sonham em cindir as nações europeias entre populações “brancas” convencidas de que um perigo islâmico as ameaça e uma franja de “muçulmanos” radicalizados pelo racismo e pelas intervenções ocidentais.Pierre Rimbert
Todo mundo temia, mas ninguém imaginava que o drama aconteceria assim: sexta-feira, 9 de janeiro de 2015, o zagueiro central do Montpellier Abdelhamid el Kaoutari não usou a camisa “Je suis Charlie” [Eu sou Charlie] no aquecimento preparatório para a partida contra o Olympique de Marseille. Logo, as redes sociais começaram a ferver. Convidado no domingo pelo Canal Plus, o treinador Rolland Courbis foi instado a dar explicações. No dia seguinte, a polêmica cresceu: três jogadores do Valenciennes só aceitaram vestir a famosa camisa com a condição de esconder o “je suis” sob um pedaço de fita adesiva. Na mesa redonda do Afterfoot, um programa importante da rádio RMC, o tom subiu. “Estamos brigando há uma semana pela liberdade de expressão”, explicou o apresentador Gilbert Brisbois, “vamos deixá-los se expressar e esperar suas explicações.” Furioso, o jornalista Daniel Riolo emendou: “A liberdade de expressão, que vai ser o argumento de todos os idiotas para que possam dizer todas as besteiras”.
Ser ou não ser “Charlie”? Na semana que se seguiu ao massacre de jornalistas e de cartunistas do semanário satírico, e em seguida de clientes de um supermercado kosher, por jihadistas franceses, a questão serpenteia como um rastilho de pólvora pelas redações. “A periferia dividida entre ‘Charlie’ e ‘não Charlie’” é o título do Le Monde (16 jan.). Na capa do Aujourd’hui en France (15 jan.), um cartaz “Je suis Charlie” rasgado simboliza “O risco da fratura”. Eis que todos são convocados não somente a escolher seu lado, mas sobretudo a aceitar a evidência dessa linha de demarcação. “É justamente naqueles que não são ‘Charlie’ que é preciso prestar atenção”, dispara a jornalista Nathalie Saint-Cricq no canal France 2. “São esses que devemos observar, tratar, integrar ou reintegrar à comunidade nacional” (12 jan.). “Conosco ou com os terroristas”: a mesma ladainha favorece as encenações mais espetaculares, os debates mais explosivos.
E os propósitos mais funestos. Os ideólogos do jihadismo internacional sonham em cindir as nações europeias entre populações “brancas” convencidas de que um perigo islâmico as ameaça e uma franja de “muçulmanos” radicalizados pelo racismo e pelas intervenções ocidentais. É verdade, os pontos demarcatórios já foram colocados há muito tempo para que a sociedade se organize em função de “valores” e identidades mais do que de forças sociais e interesses, para que uma fenda cada vez mais profunda separe assalariados, desempregados e vítimas da austeridade em função de suas crenças (ler o artigo na p. 4). No entanto, os obstáculos persistem. Substituir a linha de frente política pelo enfrentamento cultural implica que a pequena burguesia intelectual, sentada como é costume entre as duas cadeiras, oscile totalmente para o campo reacionário. Esse grupo social, que carrega suas contradições na tipoia, mantém com os proletários egressos da imigração uma reação ambígua, na qual se misturam desejo de mestiçagem cultural e relação de dominação, diversidade urbana e segregação residencial, antirracismo e etnocentrismo, laicidade intransigente e babás usando véu. Pilar do mundo da arte e da cultura, ele desempenha um papel decisivo na elaboração das representações sociais. Seu alistamento na guerra das civilizações seria no mínimo importante.
Essa estratégia da tensão se beneficia do apoio involuntário dos meios de comunicação e dos intelectuais obcecados pela reconfiguração do debate público em torno de uma alternativa: “Charlie” ou “não Charlie”. Não se trata mais nem de um “sim, mas…”. “Esses discursos relativistas de pequena fraqueza moral do ‘mas’, é contra isso que as pessoas lutam há anos”, explicou Richard Malka, advogado do Charlie Hebdo. “E é isso que não se deve permitir a partir de hoje” (C dans l’air, France 5, 9 jan.). Atenção àqueles que colocariam a embaraçosa questão do “dois pesos, duas medidas” em matéria de livre comunicação dos pensamentos e das opiniões. “É preciso condenar Dieudonné com o risco de lhe conceder um status de vítima?”, pergunta na France Inter o editorialista Thomas Legrand (15 jan.), enquanto o comediante é colocado sob custódia e perseguido por apologia ao terrorismo com base em um trocadilho ruim. “Essa questão é uma interrogação de subserviência, uma fraqueza, um abandono culpável, uma humilhação!” Recapitulemos: a liberdade de expressão, a democracia, a tolerância, a coragem são “Charlie”; a barbárie, o terror, o fanatismo, a intolerância são “não Charlie”.
A concórdia universal ou “fora os árabes!”
Pode-se apostar, no entanto, que os milhões de pessoas tomadas de emoção e cólera diante do anúncio das chacinas não se viram nessa sutil dicotomia. Com ou sem cartaz “Je suis Charlie”, tendo ou não participado das manifestações gigantes do domingo, 11 de janeiro, muitos experimentaram o sentimento orgânico da fraternidade sem se deixar enganar pelas imagens difundidas em looping de multidões tricolores cantando a Marselhesa e dando vivas à polícia. Quanto aos participantes da marcha reunidos pela necessidade de criar uma coesão, suas convicções eram menos homogêneas que aquelas dos participantes de procissão lacrimosos dos debates na televisão. A diferença vertiginosa entre o que “ser Charlie” significava para uns (a concórdia universal) e para alguns outros (fora os árabes!) retirava qualquer coerência da categoria se se refletisse um pouco a respeito. Mas é possível refletir em um regime de informação permanente?
Na sexta-feira, 9 de janeiro, quebrando sua grade de programação, a TF1, a principal rede francesa, seguiu transmitindo ao vivo, das 10h às 21h15; na Europe 1, a edição especial durou quatro dias. A batalha se dá não mais depois, e sim durante o evento, para lhe fixar o sentido. Nesse jogo, os meios de informação atiram sempre primeiro, reverberando no caleidoscópio das telas a filosofia espontânea de suas direções editoriais: um irresistível gosto pela ordem e pelo decoro, simbolizado pela imagem de 44 chefes de Estado e de governo, desigualmente democratas, desfilando lado a lado. A France 2 julgou crucial retransmitir a sequência em câmera lenta, acompanhada de violinos e de um piano meloso, com a fotografia da chanceler Angela Merkel debruçada ternamente sobre o ombro de François Hollande incrustada em destaque (12 jan.).
Descrita como choramingas e vulgar quando se manifesta por seus direitos sociais, a multidão torna-se de repente luminosa, estetizada à maneira de Delacroix em uma capa do L’Obs(11 jan.) que atualiza o quadro A liberdade guiando o povo, ou edificante, como o clichê de um jovem rapaz negro com olhar triste, o adesivo “Je suis Charlie” na face, contemplando a multidão do alto da estátua da República (Libération, 13 jan.) – um rosto de Potemkin mascarando a sub-representação de uma parte da população nos ajuntamentos de pessoas parisienses. Ao vivo do centro do mundo, o grande repórter Étienne Monin se extasiava na France Info (11 jan.): “Nessa manifestação, pequeno momento de graça, uma imagem luminosa, de uma beleza fel… imediata, a de um jovem casal, ela com os olhos azuis ligeiramente tristes; ele de uma beleza mestiça tranquilizante”.
Como no Carnaval, a homenagem da imprensa a si mesma colocou tudo de cabeça para baixo. “Fala-se da memória de Charb, Tignous, Cabu, Honoré, Wolinski: eles teriam defecado sobre esse gênero de atitude”, dizia enraivecido o cartunista Luz, sobrevivente da equipe do Charlie Hebdo(www.lesinrocks.com, 10 jan.). Insensíveis a essa observação, a fina flor dos comentaristas honrou o mau gosto pelos bons sentimentos, chorou caricaturas anarquistas ao longo de um desfile orquestrado pelo Ministério do Interior e abençoado pelo papa, pela Otan, pela Federação Francesa de Futebol e por Arnold Schwarzenegger. Gera calafrios a ideia de que Manuel Valls descubra a capa do Charlie Hebdode 18 de dezembro de 1975, que festejava o Natal por meio desta exortação muito pouco cívica: “Defecai nas creches. Acabai com os deficientes. Fuzilai os militares. Estrangulai os padres. Esmagai os tiras. Incendiai os bancos”.
Livres para serem unânimes
Em comparação, a musa da imprensa local, a liberdade de imprensa, parecia quase constipada. Sexta-feira, dia 9, dez diários exibiram a mesma manchete principal: “A perseguição”; e, na segunda seguinte, oito deles usaram simultaneamente o mesmo título: “Histórico!”. Um engavetamento de atualidade apimentou essa celebração do pluralismo na unanimidade quando, em 7 de janeiro, a “comunidade dos editores” de imprensa, constituída de dez sindicatos patronais, declarou solenemente que não cederia “jamais às ameaças e intimidações feitas aos princípios intangíveis da liberdade de expressão”; no mesmo dia, o bilionário Patrick Drahi, já coproprietário do Libération, confirmou sua intenção de adquirir as revistas L’Expresse L’Expansion.
Enquanto justamente o Libération consagrava sua energia para “curar a República” (17-18 jan.) com a ajuda de conceitos maiúsculos – Cidadania, Laicidade, Educação, Justiça etc. –, mas sem os meios para tal, o editorialista liberal Nicolas Baverez entoava uma ária bem conhecida: “A união nacional deve ser prolongada para lutar contra o islamismo, mas também para pôr em prática as reformas econômicas e sociais”, entre as quais “a liberalização do mercado de trabalho, que já demonstrou seu sucesso por toda parte” (Le Point, 16 jan.). A liberdade de imprensa sem dúvida sobreviveu aos atentados…
Pierre Rimbert é jornalista, autor de Libération, de Sartre à Rothschild (Paris, Raisons d’Agir Édition, 2005).