Sem escolas não é possível esconder a miséria da infância
Aos que dizem que quem defende a manutenção do fechamento das escolas neste momento não pensa nas crianças e adolescentes, argumentamos que é exatamente o contrário, pois somos nós professores que pensamos constantemente neles, que convivemos diariamente com histórias de violência, fome, miséria e que tentamos aliviar esse sofrimento
No debate sobre o retorno às aulas, que tomou conta da grande imprensa e das redes sociais, temas como o sofrimento infantil, causado pelo isolamento social e a vulnerabilidade econômica e social das crianças, ganharam grande destaque.
É fato que uma parcela significativa dos alunos de escolas públicas encontra nessas instituições acolhimento e meios para suprir suas necessidades alimentares e emocionais. Entretanto, é preciso lembrar que essas mazelas sociais são frutos da enorme desigualdade social que impera em nosso país e de investimentos insuficientes nas áreas sociais, condições agravadas pelas políticas de austeridade colocadas em prática nos últimos anos e que ocasionaram a queda na renda das famílias e levaram outras tantas para a linha tênue da miséria.
Quando defendemos o não retorno às aulas, diante de uma pandemia que ainda não está controlada no país e que já levou à morte mais de 100 mil pessoas, não estamos ignorando as dificuldades de centenas de milhares de crianças e jovens, assim como dos familiares, devido ao fechamento das escolas. Pelo contrário, estamos dizendo que, não obstante essas dificuldades e as perdas educacionais acarretadas pela pandemia, é fundamental colocar a preservação da vida dessas crianças e suas famílias em primeiro lugar; que não podemos colocar em risco as vidas de crianças, adolescentes e jovens, a despeito da importância da escola em suas vidas.
Sou professora de escola pública há vinte anos. Nessa trajetória encontrei todos os anos crianças famintas, que dependiam quase exclusivamente da merenda escolar para suprir suas necessidades nutricionais, sem saneamento básico e nos últimos anos algumas vítimas do trabalho infantil. No entanto, nunca a mídia ou determinados intelectuais, que atualmente têm defendido a abertura prematura das escolas em defesa dos direitos das crianças, se importaram com isso. Nesse tempo de magistério já tive alunos que precisavam tomar banho na escola, pois não possuíam sequer água potável e sabonete em suas casas, mas isso nunca causou comoção social.
É interessante que agora a escola tenha se tornado redentora de todos os problemas sociais que sempre existiram, mas que até a pandemia chegar e as escolas serem fechadas ninguém se importava, afinal, nós professores estávamos trancados nelas, tentando resolver sozinhos as mazelas sociais que ninguém sequer enxergava, ou simplesmente fingia não existir.
Essas crianças e suas famílias são vítimas das políticas de austeridade neoliberal, e não apenas do fechamento das escolas, que a priori objetiva preservar justamente a vida dessas famílias. Alguns setores da sociedade clamam pela abertura das escolas, argumentando que é necessário voltar à “normalidade” anterior, mas o que querem urgentemente é enviar as crianças para as escolas e entregá-las a seus professores para que estes voltem a tentar resolver sozinhos as questões sociais e educacionais do país. A volta à normalidade neoliberal implica esconder novamente essas crianças e jovens, que foram “descobertas” com o fechamento das escolas.
A nossa sociedade não tem tempo para a infância e nem para pensar em resolver seus problemas, todos estão ocupados demais produzindo riquezas para manter o capitalismo. E os governantes por sua vez estão ocupados demais elaborando ajustes fiscais e políticas de austeridade para favorecer a economia. Por isso, a ausência da escola é tão sentida pela sociedade, ela faz as pessoas enxergarem a existência dessas crianças, que sempre estiveram guardadas com seus problemas dentro das escolas.
Por fim, aos que dizem que quem defende a manutenção do fechamento das escolas neste momento não pensa nas crianças e adolescentes, argumentamos que é exatamente o contrário, pois somos nós professores que pensamos constantemente neles, que convivemos diariamente com histórias de violência, fome, miséria e que tentamos aliviar esse sofrimento. E é por tudo isso que reafirmamos não ser possível abrir escolas neste momento em nosso país; que para pensar em abertura precisamos primeiro ter uma queda significativa na curva epidêmica, condições de aplicação dos protocolos indicados pela Organização Mundial de Saúde e clareza nos procedimentos adotados para o controle do vírus nas escolas e nos meios de transportes utilizados por alunos e funcionários.
Nossa voz, tão silenciada ao longo dos anos, merece ser ouvida. É hora de dar um basta ao silêncio das mazelas que acomete a infância, causadas pelas políticas de austeridade tão defendidas por setores da sociedade. Nos recusamos a retornar para aquela normalidade que massacrava a infância e a vida dos profissionais da educação, que o “novo normal” não seja uma versão piorada do “normal” que vivíamos.
Ingrid Ribeiro, professora da Rede Municipal de Suzano/SP e membro da Rede Escola Pública Universidade (REPU).