Semifinalista do Jabuti Camila Anllelini fala sobre maternidade, psicanálise e literatura em seu livro de estreia
Nesta entrevista, a autora falou sobre o processo de escrita dessa obra intensa, que levou três anos para ser concluída, as influências literárias e artísticas que atravessam seu trabalho, e o que vem por aí em sua trajetória como escritora
A relação entre mãe e filha é um dos vínculos mais complexos da existência. Amor e ressentimento, acolhimento e rejeição, presença e ausência – todos esses sentimentos se entrelaçam de maneira única nessa conexão inaugural. Em De Amor e Outros Ódios (Editora Patuá), livro semifinalista do Prêmio Jabuti 2024 na categoria crônicas e finalista do Prêmio Minuano de Literatura, a psicanalista e escritora Camila Anllelini mergulha nesse tema com uma escrita poética e visceral.

Radicada no Rio de Janeiro, Camila constrói sua narrativa a partir de uma personagem que vive a ambivalência desse vínculo materno, transitando entre a admiração e o incômodo, entre o desejo de pertencimento e a necessidade de se diferenciar. Inspirada por sua trajetória na psicanálise e por grandes cronistas da literatura brasileira, a autora entrega um livro que convida o leitor a fazer as pazes com as contradições da própria história.

Seu livro aborda a relação com a mãe, as ambivalências entre amor e ódio e as marcas que carregamos dessa vivência inaugural. O que te levou a escolher esses temas e por que acredita que eles são tão universais?
Um psicanalista é um sujeito que atravessa, sobretudo, o seu processo de análise, além do estudo da teoria. Falar da relação com a mãe é falar do imbróglio de todos nós, do que nos inaugura na vida, da maneira que fazemos contornos frente ao desamparo. O modo como cada um de nós é marcado pela presença ou ausência da mãe é um tema recorrente na clínica e na vida.
Você menciona que ser psicanalista significa atravessar um longo processo de análise pessoal. De que maneira sua própria análise influenciou a construção do livro e da narrativa?
Ter escrito esse primeiro livro e não outro é, sem dúvida, efeito de análise, do lugar onde encontrei e abracei as contradições de amor e ódio, as minhas próprias contradições. Fazer essa análise possibilitou o encontro com as minhas incompletudes, e, consequentemente, as incompletudes do outro. Escrever para mim é isso, olhar o mundo pelas fendas e dar uma forma estética ao que está no íntimo de todos nós.
Você descreve a escrita como algo que acontece de maneira autônoma, quase inevitável. Como foi esse processo para você? Houve momentos em que precisou se afastar do texto? Como lidou com essa intensidade emocional ao longo dos três anos de escrita?
Escrever um livro é um processo autônomo, de certa forma independente das escolhas do autor. Escrevi essa história porque ela não só me encontrou escrevendo, mas também porque é um tema que me causa como sujeito e, por isso, fez parte de grande parte do meu percurso de análise. Por diversas vezes precisei me afastar do livro durante seu processo, fui muito tocada por ele, mas sabia que, de alguma forma, mesmo quando eu não estava sentada escrevendo, essa história estava sendo escrita em mim. Precisei esperar sua própria ebulição, até que eu não fosse mais capaz de guardá-la. Foi um processo longo, de aproximadamente 3 anos.
Como você analisaria as principais mensagens transmitidas pelo livro?
A minha intenção, se é que se pode ter tamanha pretensão ao botar algo no mundo, é que as pessoas possam fazer as pazes com as contradições das próprias histórias. Cada leitor ou leitora que me procura para dizer que encontrou nas páginas desse livro algo da sua singularidade me faz acreditar um pouco mais nesse trabalho.
O que este livro representa para você em sua jornada pessoal e criativa? De que maneira o processo de escrita transformou você? Houve algum momento em que percebeu essa mudança acontecendo?
A literatura me transforma todos os dias. Esse livro representa uma dose de coragem na qual antes dele me parecia selvagem e depois dele passou a ser bonita. Sem coragem não há frutos, mas coragem sem cultivo é apenas dureza. E a dureza não me interessa.
Embora este seja seu primeiro livro publicado, você já escrevia e publicava textos em coletivos virtuais. Como essa experiência te preparou para lançar um livro? O que mudou na sua relação com o texto ao transitar da escrita digital para a publicação impressa?
A publicação, ainda que autônoma via redes sociais e em coletivos virtuais, quando decidi que este seria um ofício, me ajudou a aprender uma certa distância do texto para poder publicá-lo. Quando estamos muito enroscados nele não conseguimos entregá-lo a outros olhares. Entretanto, um texto publicado passa a ser de quem o lê. É preciso deixar cair nossos ideais narcísicos, pois não há qualquer garantia do que será feito dele.
Você sempre teve um olhar atento aos cronistas e à concisão das narrativas curtas. Como foi o desafio de trabalhar esse formato no seu livro? O que mais te atrai na crônica e como você lida com a necessidade de dizer tanto em poucas palavras?
Desde criança admirava os cronistas de jornais e revistas, sempre tive a profissão em alta conta, banhada da minha criação particular de onde aqueles escritores viviam, como se davam seus processos e suas casas com estantes de livros até o teto e escada correndo pela frente para acessá-los. Sonhava em um dia assinar uma coluna de jornal, como Martha Medeiros, Luis Fernando Veríssimo, Arnaldo Jabor e também os que vieram antes do meu contato com as páginas de jornais como Clarice, Cecília Meirelles e Drummond. Admiro o trabalho de costura para alcançar a concisão necessária às narrativas curtas, não há tempo para rodeios em uma crônica.
Quais são as suas principais influências artísticas e literárias? Como essas influências aparecem no seu livro? Há alguma que tenha sido essencial na construção da sua escrita?
Tenho um apreço especial por ler gente viva, isso inspira o meu fazer artístico e literário. Nomes de mulheres da atualidade como Socorro Acioli, Carla Madeira, Aline Bei, Liana Ferraz, Mariana Salomão Carrara e tantas outras que cumprem de forma extraordinária seu papel de escritoras. Mas também sou influenciada por Clarice, Lygia, Hilda, Adélia Prado, Lúcia Berlin. Além delas, não só a literatura me atrai como fonte, há também Maria Martins com suas esculturas, Lygia Pape, Adriana Varejão, Claudia Andujar. Há a música, o cinema, o teatro. Há a vida acontecendo pelas ruas. Todas as formas de linguagem são influências em mim e para mim.
O seu fio condutor é a poesia, independentemente do gênero literário. Como isso se manifesta na sua escrita e no formato do livro? O que te atrai nessa fusão entre a crônica e a poética?
Me interessa usar a poesia para toda e qualquer coisa, também para outros gêneros literários. A poética é o que passa por todos os gêneros que me proponho a escrever. No caso do De Amor e outros Ódios, os textos que compõem o livro são crônicas poéticas, algumas em formato de cartas, além de dois poemas, um no início e outro no fim do livro.
Quando você começou a escrever? Olhando para trás, há algum momento específico que marcou sua decisão de seguir o caminho da escrita?
A partir do momento que aprendi o que era uma redação comecei a escrever, com gosto e entusiasmo pelo fazer que, àquela época, ainda não sabia que era um fazer literário. Os elogios das professoras de português e literatura me trouxeram a segurança necessária para a escrita cada vez mais criativa. Por esta razão, comecei também a ler desde muito pequena de forma contumaz. Acredito firmemente que não há bom escritor que não seja precedido pela leitura, são os livros que expandem o mundo da gente para além das janelas de casa, das andanças pelo bairro, das conversas que se ouve furtivamente. Um livro é um mundo no qual não teríamos acesso se alguém não o tivesse escrito, são as notícias da nossa própria fantasia pelo olhar de um outro, que sequer conhecemos, mas que escreve de maneira que a gente se reconhece, ou gostaria de se reconhecer. Escrita e leitura na minha vida andam juntas, sem elas alguma coisa fundamental se perde em mim, é a partir delas que faço contornos à minha própria subjetividade, para só depois poder elaborar algo disso.
Você tem algum ritual de preparação para a escrita? Tem alguma meta diária de escrita?
Tenho dois momentos de trabalho, a escrita sem compromisso com a forma, reescrita, edição etc. Para o primeiro momento, não tenho um modo formatado, preciso de uma centelha para o texto chegar, as leituras ajudam bastante, uma frase, um tema, uma palavra podem despertar o nascimento um texto. Depois de deixá-lo descansar por algum tempo volto para o trabalho braçal de edição, aí sim, caso esteja em um projeto específico, posso ter algumas metas.
Como você sabe que um texto chegou ao ponto certo? Como lida com essa tensão entre a liberdade criativa e a necessidade de lapidar o texto?
Acredito que um texto deve ser reescrito e editado quantas vezes forem necessárias até chegar na forma intencionalmente desejada, mas acho que ele precisa de liberdade para nascer, os enquadramentos não são bem vindos no processo criativo. Gosto de manter todas as versões dos textos que escrevo, da pedra bruta até a lapidação. Ainda que mude apenas uma palavra em horas de trabalho, mantenho como uma nova versão do texto, que vai se desenhando até que eu esteja satisfeita. Ou até que o abandone, como ensinou Clarice, para que ele possa ir para o mundo.
Quais são os seus projetos atuais de escrita? O que vem por aí?
Estou trabalhando em dois projetos, ainda sem data. Acredito que saia primeiro um romance, trabalho no qual estou mais envolvida agora.
Veriana Ribeiro é uma jornalista e escritora acreana com mais de 15 anos de experiência na área da comunicação, formada pela Universidade Federal do Acre (UFAC) e mestre em Meios e Processos Audiovisuais pela Universidade de São Paulo (USP). Publicou o livro Coletânea dos Amores Partidos (autopublicação, 2021) e participou da coletânea Antes que eu me esqueça \ 50 autoras lésbicas e bissexuais hoje (Quintal Edições, 2021), além de escrever projetos literários independentes como zines e newsletters.