Séries de TV para um público intelectualizado
Antes consideradas divertimento popular, as séries de televisão dos EUA adquiriram status de obra de arte. Elas apresentam personagens profundos, desafiam formalidades e abordam questões sociais. O público intelectualizado as aprova em maioria. No entanto, elas são uma estratégia para atingir um novo mercadoArnaud Rindel|Dominique Pinsolle
Hoje, na França, ainda é impossível dizer que amamos as séries de TV.” Essa era a amarga conclusão a que chegavam, há pouco mais de uma década, Alain Carrazé e Martin Winckler,1 dois de seus mais ardorosos defensores franceses. Desde então, a situação parece ter se invertido. As séries invadiram a imprensa, são tema de simpósios acadêmicos e livros que destacam sua profundidade filosófica. Como explicar essa repentina “diminuição de preconceitos dos meios graduados em relação à televisão”?2
As origens daquilo que em nossos dias se convencionou chamar de “televisão de qualidade” remontam ao início dos anos 1970, quando o advento do videocassete, canais a cabo e via satélite puseram fim ao monopólio das grandes redes norte-americanas (CBS, National Broadcasting Company [NBC] e America Broadcasting Company [ABC]) sobre a difusão a domicílio. Colocando de lado a busca exclusiva de uma audiência de massa, estas últimas começaram a mirar nichos específicos, em particular o público jovem e urbano com elevado nível educacional e cultural e, sobretudo, com alto poder aquisitivo. Esses espectadores, porém, são “muito difíceis de alcançar”, como explicou Garry Marshall (produtor da conhecida série Happy Days), porque você pode seduzi-los “usando sua inteligência […] e oferecendo-lhes o que não veriam em outro lugar”.3 A necessidade de satisfazer um público exigente explicaria assim uma segunda “era de ouro” da televisão norte-americana (sucedendo àquela dos anos 1950), cuja matriz é, na opinião de todos os especialistas, a série Hill Street Blues(1981-1987). E os avatares dela foram muitos: LA Law, Law and Order, I´ll Fly Away, Profit,Homicide…
Se esse tipo de série satisfazia então os fãs, o público letrado ainda não se decidia a trocar seu cartão da biblioteca por um controle remoto. Seria preciso esperar até que o canal de TV paga Home Box Office (HBO) se tornasse, no final de 1990, “a” referência em matéria de séries de qualidade para que a atitude dos meios intelectuais em relação à televisão mudasse radicalmente. Lançada em 1972, a HBO começou, depois de algumas experiências, a investir fortemente na área de produção de séries na década de 1990. A partir de 1995, o orçamento anual dedicado à programação original da rede passou de US$ 50 milhões para mais de US$ 300 milhões.4 A rede escolheu como alvo grupos sociais até então pouco interessados pela televisão.
Para conseguir isso, buscou se posicionar como uma espécie de negativo da televisão comum, explorando todas as receitas previamente desenvolvidas nas cozinhas da “televisão de qualidade”, em particular o recurso a uma linguagem grosseira, à nudez e ao “politicamente incorreto”. E o fato de a lei ser menos rigorosa com canais a cabo do que com as grandes redes lhe permitiu se liberar mais facilmente dos “tabus”. O resultado rapidamente chegou à altura do investimento: as séries Sex and the City (1998-2004) e Família Soprano (1999-2007) atraíram a um só tempo as boas graças do público e da crítica. Em dezembro de 2001, a New York Times Magazine contribuiu para a avalanche de elogios que inundou então a imprensa dita de qualidade: “Não há nenhuma discussão a respeito disso: este ano, a HBO […] nos deu alguma coisa que se aproximou de uma ‘mini era de ouro’ da TV”. Com base no sucesso, a HBO continuou a estratégia cara: cada episódio de Deadwood (2004-2006), por exemplo, custou cerca de US$ 4,5 milhões, enquanto na ABC um peso-pesado como Lost se contentava com um orçamento de cerca de US$ 2,5 milhões.
Sem receitas de publicidade, como financiar essas despesas? As assinaturas são a primeira fonte de receitas que a HBO dispõe para recuperar seu investimento. Seu número – 19,2 milhões em 1994 – aumentou mais de 50% entre 1995 e 2007. Hoje, o canal, presente em mais de setenta países, anuncia mais de 81 milhões de assinantes em todo o mundo (este valor inclui seu conjunto de canais especializados em cinema, o Cinemax). Essa dependência em relação ao número de assinantes obriga a HBO a conferir especial ênfase ao marketing e às campanhas promocionais, aos quais o canal consagra, em geral, duas vezes mais dinheiro que as grandes redes.
Distração e distinção
Cada lançamento de uma nova série ou de uma nova temporada é concebido como um verdadeiro acontecimento, anunciado com grande reforço de cartazes e spots de TV, com o conjunto sendo suficientemente sofisticado para não soar como um comercial vulgar. Como salienta Zach Enterlin, vice-presidente do canal e responsável pela publicidade sobre a série True Blood(lançada em 2008): “O alvo central […] é um público sofisticado de espectadores bem informados, que não gostariam de ser tomados como idiotas por anunciantes ou serem manipulados”.5
No entanto, a ideia de que a HBO dependeria apenas de seus assinantes, cuidadosamente cultivada pelo próprio canal, não corresponde à realidade. Tendo em vista a importância dos custos de produção, a primeira transmissão de um programa é insuficiente para recuperar um investimento de vários milhões de dólares. Assim, a duração e exploração das séries, por muito tempo limitadas à passagem pela antena, deve ser estendida ao máximo. A HBO, portanto, depende da viabilidade de suas produções nos mercados secundários, hoje representados pela venda às televisões estrangeiras, direitos de retransmissão (o syndication), comércio de DVDs e pelo vídeo sob demanda (ainda pouco desenvolvido). A parcela da renda relacionada à revenda do conteúdo no conjunto das receitas foi multiplicada por quatro entre 1998 e 2004, passando de 5% para 20%,6 sem contar os lucros gerados pela venda de produtos derivados. Embora seja muito difícil obter números precisos sobre a estrutura financeira da empresa (que cultiva a imagem de rede artística, cuja abordagem seria mais instintiva que comercial), todas as indicações são de que a importância dos mercados secundários não para de crescer. Dessa forma, em 2003, o custo das três primeiras temporadas de Família Soprano era totalmente coberto pela venda dos DVDs. Já Sex and the City alcançou em 2004 US$ 350 milhões durante seu primeiro ciclo de syndication na TBS e em vários canais locais, numa época em que as receitas da HBO ascendiam a cerca de US$ 1 bilhão. A crescente importância dos mercados complementares interessa muito aos anunciantes. Em 2002, o líder de uma empresa norte-americana de publicidade explicava que a colocação de produtos na série Família Soprano, então assistida por cerca de 11 milhões de estadunidenses a cada semana, era “o ideal”: “Não há nenhuma mensagem publicitária comparável. As pessoas estão constantemente revendo os episódios na televisão. Depois, elas os adquirem em DVD, e assistem novamente”.7 Além disso, podemos acrescentar que as oportunidades de fazer download pago ou gratuito (e ilegal) se multiplicaram.
A revenda dos programas que produz e transmite é ainda mais vital para a HBO quando se considera que o crescimento no número de assinantes não é exponencial. Ao contrário de sua concorrente Showtime (produtora de Weedse Dexter), a HBO chegou a ver, no final de 2010, a diminuição do número de assinaturas, da mesma forma que a empresa Cablevision Systems Corporation, proprietária do canal AMC, em parte financiado pela publicidade (produtor de Mad Mene Breaking Bad).8 Daí a maior necessidade de manter a demanda nos mercados complementares, o que certamente depende da reputação dos programas, que desperta a curiosidade do público não assinante, mas também da capacidade de se tornarem obras “cultas” fetichizadas por fãs ou dissecadas por um público letrado amante de debates e críticas. Para isso, era essencial aumentar o “valor de uso” dessas produções televisivas, fazendo-as penetrar no mercado cultural paralelo do qual há muito tempo têm sido objeto as obras cinematográficas e literárias: imprensa especializada, círculos literários e cinéfilos e meios universitários.9
Descrita como “programação diferenciada” por um dos ex-executivos da HBO, Chris Albrecht, essa estratégia é acompanhada de um discurso promocional que apresenta suas produções como obras de arte que escapam da lógica habitual do negócio da televisão. O slogan adotado entre 1996 e 2009 sintetiza esse discurso: “It’s not TV. It’s HBO” (“Não é TV. É HBO”). Enfatizando sua independência em relação aos anunciantes (deixando na sombra sua real imbricação em um sistema altamente comercial), a HBO encontrou uma maneira de escapar das críticas geralmente feitas por um grupo social propenso a desconfiar da indústria da mídia e ofuscado pela ideia de que uma obra de ficção possa servir para “vender tempo de cérebro disponível”.
As ambições da HBO e outros canais que exploram o mesmo filão encontraram o entusiasmo da imprensa e de um público inclinado a se distanciar do papel de espectador-consumidor associado aos fãs de produções de massa. Não se trataria somente de assistir à televisão, mas apreciar e comentar obras de ficção vistas como de vanguarda no plano formal, audaciosas no plano político (Treme, The Wire). A análise necessita de uma certa erudição e alimenta debates entre especialistas. Foi dessa forma que a prestigiada New York Review of Books consagrou longas páginas à série The Wire10 ou ainda a École Normale Supérieure realizou um ciclo de discussões chamado Filosofar com as séries de TV, dando origem em alguns anos a uma cultura erudita das séries de qualidade diferenciada da cultura popular das séries comuns.
Algumas séries como Família Soprano, A sete palmos(2001-2005), The Wire(2002-2008), Treme(2010) ou BoardwalkEmpire (lançada em 2010) adquiriram o status de joias de uma “Oitava Arte” que teria conquistado seus títulos de nobreza em face de uma fria produção cinematográfica. Hoje, a HBO já não é a única representante do que poderia ser chamado de “terceira era de ouro da televisão” – o sucesso atual de Mad Men coincide com a perda de velocidade do canal. Essa mania de “seriéfilos” é sem dúvida a maior façanha realizada pela HBO, ainda que a ala mais exigente do seu público tenha criticado a decisão de interromper séries ambiciosas (como Carnivàle, em 2005), e algumas vozes discordantes, como a do diretor Jacques Audiard, denunciem um culto das séries que têm como tendência a morte de uma certa cinefilia. Apesar dessas reservas, o canal encontra entre seu público seus melhores promotores, fãs de intrigas complexas e personagens profundos dimensionados para ser o assunto de intermináveis discussões, desde fóruns on-line até simpósios acadêmicos.
O “modelo HBO” funciona: em 2008, o canal era a empresa mais rentável do império Time Warner, ocupando, no centro daquilo que devia ser o “Wal-Mart da era da informação”11 um lugar comparável ao de uma prateleira de luxo em um supermercado. Desde o fim da década de 1990, outros canais a cabo também estão investindo nas séries e encontram sucesso semelhante, mesmo que sua audiência (entre um e quatro milhões de espectadores) nada tenha a ver com as dos programas mais populares (capazes de reunir mais de 15 milhões de pessoas). As grandes redes hertzianas, além disso, souberam adaptar com sucesso o modelo da série “de qualidade” (com Lost, Desperate Housewives, House ou ainda CSI) para atrair maciçamente os anunciantes, e de quebra aumentar ainda mais o poder da associação dos roteiristas, como evidenciado por sua vitória na greve de 2008.
Arnaud Rindel é membro da associação Action-Crittique-Medias (acrimed) e Dominique Pinsolle é historiador.