Silicon Army
Será que devemos considerar os softwares e hardwares do Google, da Apple e da Amazon como armas? Os gigantes norte-americanos da “nova economia” são intimamente ligados à Secretaria da Defesa dos Estados UnidosThibault Henneton
Que o Vale do Silício, bolsão das inovações da informática, trabalha com o Exército é algo que provavelmente ninguém mais ignora. Os objetivos dos militares sempre foram excelentes incentivos para a pesquisa e o desenvolvimento. A ancestral da internet, a Arpanet, rede de computadores surgida no início da década de 1970, foi concebida como uma resposta estratégica e financiada pela Agência de Projetos de Pesquisa Avançada (Arpa). A agência – fundada em 1958, a pedido do presidente Dwight Eisenhower, e renomeada Darpa em 1972 –, que conta com um orçamento anual de US$ 3 bilhões, dedica-se a apoiar invenções capazes de contribuir com a defesa nacional.
Durante os anos 1960, os contratos públicos de defesa mobilizaram as empresas do Vale do Silício. Embora a fonte de subsídios públicos e militares nunca mais tenha secado, os empresários mais libertários fingiram não ver o poderoso papel desse maná estatal. Entre 2013 e 2018, o montante das despesas federais dedicadas apenas à segurança informacional deve passar de US$ 9 bilhões para US$ 11,5 bilhões.1 A Amazon vende uma “nuvem” segura a mais de seiscentas agências governamentais e concluiu um contrato de US$ 600 milhões com a CIA.2 Os acordos comerciais entre as agências públicas e o setor privado explicam, aliás, em grande parte, sua colaboração em matéria de vigilância. “Mesmo a infraestrutura da NSA [Agência de Segurança Nacional] é construída por empresas comerciais!”, insistia, um ano após o caso Snowden, Anne Neuberger, responsável pela interface entre esses dois mundos na agência de inteligência, perante uma audiência de californianos cuidadosamente selecionados.3
É verdade que essa interface parece mais uma porta de saloon. Entre os movimentos mais notáveis, citemos o caso do chefe de segurança do Facebook, que foi para a NSA em 2010; o da ex-diretora da Darpa Regina Dugan, atual vice-presidente do Google; ou ainda o do ex-conselheiro de Hillary Clinton no Departamento de Estado que se tornou responsável pela estratégia da Microsoft.4 Isso sem falar da presença de Condoleezza Rice no Conselho de Administração do Dropbox… Por muito tempo reitora da Universidade Stanford, que mantém os laços mais estreitos com o Vale do Silício (foi lá que nasceram o Google e a Cisco, principalmente), antes de se tornar secretária de Estado de George W. Bush, Rice é a principal testemunha do casamento entre o setor (público) de defesa e aquele (privado) das tecnologias. Sem contar que, em Washington e Bruxelas, as despesas de lobby dos gigantes digitais, principais capitais em Bolsa do mundo, continuam a crescer.
A Darpa, por sua vez, trabalha nos bastidores para afinar essa osmose. Ela concede milhões de dólares em bolsas de estudo para escolas, com o objetivo de torná-las viveiros de hackers (programa Manufacturing Experimentation and Outreach, Mentor). Organiza concursos de informática, como o Cyber Grand Challenge, que oferece US$ 2 milhões a quem desenvolver a melhor ferramenta de defesa de rede. E, por meio do Darpa Open Catalog, contribui diretamente para os softwares livres, incluindo programas antivigilância, como o famoso Tor, projetado para navegar anonimamente na internet. Aparentemente desinteressados, ou até mesmo contrários aos objetivos militares, esses investimentos garantem que o Estado continue em sintonia com o que se inventa fora de seu perímetro.
E quando essa aposta de longo prazo parece muito incerta, as agências de defesa ainda têm a possibilidade de financiar diretamente as start-ups mais promissoras. Desde 1999, é isso que faz o In-Q-Tel, um fundo de capital de risco criado pela CIA, cujos troféus incluem um software de imagens de satélite – que deu origem ao Google Earth – e a Palantir, que hoje vale entre US$ 5 bilhões e 8 bilhões. Fundada por um dos investidores mais poderosos do Vale do Silício, o papa libertário Peter Thiel (PayPal, Facebook), essa ferramenta de visualização de dados por meio de conjuntos desordenados de informação, muito popular entre espiões, tem entre seus consultores o ex-diretor da CIA George Tenet e… Rice.
Desde os anos 1990, com a difusão da internet e a globalização da informação de origem eletromagnética, assiste-se a uma transformação do complexo universitário-militar-industrial criado no século XX, em detrimento da universidade e em prol do lucro do Vale do Silício. Em fevereiro de 2015, o laboratório de robótica de Carnegie Mellon, em Pittsburgh, perdeu quarenta funcionários de uma só vez, todos atraídos pela Uber.5 Dispensando o primeiro termo, as empresas de big data (conjuntos de dados) finalmente realizarão o “complexo militar-industrial” temido pelo presidente Eisenhower em seu discurso de despedida à nação, em 17 de janeiro de 1961, uma “indústria de armamentos permanentes” que torna as políticas públicas “reféns de uma elite científica e tecnológica”. Seu perímetro estende-se agora para bem além dos subcontratados históricos do Exército e dos negociantes de armas cibernéticas. O novo complexo securitário-informacional caracteriza-se por uma hibridação público-privada ao mesmo tempo aprofundada e ampliada.6
O próprio termo “segurança cibernética” – remetendo, concomitantemente, à segurança da infraestrutura informacional vital para a nação (centros comerciais, redes de transportes, energia, tratamento de resíduos, bancos etc.) e à segurança do espaço cibernético contra ataques à segurança de Estado (organizações com fins subversivos, Anonymous, roubo de dados) – trabalha em favor dessa ampliação. Podemos esquematizar o processo da seguinte maneira: em um primeiro momento, o Estado, notadamente a NSA, compra de empresas de segurança cibernética vulnerabilidades informacionais chamadas zero-day, que nunca foram descobertas; em seguida, as agências de inteligência comunicam essas vulnerabilidades à direção das grandes empresas digitais, por meio de programas secretos como o Enduring Security Framework. Em troca, essas empresas compartilham seus conhecimentos em matéria de análise e exploração de dados pessoais. Essa troca de favores sob a bandeira estrelada opera um deslizamento das missões propriamente militares de defesa (de infraestruturas mais ou menos vitais) para as missões de polícia (vigilância dos indivíduos).7
Devemos considerar então as grandes plataformas digitais como mercados de armas? Não, pois sua utilização em si não é letal. Sim, se considerarmos que os dados pessoais que elas produzem podem levar, após seu tratamento, a designar alvos a serem abatidos.
Thibault Henneton é jornalista do Le Monde Diplomatique.