Um relato sobre o sistema de saúde brasileiro
Após sete dias de hospitalização, minha mãe recebeu alta. No entanto, o sistema de saúde do Brasil continua doente
Hoje, dirijo-me diretamente àqueles que estão envolvidos no sistema de saúde, seja de forma direta ou indireta. Em meio aos desafios enfrentados no Brasil e no mundo, é imprescindível reconhecer a profunda responsabilidade social e humana dos profissionais que trabalham nesse setor. Recentemente, vivenciei uma experiência pessoal marcante enquanto acompanhava minha mãe, uma mulher negra de 67 anos, nos hospitais de São Paulo.
O que inicialmente era apenas uma preocupação com a saúde dela, diagnosticada com duas graves infecções e níveis de saturação muito baixos, transformou-se em um verdadeiro pesadelo. A médica que nos atendeu informou que minha mãe não poderia retornar para casa por causa do risco de vida, determinando a necessidade de internação. Concordamos, sem saber o que nos aguardava.
Ao chegarmos à ala de internação do hospital, nos deparamos com uma situação caótica: a lotação máxima, greve no outro hospital de referência da região e a necessidade de permanecer por dois dias em um espaço improvisado dentro da sala de medicações, junto com pessoas de diversas idades e condições de saúde que iam desde casos de amputação até cirrose.

Não havia macas disponíveis, o que significava que quem fosse internado ali passaria dois ou mais dias sentado em uma cadeira. A falta de limpeza era evidente, com sangue e outras sujeiras no chão. Uma das auxiliares de enfermagem chegou a me revelar que trabalhava sob o efeito de Tramal, um analgésico que age no sistema nervoso central, e mostrou-me seu braço completamente perfurado. O caos estava instalado. Idosos de 80 anos, crianças de 2 anos, todos aglomerados no mesmo local.
Apesar da lei n° 10.689/2000 garantir o direito de acompanhamento a idosos, ficamos reféns de cada troca de turno, em que, por deliberação administrativa, decidiam se os idosos e as crianças teriam direito ou não a um acompanhante. Mais de uma vez, precisamos travar discussões para defender o direito de todos ali presentes. Uma conversa em particular me deixou particularmente chocada.
A história de uma senhora que pagava por um bom convênio médico e, ao ter seu procedimento não autorizado pela empresa de assistência médica, viu-se dependente do serviço público, encontrando-se na mesma situação que todos os demais ali presentes. Ou seja, pagar um convênio médico neste momento no Brasil nem sempre resolverá o problema e garantirá que você, leitora e leitor, não passe por isso.
Após um dia nessa situação e depois de fazer uma reclamação formal na área administrativa do hospital, finalmente a transferência de minha mãe foi autorizada às 11hs da manhã do dia seguinte. No entanto, ela permaneceu por outras 17 horas na mesma situação, completando dois dias naquele lugar. O motivo? Não havia ambulâncias disponíveis. Todos aqueles que conseguiram transferência para internação permaneceriam ali até às 4 horas da madrugada, quando finalmente as ambulâncias chegariam para levá-los ao destino final.
Ao chegarmos ao novo hospital, agora para a internação, outra surpresa desagradável: um odor decorrente da falta de limpeza no quarto e uma paciente que havia retirado a sonda encontrava-se ensanguentada. A situação foi ignorada pela equipe de plantão, que não deu importância aos meus questionamentos. Somente na manhã seguinte o quarto seria limpo e a paciente, vítima de um tumor na cabeça e câncer nos ossos, seria adequadamente higienizada. Passamos mais de 24 horas sem ver ninguém da equipe dar água para ela, e apenas após uma conversa que nós resolvemos ter diretamente com ela, descobrimos que estava com sede. Finalmente, conseguimos falar com a nova equipe de plantão para que ela pudesse beber água.
Como diz a música, “Brasil mostra sua cara”. Se o sistema de saúde público e privado trata assim seus idosos e crianças, o que será de cada um de nós quando precisarmos? Não pude deixar de pensar: que tipo de atendimento está sendo destinado neste exato momento às vítimas de calamidade no Rio Grande do Sul? O que acontecerá se passarmos por uma nova pandemia? Após sete dias de hospitalização, minha mãe recebeu alta. No entanto, o sistema de saúde do Brasil continua doente. Estamos na UTI, em condições críticas.
Faço um apelo a você, que lidera ou atua na área da saúde: que responsabilidade você assume diante de situações como esta? Quando a saúde de qualidade voltará a ser prioridade no país?
Liliane Rocha é CEO e Fundadora da Gestão Kairós, mestre em Políticas Públicas pela FGV e conselheira deliberativa do Instituto Tomie Ohtake.