Só se enxerga o palco da coxia
Em nossa sociedade, a cor da pele sempre foi o fundamento da desconfiança, embora poucos se permitam admitir. E isso precisa ser dito
Imaginemos a seguinte situação, hipotética. Terça-feira, dia 02 de julho, no Teatro Sérgio Cardoso. A cerimônia de entrega dos troféus aos melhores da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) de 2023 – um dos prêmios de maior prestígio para as áreas da cultura na cidade de São Paulo e no Brasil, em especial para o teatro, de onde surgiu, agora em sua 67ª edição – convida ao palco os últimos agraciados da noite. Inúmeros artistas, então, sob calorosos aplausos, sobem ao tablado. Enquanto alguns deles discursam seus agradecimentos, um – de 42 anos, ator e historiador da arte – é deslocado para a coxia para ser revistado, sob a acusação de estar roubando a própria estatueta que acabara de ganhar, logo antes de ele mesmo poder tomar a palavra. Quando o faz, após ter mostrado que não se tratava dela mas de seu telefone celular, denuncia o inconcebível ocorrido. Em nota oficial do evento, dois dias depois, descobre que, na verdade, fora alvo de uma “comunicação gentil e educada”[1], já que a solenidade “não contou com segurança[s]” e que “jamais houve pedido para que [ele] abrisse a bolsa”. É informado, por fim, pela terceira vez, de que o objeto em torno do qual se deu todo o “ruído” era “cenográfico”, não tendo nenhum valor, mas que a “escultura legítima” seria entregue “na casa dos premiados”.

Créditos: Instagram @apcapremio
Contada dessa maneira, a cena parece extraída de uma peça do teatro do absurdo ou, quem sabe, de um conto fantástico, cujos objetivos, descobertos a posteriori por um crítico trabalhado no eruditismo, poderiam ser a denúnicia da falta de sentido da vida, por meio da frustração implacável das expectativas, ou mesmo a desnaturalização da essência das instituições, por meio da subversão de suas funções. Talvez pudesse até ganhar um caráter tragicômico, a depender dos recursos estilísticos utilizados, e um crítico de pegada mais popular poderia aventar a hipótese de se tratar de uma representação de um antigo trauma coletivo, o roubo da gloriosa Taça Jules Rimet, em 1983, subtraída do patrimônio nacional futebolístico e desaparecida até hoje – fosse ficção. Mas não é. Haveria muitas maneiras de contar essa história – mais jornalísticas, dando maior rigor aos fatos; mais literárias, priorizando o efeito de sentido que se quer alcançar –, só que nenhuma delas escaparia do desconcertante diagnóstico: nossa capacidade imaginativa frequentemente falha em produzir acontecimentos tão surpreendentes quanto os que transcorrem em nossas vidas, por seu caráter absurdamente explícito e explicitamente absurdo.
Cada geração deve descobrir sua missão. Cumpri-la ou traí-la[2]. Por isso, diante do inominável e apesar das dificuldades, a Companhia Antropofágica de Teatro, que viu a celebração da relevância de seus 20 anos de trabalho voltar-se contra ela, não pôde calar-se. Isso seria trair uma das lutas históricas mais centrais para o país, a luta contra o racismo estrutural. “Fomos chamados lá pra ser premiados ou humilhados?”, sintetizou muito bem uma militante negra, integrante do grupo. Coube a eles, portanto, a denúncia – bastante cuidadosa, é importante frisar – de que o olho forjado dentro uma estrutura como a nossa vê o mundo por uma ótica racializada, à revelia das vontades do sujeito que enxerga, e, por isso, mesmo pessoas que não são, a princípio, racistas podem cometer atos orientados pelo racismo.
A primeira evidência de que se trata disso é que a aparente impossibilidade de compreender o que se passou começa a se desfazer assim que um fato crucial insuspeitado, a identidade dos envolvidos, vem a público: o sujeito constrangido é queer, periférico e negro; já aquele que o constrangeu é branco, com relativo prestígio e, consequentemente, relativo poder. Talvez em um outro mundo, um melhor do que o nosso, menos desigual e preconceituoso, alguém pudesse se perguntar: “mas o que a identidade do ator tem a ver com a suspeita que recaiu sobre ele?”. Aqui não… todo brasileiro sabe muito bem que essa pergunta só poderia denotar duas atitudes: inocência patológica ou cinismo atroz. Em nossa sociedade, a cor da pele sempre foi o fundamento da desconfiança, embora poucos se permitam admitir. E isso precisa ser dito.
A segunda é que, até o momento, não houve nenhum pedido de desculpas ou retratação por parte das instituições envolvidas. Na contramão do que seria desejado – mas não, infelizmente, do esperado dentro de um pacto de branquitude[3] –, a APCA tentou fazer crer que tudo não passou de um grande “mal-entendido”, de “uma coisa tão boba”, já que “não haveria motivo para (…) constranger ninguém”, para citar as palavras de um dos envolvidos. Em suma, a de que a “acusação de racismo” seria “inaceitável”, uma vez que não haveria espaço para atos racistas em um evento que “defende direitos iguais para todos”.
Ora, o fato de esse episódio ter se dado justamente em um espaço plural, cuja defesa aberta e necessária da diversidade se faz não só com palavras politicamente corretas, mas também com o reconhecimento genuíno daqueles que merecem estar ali representados – dentre outros premiados, estavam no palco a Companhia Antropofágica, que mantém um espaço cultural na Comuna da Terra Irmã Alberta, em um assentamento urbano do MST na periferia de São Paulo; e o Grupo Clariô, cuja sede em Taboão da Serra encontra-se neste momento ameaçada pela especulação imobiliária e que está em campanha para reverter tal situação – só prova o quanto estamos diante de uma questão estrutural.
Cumpre, nesse sentido, explicitar o óbvio: houve, sim, um “mal-entendido”. Sempre há… Mas ele, ao contrário do que se poderia pensar, não desmente supostas atitudes racistas; ao contrário, as revela. Em um país em que o mito da miscigenação – cujo resultado seria a democracia racial – foi durante tanto tempo a forma pela qual as relações raciais foram entendidas, é somente naquilo que escapa à razão, naquilo que dribla as boas intenções, que podemos encontrar a realidade que tanto se tenta esconder. Nesse sentido, atitudes racistas de pessoas não-racistas ou mesmo antirracistas são mais reveladoras do que atitudes abertamente racistas, perpetradas por supremacistas brancos. Elas nos permitem, mais do que quaisquer outras, sondar o insondável e chegar ao recalcado. Mas elas não bastam. Precisamos também olhar com atenção os detalhes e fazer perguntas, além de ir atrás dos fatos, das estatísticas, de tudo aquilo que escapa às distorções promovidas pela consciência interessada em se defender.
Os fatos, portanto. Não faz muito tempo uma furadeira foi confundida com uma arma; pouco tempo depois foi a vez de um guarda-chuva ser tomado por fuzil; recentemente, um pedaço de madeira e até mesmo um saco de pipoca ludibriaram as forças policiais – todos esses equívocos culminaram na morte de pessoas negras; naqueles já julgados pelo poder público, nem sempre a justiça esteve ao lado dos assassinados. A lista dos ditos “ruídos” é tão extensa que fica claro que estamos diante de erros de interpretação motivados, que encontram respaldo na forma como está estruturada a visão de mundo de grande parte da população. Mas o que os motivaria?
A mais flagrante motivação é a imagem do negro como “suspeito padrão”, como aquele ser perigoso, sempre propenso a toda sorte de contravenção, aquele, ao fim e ao cabo, que precisa ser vigiado e cuja palavra não é confiável. Para Fanon, é “o não ser”, aquele que no mundo moderno encarna o mal absoluto. Essa imagem preconceituosa é responsável pelas inúmeras violências a que estão sujeitos os mais vulneráveis. Do enquadro corriqueiro nas ruas da cidade, passando por suas versões mais inusitadas, como a aqui relatada, até o genocídio policial, a gramática é semelhante; diante da incerteza em relação a pessoas negras, não se deve hesitar: atira primeiro, pergunta quem é depois; prende primeiro, julga depois; revista primeiro, se desculpa pela desconfiança depois. Os ditos mal-entendidos tendem, desse modo, a se resolver sempre em prejuízo das vítimas, e não de seus algozes.
Como pode mais da metade da população de um país viver tranquilamente sendo tratada assim? Não pode. Os dados do Ministério da Saúde atestam essa triste realidade: o índice de suicídio entre adolescentes e jovens negros é 45% maior do que entre brancos. O número se repete em relação à probabilidade de desenvolvimento de depressão. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), 68,2% da população encarcerada é negra e 25,3% do total dos presos não têm condenação. Os dados do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) atestam: para os assassinatos policiais com cor de pele informada, 87,4% das vítimas são negras.
A violência precisa ser transformada em linguagem para que se torne suportável, para que não trucide, em caso de sobrevivência do corpo, a alma. Mas a linguagem é um campo de batalha tão intenso quanto o mundo que a sustenta, e muitas vezes é a própria fonte da violência.
É bastante sintomático e elucidativo, nesse sentido, que, quando pessoas negras tentam denunciar a violência que sofrem, operem-se as mais despudoradas inversões, no campo da linguagem e também fora dele. A começar pela ideia de que haveria uma “acusação” de racismo. A acusação (infundada e velada) foi de furto, evocar a palavra “racismo” é uma forma de tentar explicar aquilo que não é possível compreender de outro modo, já que a acusação parece ter sido feita com base na cor da pele do acusado. Como se vê, não se trata de uma acusação, e sim de uma constatação, bastante incômoda – não para quem cometeu o ato racista, isso seria mais uma típica inversão, mas – para aquele que foi constrangido. Em comentários nas redes sociais e até mesmo no banheiro do evento da cerimônia em questão, ouviu-se e leu-se que gente assim, que expõe as atrocidades que ocorrem nos momentos mais impensados, queria estragar uma bela noite; era ressentida ou desejava se aparecer; julgava-se acima do bem e do mal, pois ansiaria pelo privilégio (dos brancos) de não ser revistada.
As perguntas, enfim: quem estragou a noite de quem? Por que aquele que denuncia o estrago é visto como aquele que estraga? Não estaria a noite já estragada e por isso a denúncia? Não estariam aqueles que alegam o ressentimento dos que expõem os limites de nossa democracia justamente projetando seu próprio ressentimento por ver espaços historicamente destinados só a eles sendo democratizados? Quem fez o ator aparecer não foi justamente a desconfiança sobre ele? Não preferiria, ele próprio, desaparecer a ser visto como ladrão? Não querem aqueles que cometem um ato racista estar acima do bem e do mal quando não se responsabilizam por seus atos? Por que a abordagem se daria durante a entrega do prêmio, e não depois dela? Não passou pela cabeça dos bem-informados que privar um ator de ouvir os agradecimentos de seus colegas, em nome de um suposto mal-entendido, seria, por si só, já um constrangimento? Qual era o objetivo dos bem-intencionados ao não se satisfazerem com a resposta, dada pelo ator e omitida até agora, de que o prêmio não estaria com ele, se não forçá-lo a uma revista disfarçada e aparentemente voluntária? Qual o sentido de compartilhar com o ator de quem se desconfiava a informação de que alguém teria visto o troféu sendo colocado dentro de sua bolsa, se não forçá-lo a uma revista disfarçada e aparentemente voluntária? Se o troféu era cenográfico, por que tanta preocupação com ele?
Por que um homem negro, no momento em que recebe um prêmio, abriria sua bolsa voluntariamente? Se tantas pessoas estavam mal-informadas em relação à natureza dos troféus, por que não informar a todos os presentes? Por que o homem que interpelou o ator e disse querer se desculpar não ficou para elucidar, ali na hora, o suposto “mal-entendido”? Se não houve nada de errado, por que ele quis, logo de cara, se desculpar?
Tantos ruídos.
Tantas questões.
Este artigo foi escrito a partir da “Carta Aberta da Companhia Antropofágica”, publicada em 05 de julho, em seu instagram oficial @antropofagicateatro.
[1] Todas as citações deste artigo são fidedignas, extraídas diretamente das fontes. Não interessa, contudo, explicitá-las, uma vez que não se trata de levar adiante uma acusação, mas antes de tentar entender, a partir dos fatos, como funciona nossa sociedade. Para todos os efeitos, portanto, elas poderiam ter sido inventadas.
[2] FANON, Frantz. Os condenados da terra. Tradução Ligia Fonseca Ferreira, Regina Salgado Campos. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.
[3] BENTO, Cida. O pacto da Branquitude.São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
Rafael Ciancio é professor da Arco Escola-Cooperativa e Mestrando do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP, com pesquisa sobre a poesia de Solano Trindade.