Sob a proteção de um jaleco
Máscaras e testes, duas coisas reconhecidas como eficazes. Máscaras e testes, duas coisas de que Paris se privou metodicamente. A França não apenas se livrou de seu estoque estratégico de proteções respiratórias, como também as práticas de relocalização empreendidas pela elite política há trinta anos amputaram sua capacidade de produção
Transformar um país em uma prisão a céu aberto, sem provocar revolta, é sem dúvida uma façanha, tendo em vista que contra esse processo já se esboça um vigoroso movimento social. No entanto, vários dirigentes fizeram isso por ocasião da pandemia de Covid-19. Em alguns países, o poder recorreu à força; na França, ele se diluiu por trás de um punhado de especialistas de jaleco, depois de ignorar as reivindicações dos cuidadores no outono de 2019. Há vários meses, nenhuma declaração política deixa de vir acompanhada de um “conforme a opinião dos cientistas” ou de um “por decisão conjunta dos médicos”. Os cientistas “tomaram o poder”, alarma-se Éric Zemmour.1 Mas os cientistas, ao contrário, não se esforçaram para servi-lo?
Quando Emmanuel Macron nomeou o Conselho Científico Covid-19, presidido pelo imunologista Jean-François Delfraissy, em 10 de março de 2020, dois instrumentos foram identificados para frear a pandemia: as máscaras e os testes. Em 22 de janeiro, o diretor-geral da Saúde, Jérôme Salomon, explicou que as primeiras reduziam “consideravelmente o risco de infecção”, antes de um tuíte do Ministério da Saúde aconselhar o uso de “uma máscara cirúrgica” para “ir e vir do trabalho” (24 de janeiro).2 Por sua vez, a Organização Mundial da Saúde (OMS) sugeriu uma estratégia de rastreamento maciço: “Temos uma mensagem simples para todos os países: testem, testem, testem”, repisou o diretor-geral da organização em uma declaração de perto de mil palavras, durante a qual repetiu o verbo dezoito vezes (16 mar.). Máscaras e testes, duas coisas reconhecidas como eficazes. Máscaras e testes, duas coisas de que Paris se privou metodicamente.
A França não apenas se livrou de seu estoque estratégico de proteções respiratórias, como também as práticas de relocalização empreendidas pela elite política há trinta anos amputaram sua capacidade de produção. O país não consegue se equipar nem produzir tudo de que precisa para lançar uma campanha abrangente de rastreamento. Quanto aos hospitais, há muito tempo vêm denunciando os cortes orçamentários que ameaçam seu funcionamento.3 As raízes da crise são, pois, tanto políticas e industriais quanto sanitárias.4 Isso todos sabem, menos o Conselho Científico.
Tal como um encanador que insistisse em usar apenas um rodo para estancar um vazamento, Delfraissy puxa a água… “Os hospitais da Itália ficaram submersos, houve então recomendações. […] Deixaram de ventilar os doentes com mais de 75 anos. Em caso de sobrecarga nos hospitais franceses, teremos também de resolver esse problema?”, perguntou-lhe Nicolas Demorand na France Inter, em 11 de março de 2020. “Nesse caso, a gestão de recursos escassos é que decide o tipo de paciente a tratar”, respondeu o imunologista. Por que os recursos são escassos? Responder a essa pergunta exigiria erguer os olhos para o cano furado das políticas neoliberais. Delfraissy prefere o rodo. Adotando essa atitude ao tomarem a palavra, os especialistas científicos patrocinados pelo governo trabalham para transformar a cólera política – que agora ruge – em angústia existencial. Contra decisões desastrosas, podemos nos insurgir; mas a fatalidade é um adversário que não temos outra escolha senão suportar.
Ao sabor de seus trabalhos, o Conselho Científico faz um passe de mágica: converte o despreparo francês em doutrina sanitária. Paris não tem máscaras? Então elas são inúteis. O fornecimento é retomado? Sua utilização se torna desejável. O cão-guia que corre atrás do dono desorientado arrisca-se a sofrer algumas contusões, que não demoram a aparecer.
Sem máscaras, sem testes, com poucos aparelhos de ventilação e leitos de hospital, desprovido tanto de credibilidade quanto de estratégia, mas protegido por uma fiança científica dócil, o governo consegue finalmente incutir como melhor a única solução de que dispõe: um confinamento de violência medieval, impondo a cada um o dever de continuar vivo, embora privado da possibilidade de permanecer humano.
Até então, outra entidade havia oferecido ao poder o verniz científico que lhe permitisse apresentar suas preferências políticas como necessidades: os economistas, desde que de inclinações liberais. Se o recrutamento social dos especialistas do mundo médico não os afasta dos círculos do poder, a ciência a que recorrem repousa, a priori, em alicerces mais sólidos. Trata-se, notadamente, de um regime de administração da prova suscetível de obter consensos inabaláveis. Contudo…
“A ciência lembra a história: é constantemente reescrita pelos vencedores”, explica o estatístico Marc Hoffman. “Nomes são apagados, polêmicas são obliteradas, quando na verdade o que existe é um espaço de conflito permanente, onde nunca há consenso.” Debate-se, discute-se, compete-se nos laboratórios de pesquisa. Seria possível imaginar que, num contexto de rivalidade das equipes, os fachos dos holofotes da mídia e a emergência sanitária os convidariam a se entender?
Por ocasião de um seminário na Universidade de Paris-Dauphine, em 3 de junho de 2020, o matemático Yvon Maday relatou: “Vários cientistas ficaram totalmente loucos por causa dessa pandemia. Viram a possibilidade de aparecer como nunca. Coisas fundamentais como dados – dados de epidemiologia etc. – foram recuperadas por certo número de equipes que não quiseram partilhá-los”.5 “No contexto da atual pandemia”, adverte o biólogo Antoine Danchin, membro da Academia de Ciências, “temos visto, em lugar de uma reflexão sobre a doença, uma batalha de imagens, pois pseudocientistas que odeiam as redações estão ali para serem reconhecidos na rua, não pelo conteúdo do que pretendem dizer”.
Submetam a mesma pergunta a três economistas e obterão quatro respostas diferentes, como teria ironizado Winston Churchill. Ocorre o mesmo no mundo científico. Como explicar, então, que os trabalhos do Conselho Científico Covid-19 tenham chegado sempre a opiniões unânimes (com exceção das divergências denunciadas por Jean-Laurent Casanova, sistematicamente inseridas em notas de rodapé ou relegadas a anexos)?
Talvez isso ocorra porque, a fim de desaparecer por trás dos jalecos à sua volta, o poder deva estar capacitado a fingir que segue “a Ciência”. O surgimento de pontos de vista divergentes o impediria de apresentar suas decisões como “necessárias”, e elas então “voltariam ao campo da política”, como analisou o cientista político Benjamin Morel na France Culture (4 abr. 2020). Ora, o campo da política é também o da contestação. Daí, sem dúvida, o desconforto dos dirigentes diante das controvérsias suscitadas pelas tomadas de posição do professor Didier Raoult com relação à eficácia da hidroxicloroquina. À parte seu possível interesse científico, elas enfatizam implicitamente a responsabilidade do poder: resolver e decidir, o que ele preferiria fazer na maior discrição. Graças ao Conselho Científico, tempo para isso não lhe falta.
No “mundo de antes”, oferecer ao poder um serviço de relações públicas era função de economistas contratados.6 A especialidade mudou, a função permanece.
Renaud Lambert é jornalista do Le Monde Diplomatique.
1 Le Figaro, 10 abr. 2020.
2 Citações extraídas por Nabil Touati de “Sur les masques, l’argument de LREM sur le revirement cientifique tient mal la route” [Sobre as máscaras, o argumento de LREM para as reviravoltas científicas não se sustenta], 29 abr. 2020. Disponível em: www.huffingtonpost.fr.
3 Ver Frédéric Pierru, “Le cauchemar de ‘l’hôpital du futur’” [O pesadelo do “hospital do futuro”], Le Monde Diplomatique, out. 2019.
4 Ver Renaud Lambert e Pierre Rimbert, “Jusqu’à la prochaine fin du monde…” [Até o próximo fim do mundo…], Le Monde Diplomatique, abr. 2020.
5 Em “Cedric Villani au GdT Covid-19, université Paris-Dauphine” [Cedric Villani no GdT Covid-19, Universidade Paris-Dauphine], 3 jun. 2020, a consultar no YouTube.
6 Ver “Les économistes à gages sur la sellette” [Os economistas contratados na berlinda], Le Monde Diplomatique, mar. 2012.