Sob risco de irrelevância, torneios estaduais dependem de pacto federativo
Mudanças parecem iminentes, mas subestimam tradições do futebol brasileiro. Em Brasília, novo arranjo com governadores foi discutido por Lula. Acompanhe no novo artigo da série Entrementes: futebol, política e cultura popular
A provocação vem em forma de cutucão no trabalho e na escola, pelo celular ou em brincadeira no meio da rua. A derrota do seu time no torneio estadual não afeta diretamente o desempenho em competições nacionais. Nem mesmo uma eventual vitória. São disputas diferentes, com agendas, premiações e regulamentos próprios. A rivalidade com os adversários da cidade ignora isso: a rotina de quem acompanha o futebol é tomada por esses resultados. Quem não reconhece essa importância desconsidera a festa dos vencedores e o murmúrio dos derrotados, que ainda ressoam pelas cidades.
A avaliação de que esses torneios são resíduos de um passado arcaico ignora, por exemplo, a goleada do Fluminense, a virada do Palmeiras, a vitória sofrida do Grêmio e as conquistas de Bahia e Atlético Mineiro. Embora o calendário do futebol tenha sido submetido a alterações – perante uma paisagem cada vez mais global e homogeneizada –, os resultados dos estaduais movimentam o Brasil. No entanto, a falta de sintonia com a escala nacional gera estranhamento e confusão da função que esses jogos exercem, na prática, para o conjunto da temporada.
Nos cem primeiros dias de Lula no Palácio do Planalto, foi levantada a possibilidade de reorganizar a relação dos estados com a União. Os governadores sofrem com dificuldades orçamentárias e com a desorganização legada pelo mais recente mandato presidencial – subitamente esquecida nas críticas ao começo do ano inaugural da nova gestão do presidente em Brasília. O impacto dessa disposição das forças políticas se estenderia para a economia e tornaria viável medidas locais para lidar com desigualdades e particularidades regionais.
Não é preciso estimular uma competição entre essas duas esferas, tanto no esporte quanto na política. No caso do futebol, o ajuste parece iminente em virtude das condições econômicas dos clubes e dos novos padrões impostos pelas plataformas digitais. Aspectos técnicos e táticos até surgem nas propostas para a nova realidade das disputas, mas a tensão de diferentes interesses norteia os rumos das discussões. A caricatura da situação é a formação do grupo de diretores paulistas e cariocas para impedir a taxação das apostas na internet, cujas empresas patrocinam seus times. É a prioridade para as diretorias.
Os anos 1980 observam outro tensionamento entre as dinâmicas regional e nacional com mais veemência. A título de exemplo, é possível destacar o Campeonato Carioca: na metade final da década, os torneios estaduais passaram a ficar confinados anualmente nos seis meses iniciais – se antes se espalhavam ao longo do ano, no século XXI ainda se situam no primeiro semestre. O movimento tem uma profunda conexão com a radiodifusão dos jogos para o público. A infraestrutura necessária para a transmissão com imagens para diferentes estados do país só se consolidou nos anos 1970.
A proposta de coesão do território nacional da ditadura motivou o interesse pelo cabeamento e pela instalação de antenas, necessários para essa mudança de escala da televisão no Brasil. A medida não era visionária e igualmente se inseria no conjunto de ações do regime para o controle das oposições, sob o argumento da manutenção da segurança nacional. É justamente na mesma década que é criado o Campeonato Brasileiro, após sucessivas tentativas. O sucesso àquela altura tem uma relação direta com os direitos de transmissão.
As diretorias começam a estabelecer regras para que as emissoras custeiem o uso das imagens de seus times aproximadamente no mesmo período. Até ali, a televisão era encarada como uma rival. O medo de os torcedores deixarem de ir aos estádios para acompanhar os jogos de casa ainda orientava a reação dos clubes. Com a ascensão do Brasileirão, o panorama se transforma. Foi possível, assim, sustentar a convivência das esferas nacional e regional. Essa nova configuração resiste e, apesar das transformações impostas pelos pacotes para assinantes, chega ao novo milênio.
O modelo ruiu com a expansão da internet banda larga e a popularização do streaming na pandemia. O grande porte das emissoras de TV aberta não suportava a emergência de pequenos canais em plataformas digitais. Obviamente, esse é somente um dos fatores da debacle. O instante crítico acelerou a discussão sobre a formação da liga nacional que, além de tirar da administração da Confederação Brasileira de Futebol o principal Campeonato do país, facilita a negociação com os interessados na transmissão. O futuro dos torneios estaduais não parece estar na mesa entre os assuntos mais urgentes.
O destaque para o âmbito local no futebol é uma das particularidades brasileiras na modalidade. Nas disputas estaduais foram formadas as principais rivalidades e parte considerável dos ídolos dos grandes clubes se serviu das vitórias contra adversários da mesma cidade para fixar sua relação com os torcedores. Até na comparação com os Estados Unidos a dinâmica brasileira é mais rica, justamente por superar a divisão por conferências nos esportes dos Estados Unidos e estabelecer vínculos maiores com os estádios, a vizinhança e, em última análise, suas ruas e seus habitantes.

A singularidade ajuda a explicar por que o Flamengo conseguia ter a maior torcida sem nunca ter vencido nenhum dos principais títulos nacionais ou internacionais – somente na última década do século XX o clube carioca assumiria a liderança no número de troféus do Campeonato Brasileiro. Auxilia também na compreensão dos motivos que faziam com que o Santos de Pelé, bicampeão do Mundial Interclubes, não fosse o principal vencedor em São Paulo até o fim dos anos 1960. São duas instâncias que se combinam ou se distanciam a depender da ocasião – para a confusão de analistas estrangeiros.
O gerenciamento do futebol profissional atualmente é muito diferente do reformulado no século XX. A administração não passa pelas autarquias estatais e controla orçamentos milionários. As experiências do passado registram a necessidade de acordos políticos, que levem em consideração as ambições dos diferentes atores envolvidos, sem subestimar os vínculos dos torcedores. A relação nem sempre foi harmônica, uma vez que essa autonomia dos estados no esporte – um diferenciador, de fato, da realidade brasileira – instituiu dilemas quase insolúveis.
Os conflitos de entidades esportivas tiveram consequências nacionais, como a dificuldade de firmar uma confederação que representasse a modalidade de maneira ampla. No interior das unidades da federação, conviveram em litígio mais de uma associação. A confusão gerou anomalias, a exemplo de dois campeões estaduais no mesmo ano. Os embates se misturavam com o processo de profissionalização do futebol. Foi indispensável um arranjo para, simultaneamente, organizar o quadro geral do calendário esportivo e sustentar a importância dessa relativa independência para o esporte.
Sob a presidência de Getúlio Vargas, foi iniciada a composição que reduziu a hostilidade mútua de paulistas e cariocas, centralizou a gestão esportiva no Estado e formulou uma confederação nacionalmente responsável pelo futebol – inclusive pela seleção brasileira. A despeito de todas as críticas possíveis às medidas do governo à época, são impensáveis as conquistas internacionais das equipes que representavam o Brasil sem a estrutura administrativa consolidada nos anos 1930. Principalmente: seriam improváveis os cinco títulos da Copa do Mundo masculina sem a unificação.
Helcio Herbert Neto é doutor em História Comparada (UFRJ), mestre em Comunicação (UFF), formado em Jornalismo (UFRJ) e em Filosofia (UERJ).