Sobre a reforma migratória dominicana
Alejandro Arias Zarzuela
Na edição de novembro 2016 do Le Monde Diplomatique Brasil, foi publicada uma matéria intitulada “Haiti, o impasse humanitário”, em cujo conteúdo se faz referência à sentença n. 168-13 do Tribunal Constitucional da República Dominicana, sugerindo que mediante essa decisão “privou-se de cidadania entre 100 mil e 200 mil moradores de ascendência haitiana, dando ensejo a expulsões maciças e instaurando um clima de tensão racista” no país. Tal afirmação não reflete, nem em tudo nem em parte, a realidade da política migratória introduzida nos últimos anos pelo governo dominicano. A verdade é que, em apenas dezoito meses, mais de 365 mil estrangeiros viram sua situação migratória regularizada ou se beneficiaram de um processo de naturalização, passando a ter garantido o pleno exercício de seus direitos.
Após um processo de reforma constitucional em 2010, que resultou na promulgação de uma nova Constituição que garante os direitos fundamentais de todas as pessoas, o governo dominicano verificou que existia uma população em situação de vulnerabilidade, em razão da irregularidade migratória que caracterizava uma parte das pessoas de origem estrangeira residindo no país. De acordo com essas premissas, enfocou-se realizar uma reforma migratória integral fazendo uso de uma pesquisa nacional de estrangeiros realizada em colaboração com a União Europeia.
Com base nesses dados, o governo definiu o público-alvo de uma reforma sem precedentes no país e em toda a região do Caribe, tornando-se também uma das mais importantes, expressivas e volumosas iniciativas de documentação e regularização migratória, e impactando positivamente mais de 365 mil pessoas em apenas dezoito meses, ou seja, mais de 3,6% da população nacional. Embora o Estado tenha investido mais de US$ 50 milhões no processo, a regularização foi oferecida gratuitamente aos estrangeiros beneficiados. Em resumo, a reforma consistiu na execução de dois componentes, um de natureza administrativa, o Plano Nacional de Regularização de Estrangeiros (PNRE), e um legal, a Lei Especial de Naturalização n. 169-14.
O PNRE baseou-se num programa administrativo promovido pelo Ministério do Interior destinado a documentar e corrigir situações migratórias das pessoas de origem estrangeira que se encontravam em território dominicano de forma irregular, ou seja, sem a devida documentação. Desde o início do plano, um total de 288.466 estrangeiros solicitaram sua documentação e posterior regularização migratória. Esse processo permitiu individualizar a situação de centenas de milhares de pessoas que estavam fora do sistema legal, passando a ter na atualidade dados confiáveis de cada um deles e de seu respectivo status migratório no país. Este tem sido um grande passo para o ordenamento administrativo e a identificação rigorosa da população que reside na República Dominicana, bem como um referencial em termos de respeito e proteção dos direitos humanos em toda a região.
A Lei Especial de Naturalização, por sua vez, consistiu no estabelecimento de um regime especial que modificou por um ano a vigente lei de imigração dominicana, com o intuito de admitir a flexibilização de procedimentos administrativos de verificação do vínculo com o país, facilitando a obtenção da nacionalidade para pessoas que teriam nascido em território dominicano de ambos os pais estrangeiros em condição migratória irregular. Fundou-se numa normativa que ordenou os registros civis do país e dotou da necessária documentação as populações que se encontravam em situação de vulnerabilidade.
O cenário atual, a raiz da introdução da reforma migratória na República Dominicana, repercute favoravelmente na vida de centenas de milhares de estrangeiros ao propiciar a regularização do status migratório de cada um deles, contribuindo, de forma efetiva, para promover e fomentar o respeito à dignidade e a proteção dos direitos fundamentais de todas as pessoas, e incidindo na preservação dos direitos de igualdade, desenvolvimento da personalidade, nacionalidade, saúde, família, livre trânsito, trabalho e direito à educação. Isso, sem lugar a dúvidas, não caracteriza um “clima de tensão racista”.
Muito tem se promovido e recriado a falsa ideia de que esse processo privou de nacionalidade pessoas nascidas na República Dominicana, mas a realidade é que ninguém pode ser despojado daquilo que nunca formou parte de sua condição jurídica originária, pois a Constituição dominicana, consistentemente, tem definido e estabelecido as condições e os critérios para a obtenção da nacionalidade no país. Também se fala em deportações maciças; no entanto, o Poder Executivo proibiu por decreto as expulsões de estrangeiros que teriam aderido ao Plano. O que efetivamente se registrou a respeito de um número importante de estrangeiros que se encontravam irregularmente no território dominicano foi a adesão ao Programa de Retorno Voluntário, também gratuito, que permitiu a saída do país sem nenhum tipo de sanção, possibilitando um retorno controlado e ordenado à República Dominicana, e garantindo respeito e proteção dos direitos humanos desses migrantes.
Essa reforma migratória executada pelo governo dominicano rendeu o reconhecimento de várias agências do sistema das Nações Unidas e da Organização dos Estados Americanos, que cuidam nesses organismos internacionais do tema migratório. Assim, diante do exposto, muito agradeceríamos, por meio destes esclarecimentos, se se possibilitasse aos leitores do Le Monde Diplomatique Brasil ter um enfoque de maior pluralidade informativa sobre o tema, permitindo-lhes se aproximar mais da realidade dos fatos.
*Alejandro Arias Zarzuela é embaixador da República Dominicana no Brasil.
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 114 – janeiro de 2017}