Sobre os ossos do Brasil
Na ausência de uma memória coletiva responsável sobre as tragédias que nos trouxeram até o presente, a tendência é que elas se repitam e se cristalizem como dados da realidade. Infelizmente, é o que temos visto acontecer, pois o extermínio de povos indígenas, de populações negras e pobres, de opositores políticos e de outros corpos indesejados, como mulheres e pessoas LGBTQIA+, nunca cessou por aqui
Em 1997, a artista performática sérvia, Marina Abramović, apresentou uma de suas obras mais fortes e perturbadoras na Bienal de Veneza. Trata-se da performance Balkan Baroque, vencedora do prêmio Leão de Ouro. Durante a performance, a artista se sentava sobre uma pilha de ossos bovinos e esfregava, obstinadamente, por horas, os ossos sanguinolentos que ficavam por cima dos ossos limpos, retirando deles a carne e a cartilagem. Como a performance foi encenada em um porão sem ar condicionado, em pleno verão italiano, um dos elementos mais marcantes da obra era o cheiro de carne em estado de putrefação que inundava o espaço. Era um misto de desconforto e êxtase para o público, que observava, em choque, a artista esfregar os ossos enquanto se lamentava e cantava músicas que remetiam à sua infância. O objetivo de Marina era denunciar a tragédia das guerras balcânicas na década de 1990, mas a obra acabou se tornando uma metáfora dos horrores produzidos por todas as guerras.
Devido à ênfase que a nossa trajetória escolar atribui às catástrofes europeias, Balkan Baroque me faz recordar, de imediato, as pilhas de corpos humanos, com ossos atravessando a pele, colocados uns sobre os outros, nas enormes covas abertas em campos de concentração nazistas. Em um segundo momento, voltando o olhar para o Brasil, lembro-me das catástrofes que marcam a nossa história e dos mundos de ossos humanos que povoam a terra em que vivemos e ostentamos a nossa “abstração civilizatória”, como define o intelectual indígena, Ailton Krenak, em Ideias para adiar o fim do mundo. Historicamente, esses mundos de ossos decorrem de fatos estruturantes da realidade brasileira, como o extermínio de povos indígenas e de populações africanas escravizadas; a eliminação de opositores políticos e outros corpos indesejados em períodos de forte repressão e violência, como a Ditadura Civil-Militar; e a morte de milhares de pessoas em decorrência da fome e da miséria. Por fim, a obra de Marina Abramović me traz à mente a imagem publicada na capa do Jornal Extra, em 29 de setembro deste ano, que mostra um caminhão distribuindo ossos e restos de carne, antes destinados aos cachorros, para um grupo de moradores do Rio de Janeiro.
Mais trágica que a semelhança entre as imagens da artista e das pessoas sobre os ossos é a relação entre os ossos históricos do Brasil e os ossos e restos de carne que têm servido de alimento para vários brasileiros. Essa relação parte do fato de que não fomos educados para construir uma memória coletiva responsável, que nos encoraje a olhar criticamente para a nossa história, reconhecendo as suas tragédias, identificando as suas heranças em nós e, sobretudo, nos responsabilizando pelas formas como reiteramos as suas disputas e crueldades na vida cotidiana. Seguimos na contramão da proposta do filósofo Walter Benjamin, que, nas palavras do professor José Carlos do Carmo, é “revolve[r] os escombros [da história], procurando as vítimas que precisam ser relembradas, colocando o assunto como pauta inadiável de debate e de memória coletiva”. A ausência desse olhar crítico torna-se flagrante, por exemplo, quando um brasileiro afirma que não somos um “povo unido” porque “nunca tivemos guerras no Brasil”. Evidentemente, essa é uma percepção orientada pelas grandes narrativas europeias, que produziram, em nosso imaginário, uma ideia de guerra como conflito bélico entre nações, e não como enquadre de disputas violentas que estabelece quais corpos são dignos da vida e da morte, como pondera a filósofa Judith Butler em Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?
A mobilização de um conceito limitante de guerra, que decorre da falta do que chamei de memória coletiva responsável, faz com que grandes desastres humanitários sejam minimizados, esquecidos ou até mesmo apagados da nossa história. É o caso dos “campos de concentração” da fome que se espalharam pelo Ceará na primeira metade do século XX, em decorrência da forte seca que atingiu o Nordeste em 1932. Na época, a justificativa para a construção dos campos era que, naquelas instalações, os refugiados teriam acesso a condições básicas de sobrevivência. Mas a realidade é que essa foi uma medida higienista do Estado para impedir que eles chegassem a Fortaleza. Em um artigo publicado no El País, em 2019, a colunista Marina Rossi alega que “isolar dos demais a população indesejada” era um dos objetivos que possibilita, hoje, relacionar os campos da fome ao projeto nazista alemão. Nesse mesmo artigo, Marina descreve as péssimas condições de higiene, alimentação, moradia e trabalho em que vivia a população dos campos, o que levou muitas pessoas à morte. Segundo o historiador Frederico de Castro Neves, os campos funcionavam como um “curral de bárbaros”. Ao todo, mais de 70.000 refugiados passaram pelas instalações, dado que não se aplica ao número de mortes, que nunca foi oficialmente divulgado.

É nesse ponto que a relação entre os ossos históricos e os ossos contemporâneos do Brasil se expressa com nitidez. O fato é que, na ausência de uma memória coletiva responsável sobre as tragédias que nos trouxeram até o presente, a tendência é que elas se repitam e se cristalizem como dados da realidade. Infelizmente, é o que temos visto acontecer, pois o extermínio de povos indígenas, de populações negras e pobres, de opositores políticos e de outros corpos indesejados, como mulheres e pessoas LGBTQIA+, nunca cessou por aqui. A morte se naturalizou de tal modo que fomos capazes de eleger, como Presidente da República, um homem que se refere a um Golpe Civil-Militar como “revolução” e que declara, soberbamente: “a minha especialidade é matar”. Não por acaso, o governo de Jair Bolsonaro tem sido responsável por escancarar e potencializar as múltiplas crises que constituem a base da sociedade brasileira, assim como por institucionalizar a morte como elemento-chave da política nacional. Basta observar a postura vil e omissa que o presidente escolheu adotar frente à pandemia em curso; postura que, segundo o Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia, tem uma relação direta com as mais de 600.000 vidas perdidas no país.
No tocante à fome, pode-se dizer que também vivemos um momento crítico, em virtude da crise econômica insuflada pelo atual governo, que tem produzido um aumento significativo em nossos índices de desemprego, inflação e miséria. Como mostra um levantamento feito pelo portal UOL, com Jair Bolsonaro no poder, ao menos dois milhões de pessoas decaíram para o nível de extrema pobreza, dado que justifica o elevado índice de miséria (23,47) registrado no país em maio deste ano – o maior desde março de 2012. Nessa conjuntura, a distribuição de ossos e restos de carne e a busca desesperada por alimento em caminhões de lixo têm se tornado realidades comuns em várias cidades. A consequência mais perniciosa dessa política da fome é o aumento da taxa de mortalidade dos grupos afetados, o que resulta, principalmente, do agravamento de doenças que acometem os corpos desnutridos. No entanto, é preciso reconhecer que esse não é um problema de agora. Nas palavras de Thiago Lima, coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Fome e Relações Internacionais (FomeRI): “Permitir e expor o povo à morte, às centenas de milhares, pelo método da Fome, não é algo inventado pelo governo Bolsonaro. Foi praticado pelo Império. Foi praticado pela República. Foi praticado pelas Ditaduras”. Nesse sentido, o que Bolsonaro tem feito é desvelar o óbvio: a construção de mundos de ossos humanos sempre foi uma política de Estado no Brasil.
O dado mais nefasto da realidade atual é que, se observarmos com atenção os registros da nossa miséria, veremos que a fome brasileira tem rosto: em sua maioria, são pessoas negras, pardas e indígenas. Ou seja, os corpos que vivem hoje na extrema pobreza, lamentando a sua miséria sobre pilhas de ossos, equivalem a uma parcela expressiva dos corpos que foram levados à morte e se tornaram, eles próprios, amontoados de ossos em diferentes épocas. Segundo Thiago Lima, no último quarto do século XIX, aproximadamente dois milhões de brasileiros podem ter morrido de fome somente no Nordeste. Somada a outras mazelas sociais, essa realidade mostra que a nossa democracia nunca foi de fato uma democracia, em sentido pleno, para a maioria das pessoas. Antes e depois da Nova República, o que o Estado brasileiro mais fez foi restringir direitos fundamentais, inclusive o direito à vida, que tem sido repetida e violentamente negado a milhares de corpos ao longo da história. Tal fato nos remete à famosa tese de Walter Benjamin sobre o conceito da história: “o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral”. O problema é que nos deixamos levar pela retórica sedutora e falaciosa de uma democracia liberal burguesa, que nos impele a compreender o horror como parte intrínseca do sistema democrático. Aos poucos, nos acostumamos a sentar no sofá e ver pessoas morrendo.
No dia 29 de outubro, exatamente um mês após a divulgação das imagens de pessoas sobre ossos e restos de carne, o governo federal pagou a última parcela do Bolsa Família, programa social de referência que atendia cerca de 14 milhões de brasileiros. Em seu lugar, Bolsonaro colocou o chamado Auxílio Brasil, uma proposta confusa, que não possui garantia dos recursos no Orçamento da União e que já tem data para terminar – final de 2022 –, o que explicita uma manobra eleitoreira perversa para viabilizar a sua reeleição: jogar com a miséria, o sofrimento e a vida das pessoas.
Para a Oxfam Brasil, o contexto é preocupante e revela a crueldade do atual governo, pois “milhões de famílias estão sendo jogadas no limbo sem saber se poderão seguir se alimentando e sobrevivendo”. Associado a outras políticas de morte que atravessam a nossa história, tal fato mostra que, ao contrário do que somos levados a pensar, o Brasil sempre foi um campo de guerra. Vivemos em um país estruturado em mundos de ossos que nunca paramos de produzir. E, diante desse fato, o mínimo que podemos fazer é construir uma memória coletiva responsável, que nos force ao movimento benjaminiano de vasculhar os escombros da história e buscar justiça para os vivos e os mortos. Como alega o professor Carlos Mariano do Carmo: “A política não é assunto apenas dos vivos, mas também dos mortos que continuam reivindicando direito à reparação”.
Em analogia à obra-performance Balkan Baroque, pode-se dizer que, apesar de nem todos estarmos hoje lamentando sobre ossos e restos de carne, há milhares de ossos limpos e sanguinolentos embaixo de todos nós. Portanto, não há como fugir: nossos corpos e trajetórias estão intrinsecamente vinculados a esse mundo de ossos humanos. Como Bolsonaro, a história mostra que a especialidade do Estado brasileiro é matar, o que faz do nosso país um cemitério de ossos em proporções continentais. Inclusive, se nos despirmos dos mitos e romantizações nacionalistas, veremos que o cheiro de carne em estado de putrefação, que invadia o espaço em que Marina Abramović apresentava a sua obra, é o mesmo que paira sobre o ar que respiramos. Chego a desconfiar que o fato de a Proclamação da República ser comemorada após o Dia de Finados não é uma mera coincidência. Afinal, é da morte que viemos. E, sobre os ossos do Brasil, estamos todos.
Marco Túlio de Urzêda-Freitas é doutor em Estudos Linguísticos e professor universitário. Contato: [email protected]