Soja: a expansão dos negócios
Visando o aumento da renda fundiária, empresas privadas e latifundiários brasileiros atravessam as fronteiras para o Paraguai e a Bolívia em busca de terras férteis e baratas. A expropriação de camponeses e indígenas e a destruição ambiental fazem parte do processo, independentemente do país em questão
Nos últimos meses, várias notícias veiculadas pela imprensa nacional e internacional enfatizaram as ameaças de violência sofridas pelos brasileiros no Paraguai (os brasiguaios). O conteúdo das reportagens abrange duas situações bem definidas. De um lado, os brasileiros grandes proprietários de terras, produtores de soja e pecuaristas e, de outro, famílias de trabalhadores rurais que possuem pequenas áreas e, muitas vezes, não têm a titulação das mesmas.
Com as eleições presidenciais e a vitória de Fernando Lugo, cujo programa de governo incorporava a reforma agrária para atender às reivindicações de milhares de camponeses paraguaios sem-terra, a presença dos brasiguaios acabou gerando várias controvérsias entre os governos dos dois países, além da insegurança e do medo de expulsão de milhares de brasileiros sem documentos do Estado vizinho.
É possível traçar alguns paralelos entre essa situação e o que ocorre na Bolívia, muito embora a presença de produtores de soja brasileiros neste outro país seja mais recentea. Tanto do ponto de vista econômico no que diz respeito ao produto – classificado atualmente como commodity no mercado internacional – quanto ao processo de expansão dos capitais aplicados na agricultura e a apropriação da terra por estrangeiros no contexto da mundialização do capital.
A presença no Paraguai
O Paraguai é um país, sobretudo, agropecuário. Além da produção destinada ao mercado interno, sobressaem os produtos exportados, tais como madeiras, tanino, erva-mate, algodão e, nos últimos tempos, a soja.
O setor agropecuário responde por 50% do emprego no país e contribui com 27% do PIB. Deste montante, 60% se referem aos produtos agrícolas, 30% à pecuária e 10% à extração florestal. A estrutura agrária é caracterizada pela elevada concentração da propriedade da terra: os estabelecimentos destinados à agricultura familiar representam 80% do total mas detêm apenas 6,2% da área. Essa concentração aumenta na medida em que o processo de produção das commodities avança, expropriando camponeses e populações indígenas, acirrando, portanto, o processo de luta pela terra1.
A soja foi introduzida no Paraguai no começo da década de 1970, na província de Itapuá, onde havia grandes reservas de Mata Atlântica. No início dos anos 1980, houve grande crescimento do cultivo no Alto Paraná e em Canindeyú, se expandindo a seguir para Caazapá e Caaguazú. As três primeiras províncias se situam no leste do país, na fronteira com o Brasil, e concentram mais de 80% da soja do país. De 1991 a 2002, o aumento da produção de soja ocorreu principalmente nas grandes propriedades. Em 2003, a área ocupada por este produto era de quase 1,8 milhão de hectares. Deste total, os brasileiros detinham, naquele ano, 1,2 milhão de hectares2.
Segundo relatório de J.M. Dros, a plantação de soja no Paraguai tem acelerado a destruição da Mata Atlântica, precedida pela pecuária e extração de madeira. Em 1945 essa floresta cobria em torno de 8,8 milhões de hectares no leste do país. Em 1991 restava apenas 7% de sua extensão.
Atualmente, a expansão desse cultivo se dá em unidades de conservação na região do Chaco e em áreas inundadas do Pantanal. Tal como vem ocorrendo na Argentina e no Brasil, a monocultura da soja em larga escala tem empregado de forma maciça os agrotóxicos e adotado OGMs (Organismos Geneticamente Modificados), que demandam maiores quantidades de glifosato, agravando os riscos ambientais e para a saúde.
Dros mostra também que, apesar do crescimento econômico, a produção da soja não contribuiu para resolver os graves problemas decorrentes da concentração de renda e do aumento da pobreza. Os 20% mais ricos do país possuem mais de 60% da renda nacional, enquanto os 20% mais pobres ficam com menos de 2%. Neste contingente se incluem os indígenas.
Entender a presença dos brasileiros no Paraguai hoje pressupõe compreender os fatos passados, sobretudo a partir de meados do século XX, quando ocorreu o processo de modernização da agricultura brasileira. Tal processo, orientado pela revolução verde, que implicava mudança dos padrões produtivos, foi caracterizado, de um lado, pela expropriação de milhões de pequenos produtores, parceiros, arrendatários e posseiros; de outro lado, pela concentração da propriedade da terra nas mãos de empresas altamente tecnificadas, com apoio de uma política de crédito para compra de máquinas, insumos e facilidades de comercialização.
Nos estados do sul do país tais mudanças geraram um contingente de expropriados, provenientes das pequenas unidades de produção, as quais, sobrecarregadas em razão das leis de herança, já não suportavam mais a fragmentação. No Rio Grande do Sul, onde se concentravam muitas unidades familiares pertencentes aos descendentes de europeus, verificou-se grande êxodo rural. Essas pessoas procuravam terras em outros estados como Paraná e Santa Catarina e, em seguida, se dirigiram ao Paraguai.
Esse processo de itinerância aumentou na década de 1960 em virtude de dois fatores: a construção da hidrelétrica de Itaipu, responsável pela expropriação de 42 mil pessoas, em sua maioria pequenos produtores rurais do sudoeste do Paraná; e a política do governo do Paraguai, representada por Stroessner a partir de 1954. Neste caso, a marcha hacia el este coincidia com a marcha para o oeste incentivada pelos governos da ditadura militar brasileira a partir de 1964, embora fosse uma estratégia geopolítica brasileira desde Getúlio Vargas, como demonstra o exemplo de Geremias Lunardelli. Grande cafeicultor, dono de plantações em São Paulo e no, ele comprou de meio milhão de hectares nos distritos de Amanbay, Canendeyu e Alto Paraná. Em 1958, já possuía um milhão de pés de café no país vizinho.
Contudo, a grande emigração de brasileiros para o Paraguai ocorreu em outros dois momentos e abrangeu grupos sociais distintos. Os primeiros foram os sem-terra, descendentes de migrantes nordestinos, estabelecidos na região norte do Paraná. A emigração desses trabalhadores foi realizada por empresas colonizadoras e fazendeiros estabelecidos no Paraguai. O segundo grupo era proveniente do sudoeste do Paraná e migrou, sobretudo, após a construção de Itaipu.
Processos diferentes
Como se vê, os brasileiros no Paraguai são distintos do ponto de vista da classe social e também da etnia, situação social esta frequentemente mascarada pela denominação genérica de brasiguaios.
A chamada marcha hacia el este foi uma política de colonização e expansão da região leste do Paraguai, promovida pela ditadura de Stroessner, como meio de promover a exploração de novas terras e deslocamento da população. Para isso foram criadas várias leis e organismos públicos, dentre eles o Instituto de Bienestar Rural (IBR). Este Instituto foi responsável pela implementação de uma colonização oficial, embora houvesse também empresas promovendo a colonização privada.
Segundo Bracaglioli Neto3, apesar da venda de lotes das colônias oficiais ser ilegal, muitos brasileiros compravam o direito de posse dos agricultores paraguaios e passavam a pagá-lo ao IBR, que ilicitamente, cobrava duas vezes pelo mesmo serviço. A atuação do Estado paraguaio incentivou as diferenças existentes entre os imigrantes brasileiros, cujos recursos financeiros lhes permitiam a compra de terras dos campesinos paraguaios, desprovidos de capitais e apoio estatal.
No que tange à colonização privada, ela foi mais expressiva nos departamentos do Alto Paraná e Canindeyu, sendo desenvolvida por três agentes: 1) Pessoas físicas ou jurídicas brasileiras, que compraram grandes áreas de terras do governo e de outras empresas para extrair madeiras e, em seguida, vender os lotes. É importante notar que boa parte dessa mão-de-obra era constituída de brasileiros; 2) As empresas do Paraguai e latifundiários, além de políticos e militares, cuja ação se assemelha à dos primeiros; 3) Br
asileiros associados aos paraguaios4. Esse último processo é bastante semelhante ao que ocorreu no Brasil em vários momentos de sua história: a terra, que é um bem natural, é transformada em mercadoria, sendo passível de compra e venda, visando os interesses dos capitais aí empregados.
Também houve a posse espontânea de pequenos lotes por trabalhadores brasileiros e por camponeses paraguaios. Sem titulação das terras, este contingente foi facilmente expropriado, muitos dos quais retornaram ao Brasil na condição de brasiguaios e sem-terra em meados dos anos 1980, engrossando o movimento de luta pela terra promovido pelo MST e criando vários assentamentos, dentre eles o de Novo Horizonte, no Mato Grosso do Sul5.
Em síntese, a expansão do capitalismo nessa região do Paraguai foi incentivada pela ação de empresas privadas e pelos governos ditatoriais dos dois países. Trata-se da apropriação de um território, cujas fronteiras políticas não são respeitadas, confirmando-se a tese, segundo a qual “o capital não tem pátria”.
Tal como ocorrera em várias regiões do Brasil em diversos momentos de sua história, esse processo é caracterizado pelo desmatamento, destruição ambiental e pela expropriação das populações originárias. A agricultura moderna representada pelas grandes fazendas de soja e pecuária pertencentes, sobretudo, a brasileiros, nasce no bojo dessa movimentação de dupla destruição: da natureza e das unidades camponesas.
Brasileiros na Bolívia
Embora essa presença seja mais recente, ela é resultante do mesmo processo de expansão do capitalismo agrário brasileiro na busca incessante de novas terras, cuja fertilidade está associada ao aumento da renda da terra. A produção de soja concentra-se no departamento de Santa Cruz, o mais importante centro econômico do país.
Desde a década de 1950 existe um programa de colonização do governo boliviano para a ocupação dos departamentos orientais. Esse programa se concentrou no extremo oeste de Santa Cruz, não alcançando as fronteiras brasileiras, situadas a 200 km de distância.
Esse espaço vazio foi ocupado, nas últimas décadas, por empresários brasileiros, japoneses e também menonitas, sendo que estes últimos já haviam se instalado em outras áreas do país em momentos históricos anteriores6.
O departamento de Santa Cruz concentra mais de 50% da migração total de brasileiros na Bolívia. A atividade principal é a agropecuária, sobretudo a cultura intensiva de soja. Os migrantes brasileiros se concentram nesse espaço, formando uma mancha de colonização.
Uma distinção em relação ao Paraguai deve ser feita. No caso boliviano, a mancha aparece a vários quilômetros de distância da divisa com o Brasil, sendo que no Paraguai ela é definida a partir da linha da fronteira. Neste último, a ocupação ocorreu ao longo das margens do rio Paraná, sem ruptura do espaço. Na Bolívia, a disseminação da presença brasileira teve uma interrupção, um vazio de aproximadamente 1000 quilômetros, correspondente à área extensiva do pantanal brasileiro e demais pântanos do extremo oriente boliviano7.
O cultivo da soja na Bolívia ganhou maior vulto no início da década de 1990, quando o Banco Mundial financiou o Projeto de Desenvolvimento das Planícies (Lowlands Development Project). Por essa razão, houve expressiva evolução da cultura mecanizada na região de Santa Cruz, atingindo uma área superior a 700 mil hectares em 2004. A soja é a commodity mais importante da Bolívia e responde por 27% das suas exportações. No ano 2000, um terço da soja boliviana foi produzido por grandes fazendeiros brasileiros.
Após 1984, o cultivo da soja em larga escala foi o principal responsável pelo desmatamento na Bolívia. Somente na região de Santa Cruz foram desmatados mais de 200 mil hectares anuais, entre 1993 e 2000. As florestas atingidas foram as de savana no Gran Chaco, as florestas secas do Chiquitano e da Amazônia. A floresta de Chiquitano é um dos ecossistemas de florestas secas mais ricos do mundo, semelhante ao Cerrado brasileiro, onde se verifica grande expansão da soja atualmente8.
A produção, pelo fato de ser altamente mecanizada e em grandes áreas, além de ser destinada à exportação, não provocou a diminuição das desigualdades sociais. Os 20% mais ricos recebem acima de 60% da riqueza nacional, enquanto os 20% mais pobres (todas as comunidades indígenas) recebem menos de 2%9. A Bolívia é o segundo país do mundo em desigualdade de renda.
Expansão do capitalismo agrário
Embora os processos de ocupação de terras por brasileiros nos dois países vizinhos tenham trajetórias distintas, há um eixo comum entre eles: o da expansão do capitalismo agrário brasileiro. No Paraguai, além das empresas que atuaram na venda de terras em diferentes etapas, houve a participação, nos dois lados da fronteira, dos governos ditatoriais. No que tange à Bolívia, a expansão brasileira deu-se, sobretudo, durante os governos democráticos de Fernando Henrique Cardoso e Lula.
O pano de fundo do expansionismo nos dois países é a busca por terras férteis com o intuito de aumentar a renda da atividade. O processo de internacionalização da propriedade da terra conduz à internacionalização da apropriação da renda da terra por grandes empresas.
Nos dias de hoje, os investimentos estrangeiros na compra de terras no Brasil, sobretudo nas regiões de cerrado e da Amazônia crescem vertiginosamente. Segundo levantamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) há 33.228 imóveis (0,64% do total) registrados como propriedades de estrangeiros. Essas propriedades cobrem 5,6 milhões de hectares, ou 0,97% das áreas cadastradas do Sistema Nacional de Cadastro Rural; 55% dessas terras de estrangeiros (pessoas físicas e jurídicas) se encontram na Amazônia Legal e cobrem cerca de 3,2 milhões de hectares.
A apropriação de áreas (incluindo a água e as fontes de biodiversidade) é necessária aos padrões de acumulação dos capitais das empresas transnacionais, tendo em vista a valorização da terra e o conseqüente aumento da renda fundiária.
Além da internacionalização da propriedade fundiária, há o avanço do processo de expropriação e “descamponesização”, quando se somam a modernização da agricultura e a Revolução Verde, a partir dos anos de 1970. Desde então, assiste-se ao deslocamento da fronteira agrícola, em razão de terras férteis e baratas, visando o aumento da renda fundiária. É neste contexto que deve ser analisada a expansão do capitalismo agrário nos países vizinhos. Pouco importa as cores das bandeiras.
*Maria Aparecida de Moraes Silva é professora livre-docente da Unesp. Colaboradora do PPG/Sociologia da UFSCar e do PPG/Geografia/Unesp/PP. Pesquisador do CNPq. Beatriz Medeiros de Melo é doutoranda do PPG/Sociologia da UFSCar.