Somália e semiárido brasileiro: seca, fome e política
Há uma pergunta que devemos nos fazer: em pleno século XXI, a ocorrência de um fenômeno conhecido e recorrente como a seca, mesmo a pior em sessenta anos, deve levar à fome e à mortandade? na realidade, a própria história recente do Brasil demonstra como é possível construir a convivência com a secaAdriano Campolina
(Refugiados somalis aguardam pela distribuição de comida que será servida no distrito de Hodan, na capital Mogadíscio)
É estarrecedor, ao ver as imagens de crianças famintas na Somália, saber que 13 milhões de pessoas na região do Chifre da África necessitam de ajuda alimentar emergencial e que 750 mil estão sob risco de morrer de fome, como foi divulgado pelas Nações Unidas em outubro. Neste momento, mais que a população inteira do município de São Paulo está passando fome naquela região! É necessária uma ação humanitária imediata, mas é igualmente urgente combater as causas mais profundas que fazem essas epidemias se repetirem a cada ano.
A causa mais visível da crise alimentar é a seca: a pior em sessenta anos! Contudo, talvez a estiagem seja somente apenas uma entre uma série de acontecimentos que condenam aquela região à mais abjeta exclusão social e pobreza. Sim, trata-se de uma região árida, onde chove pouco e de forma muito irregular. Ao mesmo tempo, é uma região profundamente dependente da agricultura e do pastoreio, com baixo índice de desenvolvimento econômico, agregação de valor e industrialização: herança maldita da colonização europeia que dilapidou os recursos naturais e nada deixou em benefício daqueles povos. Essa dependência da produção primária multiplica os impactos sociais e econômicos da seca.
Essa é uma das regiões onde o sistema colonial sobreviveu por mais tempo, em razão do uso da violência e da instigação de rivalidades locais tão funcionais ao método de “dividir para reinar”. Apesar das vitoriosas lutas pela independência na década de 1960, a instabilidade política permaneceu como uma marca em vários países dessa região. Essa instabilidade política e social em muitos casos transformou-se em guerra civil.
Apesar de tudo, esses países buscaram construir novos Estados após a independência, muitas vezes equilibrando-se entre as “ajudas” ao desenvolvimento dos distintos polos da Guerra Fria. Alguns anos depois, viram-se forçados a desmontar suas políticas públicas de estoques de alimentos, abastecimento e apoio à agricultura por determinação do novo consenso liberalizante, que exigia a redução do Estado e as privatizações.
Derrotar a indústria da seca
Quando adicionamos instabilidade política e social, desaparelhamento e incapacidade do Estado e seca, o resultado é a tragédia humana a que assistimos. O mais grave é que interesses de atores poderosos, inclusive da elite local, impedem a construção de soluções duradouras e se beneficiam das repetidas calamidades.
Mas há uma pergunta que devemos nos fazer: em pleno século XXI, a ocorrência de um fenômeno conhecido e recorrente como a seca, mesmo a pior em sessenta anos, deve levar à fome e à mortandade? Há exemplos de sobra no mundo para responder que não! Em regiões ainda mais áridas, existem sociedades que construíram sistemas de segurança alimentar que previnem a fome e garantem o direito à alimentação de suas populações. Na realidade, a própria história recente do Brasil demonstra como é possível construir a convivência com a seca e ao mesmo tempo derrotar o monstro político que se encontra escondido nas sombras do fenômeno natural: a indústria da seca.
Os ciclos da seca no semiárido brasileiro se repetem periodicamente. A primeira expressiva seca registrada remonta a 1721, com grande mortandade de indígenas. Entre 1877 e 1879, outra grande seca trouxe esse tema para o debate nacional, após a morte de 500 mil pessoas, ou 4% da população brasileira da época. Os coronéis, desde então, souberam se utilizar da catástrofe e se aproveitar das políticas públicas para ampliar seu patrimônio, beneficiar-se dos investimentos e créditos públicos e apropriar-se do Estado para ampliar sua influência política. O exemplo clássico era a construção de açudes nas terras de latifundiários e a manipulação política na escolha daqueles que fariam parte das frentes de trabalho. Nascia a indústria da seca. Grandes estiagens voltaram a se repetir em 1915 (100 mil mortos e 250 mil migrantes), 1932 e 1950, com outras centenas de milhares de flagelados. A ênfase do poder público em todo esse período concentrou-se nas obras para ampliar a oferta de água na região semiárida, com foco no combate à seca. Essa ênfase seria substituída por uma busca de uso mais racional dos recursos hídricos, o que deu origem à Companhia Hidroelétrica do São Francisco (Chesf) e à Comissão do Vale do São Francisco/Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (CVSF/Codevasf).
Convivência, uma nova abordagem
Uma mudança fundamental de paradigma ocorreu no governo JK, quando o grupo de trabalho para o desenvolvimento do Nordeste, coordenado por Celso Furtado, confirmou que as ações governamentais de combate à seca, além de ineficazes, contribuíam para a reprodução das crenças difundidas pela elite local de que o subdesenvolvimento e a pobreza eram causados pela seca, e não pelo latifúndio, pela exploração da região por suas elites e grupos de outras regiões, pela falta de políticas regionais etc. Essas conclusões somaram-se às visões de Josué de Castro, que já diagnosticava a prevalência de fome endêmica nas regiões mais chuvosas, ocupadas pelo latifúndio da cana. Essa mudança de paradigma se materializou na criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). A partir dos anos 1960, vários outros programas foram criados (polos agroindustriais Proterra, Polonordeste, Projeto Sertanejo), e as secas se repetindo, com grandes impactos sociais.
Entre 1979 e 1984, ocorreu a grande seca do século, quando 1 milhão de pessoas foram empregadas em frentes de trabalho e houve 100 mil mortes, segundo estimativas de estudiosos. Mais uma vez ficava claro que a prioridade dada simplesmente ao combate a esse fenômeno era insuficiente. A partir desse período, as ações contra a seca concentraram-se no fortalecimento da infraestrutura das propriedades rurais. Nessa mesma época, várias experiências da sociedade civil e de algumas instituições públicas, como a Embrapa e Embrater, indicavam a concepção de uma nova abordagem.
Em milhares de comunidades passou-se a observar as alternativas (e a aprender com elas) que estas próprias vinham desenvolvendo para conviver com a seca: alternativas de captação e armazenamento de água da chuva que beneficiassem diretamente as famílias mais vulneráveis, de uso eficiente da água e da produção agropecuária baseada no manejo sustentável do ecossistema local e na resistência e resiliência à seca.
Esse acúmulo da sociedade se traduziu em uma articulação da sociedade civil – a Articulação do Semiárido, que se mostrou capaz de elaborar uma agenda de propostas de políticas públicas que, uma vez colocadas em prática, reduziriam consideravelmente a vulnerabilidade às secas. Essas articulações e redes de ONGs e movimentos sociais conseguiram influenciar a sociedade e ter papel ativo na construção das políticas públicas, sobretudo na última década.
Essa capacidade política da sociedade civil, somada à vontade política de governos em várias esferas, resulta na aplicação de vigorosas políticas sociais, como transferência de renda, ampliação do acesso à educação e à saúde, ampliação do crédito para pequenos produtores, criação de mercados institucionais para fortalecer a agricultura familiar, recuperação do salário mínimo, resgate do papel das políticas regionais de desenvolvimento, que constroem um novo ambiente nas regiões vulneráveis à seca. Propostas da sociedade civil, como a construção de 1 milhão de cisternas, moldam políticas que reduzem a vulnerabilidade às secas e estiagens e induzem uma nova forma de conviver com o meio ambiente e produzir de forma sustentável no semiárido.
Há estimativas de que as secas no semiárido brasileiro, de 1825 a 1983, causaram direta ou indiretamente 3 milhões de mortes, com impactos econômicos igualmente arrasadores. A sociedade brasileira avançou imensamente na redução da vulnerabilidade às secas, superando uma perspectiva de combate à estiagem centrada em grandes obras nas mãos de coronéis e chegando a uma ação combinada de redução da pobreza, acesso aos serviços públicos e iniciativas descentralizadas e populares de convivência com a seca e acesso à água.
Contribuição com o Chifre da África
Nesse contexto de tragédia no Chifre da África, a sociedade brasileira tem muito que contribuir. Não se trata somente de enviar alimentos e recursos para aqueles que passam fome e correm risco de vida, embora isso também seja necessário. Mais do que isso, trata-se de compartilhar com essa outra região árida/semiárida a busca das transformações políticas que permitiram os avanços que conquistamos no Brasil. O entendimento de que a fome aqui era causada também por uma estrutura agrária arcaica, pela falta de empregos e salários decentes, pela ausência dos serviços públicos foi fundamental para que derrotássemos os coronéis da indústria da seca e pudéssemos construir uma nova abordagem.
Nossa experiência indica a necessidade de enfrentar os entraves políticos e incentivar a valorização das alternativas locais, descentralizadas e sob controle das comunidades, com o resgate do papel do poder público na diminuição das vulnerabilidades sociais e na resposta às emergências. Mais importante, temos de compartilhar nossos erros e acertos na reconstrução de um projeto de desenvolvimento que alia a convivência com o meio ambiente a uma determinação de superar a pobreza e distribuir renda. Para reduzir a fome e os impactos da seca no Brasil, foi necessária uma imensa construção política alternativa. Nossa sociedade pode e deve contribuir para fortalecer iniciativas similares no Chifre da África.
Adriano Campolina é Coordenador executivo da ActionAid Brasil, engenheiro agrônomo (UFV) e mestre em Desenvolvimento Agricultura e Sociedade (CPDA/UFRRJ).