Somos o REUNI
A demora na adesão ao REUNI revelou o quanto a democratização do acesso ainda incomodava certos setores, comprometidos com a manutenção de privilégios simbólicos e materiais. De forma contraditória, apesar da resistência de certos setores em Campos, o discurso contra a expansão da universidade não se alinhava completamente com o histórico da UFF Campos
A inauguração do campus da Universidade Federal Fluminense (UFF) em Campos dos Goytacazes, quinze anos após a implementação do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), representa mais do que a concretização de uma política pública: ela simboliza o resultado de um longo processo de lutas políticas que a antecederam, a acompanharam e continuaram a moldá-la ao longo do tempo. Esse percurso evidencia, por um lado, os inúmeros desafios enfrentados e, por outro, ressalta a força dos movimentos sociais e o comprometimento de estudantes, professoras(es) e técnicas(os)-administrativas(os) na luta por uma educação pública, gratuita e de qualidade — além do impacto concreto dessa política na vida de cada pessoa que ela alcançou.
Criado pelo Decreto Presidencial nº 6.096, de 24 de abril de 2007, o REUNI foi uma das principais estratégias do governo federal para democratizar o acesso ao ensino superior público e presencial. Vinculado ao Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), o programa visava ampliar vagas, reduzir desigualdades regionais, reorganizar a estrutura acadêmica das instituições e melhorar as taxas de conclusão nos cursos de graduação, especialmente por meio da expansão de turnos noturnos e da otimização do uso da infraestrutura e dos recursos humanos já existentes. Para sua implementação, houve uma primeira chamada em 29 de outubro de 2007, quando 42 das 54 universidades federais então existentes assinaram o termo de adesão. A adesão era voluntária e condicionada à apresentação de um plano institucional de expansão, aprovado pelo MEC. As demais instituições firmaram acordo com o MEC no dia 17 de dezembro daquele ano, e a execução do REUNI teve início efetivo no primeiro semestre de 2008, com um prazo de cinco anos para o cumprimento das metas estabelecidas, contados a partir da assinatura do termo entre cada universidade e o MEC/SISU.

A UFF foi a última universidade a aderir ao REUNI, após intensos debates internos e mobilizações contrárias. À primeira vista, os argumentos giravam em torno do risco de precarização da universidade pública, especialmente em relação à infraestrutura e às condições de trabalho docente. No entanto, esse impasse revelava tensões mais profundas. A proposta de expansão confrontava um modelo universitário historicamente elitista, resistente à ampliação do acesso e à redistribuição de recursos. A criação de novos cursos, turnos noturnos e campi em regiões antes desassistidas, como previa o programa, desafiava a lógica da concentração acadêmica nos grandes centros e questionava quem, de fato, tem direito à universidade pública. Muitos dos discursos contrários à adesão se apoiavam em uma noção abstrata de “massificação do ensino” ou “queda da qualidade” que, na prática, ocultava o desconforto diante da chegada de estudantes de origem popular — oriundos das periferias, de escolas públicas, frequentemente os primeiros de suas famílias a ingressarem no ensino superior. Na UFF, esses conflitos foram particularmente acirrados. A demora na adesão ao REUNI revelou o quanto a democratização do acesso ainda incomodava certos setores, comprometidos com a manutenção de privilégios simbólicos e materiais. De forma contraditória, apesar da resistência de certos setores em Campos, o discurso contra a expansão da universidade não se alinhava completamente com o histórico da UFF Campos.
A UFF, criada em 1960 e com sede em Niterói, iniciou sua trajetória no interior do estado do Rio de janeiro com a implantação do Departamento de Serviço Social de Campos (SSC) em 1962, em resposta à demanda local por uma instituição pública de ensino superior. A criação do SSC, inicialmente vinculado à Escola de Serviço Social de Niterói, representou a primeira extensão da universidade no interior do estado do Rio de Janeiro. Em 1969, o SSC se tornou autônomo e passou a integrar o Centro de Estudos Sociais Aplicados (CES). No entanto, a falta de uma sede própria impôs desafios de infraestrutura, sendo necessário o auxílio de figuras públicas locais, como vereadores e professores, para garantir espaços adequados ao funcionamento das turmas. Em 1999, acompanhando as transformações sociais e econômicas da região, o Conselho Universitário (CUV) da UFF aprovou a criação do Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional (ESR), ampliando a atuação da universidade em Campos. É importante destacar que, ao longo de sua trajetória, o curso de Serviço Social de Campos consolidou-se como uma referência na área.

Em 2003, o debate sobre uma política de interiorização das universidades federais foi retomado, com foco na consolidação de polos universitários regionais e ampliação de cursos, o que culminou na viabilização desse projeto com o REUNI. No âmbito da UFF em Campos dos Goytacazes, estava prevista a construção de um novo prédio para salas de aula e a criação do Campus II, que abrigaria os cursos recém-criados de Geografia, Ciências Econômicas e Ciências Sociais. Os projetos pedagógicos desses cursos foram aprovados com a previsão de início no segundo semestre de 2009, e o ingresso dos estudantes passou a ocorrer por meio do recém-implementado Sistema de Seleção Unificada (SiSU), que utilizava as notas do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) como critério de acesso. Essa mudança rompeu com o modelo tradicional dos vestibulares próprios e representou uma inflexão importante na democratização do ensino superior público, ampliando as oportunidades para estudantes de diferentes regiões e contextos sociais.
No entanto, o cronograma das obras de infraestrutura previsto para receber os novos cursos não foi cumprido, o que gerou desafios significativos à comunidade acadêmica. Diante dos atrasos, movimentos estudantis e coletivos passaram a pressionar pela efetivação das estruturas prometidas. Nesse cenário, a equipe diretiva do Polo Universitário de Campos dos Goytacazes (PUCG) precisou, inicialmente, recorrer a instituições privadas e escolas municipais para viabilizar o funcionamento das turmas e organizar os espaços da secretaria e do apoio docente. Em 2010, com o agravamento da situação, foi firmado um acordo entre o MEC e a Reitoria da UFF para o aluguel de módulos metálicos — os contêineres — como solução provisória.
Foi nesse contexto de transformações, contradições e ampliação do acesso que ingressei na Universidade Federal Fluminense de Campos dos Goytacazes, em 2010. E, ao sintetizar essa trajetória, evidencio como o lugar que ocupamos no presente expõe o modo como olhamos e ressignificamos o passado. Os fatos não mudam, mas os sentidos que atribuímos a eles se transformam, à medida que nós também nos transformamos.
Meu lugar de formação inicial precisava ser em Campos. Eu precisava ser REUNI. Não apenas pela qualidade do ensino, mas por tudo o que vivi ali: uma formação crítica, comprometida e profundamente transformadora. Havia uma integração viva entre professores, estudantes, técnicos, comunidade local e movimentos sociais que, apesar das divergências, atuavam juntos para que os impactos da universidade fossem além das ciências puras — que retornassem à sociedade, aos territórios, às pessoas. Esse foi o diferencial dos anos que vivi ali. E talvez seja isso que transforme a UFF Campos em uma potência. Uma potência que desejo que nunca se perca.

Foi ali que compreendi que minhas inquietações não eram isoladas, mas parte de um pensamento coletivo. Que o saber acadêmico pode — e deve — dialogar com as lutas sociais, com os territórios, com os corpos. E foi assim que descobri quem eu queria ser. E isso não tem a ver com um título, mas com o tipo de profissional — e de ser humano — que escolho ser a cada dia.
Podem até exclamar que essa não é uma forma de avaliar uma política pública. Mas, o êxito de uma política pública não se resume apenas a taxas de permanência ou indicadores quantitativos. O que realmente a define é sua capacidade de provocar movimento, gerar reflexão, expandir horizontes e, muitas vezes, evidenciar que por trás das estatísticas estão histórias de vida que envolvem sonhos e desafios. O que pode ter sido visto como pouco para uns, foi, para outros, uma oportunidade decisiva.
O que destaco dessa experiência é que a educação pública transcende a mera formação técnica e impactos econômicos. Contudo, é imprescindível que se dê atenção a esses aspectos. É urgente o aprofundamento do debate sobre a inserção no mercado de trabalho, a articulação com a ciência e a tecnologia, bem como a valorização do conhecimento.
Como disse o presidente Lula na inauguração do Campus da UFF Campos, em 14 de abril de 2025: “Quando venho visitar um prédio como este, que servirá de sala de aula para milhares de jovens estudarem daqui pra frente, não posso dizer outra coisa senão que a sala de aula — seja do ensino fundamental, médio, do instituto ou da universidade — é, na verdade, uma sala de sonhos. É ali que a gente sonha em aprender, é ali que a gente sonha em melhorar a vida da nossa família, é ali que a gente sonha em conseguir um emprego melhor e, por meio desse emprego, alcançar um salário melhor. Por exemplo, essa companheira aqui está no seu último ano de Ciências Sociais. Perguntei a ela se já está trabalhando, e ela me disse que não. Disse também que tem o sonho de conseguir um emprego. Quero compartilhar esse sonho com vocês, para ver se existe a possibilidade de ela conseguir uma oportunidade. Porque, caso contrário, as pessoas estudam, se formam, e depois não encontram trabalho — e aí começam a desanimar. Precisamos criar condições para que as pessoas possam conquistar um emprego a partir dos estudos que fizeram, ganhar um pouco melhor e cuidar da sua família.”

O dito se conecta com os fatos: muitos formados podem acabar desanimando, acreditando que sua formação “não serviu de nada” por não ter trazido a tão desejada “estabilidade financeira”. Isso acontece porque, muitas vezes, nos perdemos na ideia de que a educação deve se resumir a pagar boletos, garantir retorno financeiro e reconhecimento. Não se trata de negar a importância desses aspectos — eles são reais, urgentes, especialmente para quem vem de contextos historicamente marcados por desigualdades.
O problema está quando nos impõem uma visão estreita da educação como mera formação de mão de obra. Sob essa ótica, o valor da educação se limita ao retorno econômico e à adaptação ao mercado. E não podemos nos perder nisso.
A educação libertadora — como nos ensinou Paulo Freire, um dos maiores pensadores da pedagogia crítica — é, antes de tudo, um espaço de produção de subjetividades, de construção de sentido, de encontro consigo mesmo e com o outro. Vai muito além da formação técnica ou da aquisição de habilidades voltadas ao mercado de trabalho. É um terreno fértil para a formação da cidadania e para a construção de uma nação.
Retomo aqui outras palavras do presidente Lula, na inauguração do novo campus da UFF Campos:
“Não temos nenhum exemplo de sociedade que tenha conseguido avançar, progredir ou melhorar de vida sem antes ter investido em educação. Por isso, a educação é a base da nossa vida — é por meio dela que conseguimos transformar a nossa realidade, a de uma cidade, de um estado e de um país.”
Essas palavras, e tudo o que argumentei até aqui, evidenciam como o uso das narrativas de vida pode ser uma ferramenta metodológica, política e moral fundamental para a avaliação de políticas públicas. Isso porque elas permitem reconhecer dimensões que os números, sozinhos, não alcançam — sobretudo o fato de que os sujeitos não são apenas beneficiários, mas protagonistas da história da sociedade e da nação. Ainda assim, é preciso cuidado.
Com a desmotivação, vem também a autoparalisação. Há algumas semanas, por exemplo, eu me sentia exausta. Questionava o sentido da denúncia, da produção de conhecimento, diante de um fazer político que envolve tantas camadas. E então, veio a notícia da inauguração do Polo. Foi como um sopro, um lembrete silencioso: a mudança não acontece no ritmo do nosso desejo, da nossa inquietação de almas aflitas por justiça social, mas no tempo da construção coletiva. Neste caso, quinze anos depois.
As críticas, os cartazes, os protestos, os atos, as idas ao gabinete do reitor, as greves, a canção da “terra prometida”, o bolo de tijolo cantando parabéns pela obra em atraso — tudo isso importou. Até os erros. Porque uma política pública séria não se constrói apenas com planejamento e execução, mas com monitoramento, com participação, com escuta, com reajustes e avaliações contínuas.
Reclamar, por si só, não basta. Nunca bastará. É preciso agir.
Como fizeram aqueles que vieram antes, os que passaram por este campus e os que ainda virão. Todos nós somos parte dessa história. Alunos, técnicos, professores — somos o próprio projeto de expansão da universidade. Somos o REUNI.

Raquel Isidoro é analista de políticas de gênero, diversidade e das dinâmicas de poder na ciência e tecnologia, pesquisadora no Laboratório Rastro IPPUR/UFRJ e doutoranda em Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional na UFRJ. Possui mestrado em Sociologia e graduação em Ciências Sociais pela UFF.