Status quo velado com selo de hipocrisia
Boa parte das pessoas que escolheram esse trabalho vivem muitas vezes para pagar contas como todo o trabalhador no Brasil. E, além disso, estar nas ruas nem sempre é uma opção
O deputado Kim Kataguiri visa marginalizar e não olhar a realidade de milhares de cidadãos em todo o país que escolhem exercer esta, que é uma das profissões mais antigas do mundo: a prostituição. Fere-se aqui um direito de ir e vir de mulheres e homens cis e trans, que encampam um lado da moeda que ninguém vê.
A verdade é que no âmbito da liberdade de expressão, todos podem fazer o que quiserem com o próprio corpo. Isso é, inclusive, constitucional: “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”.

O PL 4211, de 2012, enfatiza que é profissional do sexo “toda pessoa maior de dezoito anos e absolutamente capaz que voluntariamente presta serviços sexuais mediante a remuneração”. No parágrafo primeiro do projeto, diz: “É juridicamente exigível o pagamento pela prestação de serviços de natureza sexual a quem os contrata”.
A lei não delimita espaço para que tais relações ocorram. Nós, inclusive, tentamos, por meio da nossa plataforma, retirá-los de situações que os vulnerabilizam. Por isso, por outros motivos, interpretamos que a rua não seja o lugar de tais profissionais. Contudo, enxergamos que o fato de haver uma sanção que faça coerção à prática marginaliza o trabalho de milhões de pessoas.
O PL 778, do deputado, no fundo, quer criminalizar a categoria. Está dito na proposta de Kim que a rua se transforma em zona de prostituição e prejudica quem mora e trabalha no local. Tal enunciado é, no mínimo, falacioso. Afinal, devemos tratar tal ação da mesma maneira pela qual tratamos milhares de outras profissões que possuem um cunho liberal e autônomo.
Segundo ele, a norma atende aos apelos de milhares de moradores da região metropolitana de São Paulo que, de alguma maneira, comunicaram-lhe haver um certo ressentimento quanto à prostituição em vias públicas. Primeiro, devemos dizer que é com estudo e também atendendo às minorias que as propostas devem ser redigidas e enviadas para a votação.
Uma mera audiência de um determinado público sobre uma questão séria como essa, de fato, mostra que houve uma desconsideração da equipe que relatou o PL diante da circunstância. Se houvesse, necessariamente, urgência quanto à preservação da vida dessas pessoas, o tom certamente seria tão diverso quanto às condições a elas apresentadas.
A princípio, não haveria pena de reclusão, conforme prevê o Projeto de Lei, que implica sanções a quem agir conforme o ato de contravenção sob pena de 15 dias a 3 meses de reclusão. A prisão, neste caso, somente traria mais problemas aos profissionais do sexo, não levando em conta quais sejam as realidades desses indivíduos. Não foi considerada, por exemplo, a quantidade de mães solteiras ou que são arrimo de família que trabalham nas ruas. Ignora-se, igualmente, o fato de haver preponderantemente uma massa de mulheres trans que compõe o rol de indivíduos mais vulneráveis socialmente.
Atentemos ao fato de que boa parte das pessoas que escolheram esse trabalho vivem muitas vezes para pagar contas como todo o trabalhador no Brasil. E, além disso, estar nas ruas nem sempre é uma opção. Ou seja, encetar uma proposição tão coercitiva quanto esta ignora uma série de preceitos fundamentais aos direitos humanos, não só em nosso país, mas em todo o mundo.
Estejamos uníssonos para que o projeto não seja aprovado e para que o exercício laboral continue garantido por lei, sem haver nada que as contrarie ou revogue. Vigiemos, pois, conforme o Art. V da Constituição de 1988, “Todos são iguais perante a lei (…) São invioláveis o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
Nina Sag é diretora de comunicação da Fatal Model.