Super Mario chega ao museu
Há vinte anos, era comum que os jogos de videogame utilizassem cenários e roteiros de produções cinematográficas. Hoje, o fenômeno inverso tornou-se corrente. Um sinal, entre outros, da consagração cultural dessa indústriaMathieu Triclot
Desde que foi inventado, no início da década de 1960, por alunos “feras” de informática do Massachusetts Institute of Technology (MIT) – o suprassumo do complexo militar-acadêmico norte-americano –, o videogame passou por múltiplas mutações. Hoje, ele se encontra num ponto de virada que outras formas culturais conheceram antes dele quando trocaram sua condição de divertimento popular, sempre suspeito − “um passatempo de analfabetos”, segundo a violenta fórmula de Georges Duhamel a respeito do cinema na década de 1930 –, por uma certa forma de reconhecimento estético.1 Dali em diante, os videogames passaram a constituir uma cultura, dividida como tantas outras entre produção industrial e criações populares.
Tal acontecimento faz sentido do ponto de vista da história cultural e das culturas populares. Ele é testemunho da invenção de novas referências às imagens e às ficções e de uma inflexão considerável na evolução das maneiras de jogar. Entretanto, o significado dos videogames ultrapassa o fenômeno lúdico: eles constituem a única forma de cultura que se pratica, seja para o melhor ou para o pior, no coração da principal tecnologia de poder do mundo contemporâneo, a informática, e que acompanha a “digitalização” do mundo. Os próprios objetos do jogo são programas, bases de dados, sistemas simulados.
A evolução do olhar dirigido aos videogames é, primeiramente, o resultado de um movimento de massa sobre o plano das práticas. Jogar no console, no computador, mas também no tablet e no celular é hoje uma das atividades culturais mais populares entre os franceses. Na recente pesquisa Ludespace, aproximadamente seis entre dez adultos declararam ter jogado pelo menos uma vez um videogame no decurso dos doze últimos meses2 – uma ordem de grandeza que se assemelha à frequência aos cinemas.
O estereótipo do adolescente trancafiado no quarto erra o alvo, já que o fenômeno diz respeito, em diferentes graus, ao conjunto da sociedade: homens, mulheres, estudantes e aposentados, operários e executivos, meios urbanos e rurais. Esse quadro global comporta, contudo, algumas nuances. Para a maioria dos jogadores, trata-se de uma prática ocasional, e os aficionados permanecem poucos: quando muito, um adulto em dez joga “todos os dias ou quase isso”. A comparação com a telona funciona também nesse caso: muitos vão ao cinema, mas raros são os cinéfilos assíduos.
Evidentemente, a oposição entre jogadores e não jogadores não é suficiente para abranger a diversidade das práticas: são diversos os tipos de jogos, os lugares e os suportes de utilização, e as sociabilidades desenvolvidas. Segundo idade e sexo, em particular: se a proporção de jogadores ultrapassa os 80% na faixa etária entre 25-34 anos, ela cai para 50% para aqueles entre 45-59 anos e a menos de 40% para aqueles com mais de 60 anos. Enfim, mais de quatro entre dez homens jogam semanalmente, contra três entre dez mulheres. Contrariamente às ideias estabelecidas, a pesquisa Ludespace mostrou que os videogames, seja em relação às crianças ou aos adultos, não competem necessariamente com as demais práticas culturais. Em geral, os gamers vão ao cinema ou ao museu tanto quanto aqueles que não jogam e muitos deles praticam um esporte ou tocam um instrumento musical.
O velho discurso do vício e da violência
O distanciamento notório que poderia existir entre a realidade das práticas e as representações públicas do fenômeno está hoje em vias de se dissipar progressivamente. Por muito tempo, o discurso sobre os videogames se viu confiscado pelas problemáticas do vício, da violência e dos transtornos de atenção, dentro de uma atmosfera de pânico moral: o temor, eternamente renovado a cada geração, de uma juventude sem referências. A reportagem do France 2 sobre a mostra “Paris Game Week” (em 3 de novembro de 2013), que se inquietava ante a ideia de que as mães de família jogadoras pudessem deixar à míngua marido e prole, constitui um exemplo especialmente contundente desse discurso da mídia. “Os videogames são muito mais que uma paixão, são um vício”,desferia o jornalista, sem se preocupar com os recentes relatórios da Academia de Medicina e da Academia de Ciências. Segundo esta última, “nenhum estudo permite afirmar até o presente que existe um vício em relação aos monitores, notadamente no que diz respeito aos adolescentes”.3
Observa-se em particular o reconhecimento inédito dos videogames como fenômeno cultural à parte por meio das exposições que lhes são consagradas. Elas se multiplicaram nos últimos tempos, tanto na França – “MuseoGames”, no Conservatoire National des Arts et Métiers (Cnam), “Game-Story”, no Grand Palais, “Joue le jeu”, na Gaîté Lyrique, “Jeux vidéo”, na Cité des Sciences – quanto no estrangeiro: “The Art of Video Games”, em Washington, o Computerspielemuseum, em Berlim, “Excellence in Design”, no Museum of Modern Art (MoMA) em Nova York etc. O desenvolvimento de pesquisas em ciências humanas e sociais sobre o assunto, a exemplo dos game studiesanglo-saxões, constitui outro forte sinal: os videogames não são mais o objeto totalmente ilegítimo que poderiam ser.
Tal inversão acha-se atrelada a um grande movimento de “inserção cultural” por parte dos próprios jogadores, que lembra o papel que a cinefilia desempenhou na história do cinema: arquivamento e conservação dos títulos fora da exploração comercial, criação de um vocabulário crítico, conhecimento afiado acerca das engrenagens da indústria, debate sobre os autores… O fenômeno dos videogames não se limita ao confronto dos jogadores e do monitor; ele se tornou indissociável do trabalho das comunidades de gamers, que organizam festivais por quase toda a França, propõem espetáculos de Superplay(uma partida jogada ao vivo com jogadores “craques”) ou de Speed Run (a busca metódica do meio mais curto para finalizar um jogo), realizam vídeos de Let’s Play(partida comentada em vídeo pela internet) ou ainda transformam músicas de jogos em concertos. A atividade da editora Pix’n Love é representativa da atual ebulição das culturas de fãs, que associam prática apaixonada e erudição histórica, como no caso de outras subculturas como a ficção científica.
A história do cinema adquire aqui um valor de prognóstico no que tange à evolução das formas culturais. O videogame e o cinema viveram escalas de tempo e trajetórias espantosamente semelhantes. De início, ambos apareceram como engenhocas tecnológicas, curiosidades tecnocientíficas “sem futuro”,segundo a expressão de Antoine Lumière. Em seguida, passaram por uma fase de exploração experimental, antes de se desenvolver sob a forma de uma verdadeira indústria cultural e de alcançar, por fim, um reconhecimento estético e acadêmico.
Em parte, explica-se tal reconhecimento pela extraordinária criatividade da produção videolúdica contemporânea. Essa “idade de ouro” deve ser amplamente creditada ao crescimento do poderio dos estúdios independentes. O advento da distribuição digital que afrouxou o domínio dos grandes editores e comerciantes de periféricos (ver artigo na pág. 12) e mais recentemente a atração pelos sistemas de financiamento colaborativo como o Kickstarter (ou o Catarse, no Brasil) deram espaço para nichos de mercado que permitem que pequenas equipes existam, propondo jogos fora dos cânones da indústria. A questão estética é inseparável da política. O domínio dos departamentos de marketing sobre os processos de produção dos bens culturais leva, muitas vezes, à repetição infinita das mesmas receitas comprovadas, numa lógica de blockbusters. Em contrapartida, a autonomia das equipes de produção é uma condição essencial da criatividade e do assumir riscos no plano estético.
Reconstruir Roma antiga
O sucesso extraordinário do Minecraft, de início desenvolvido por um programador isolado, Markus Persson, mais conhecido sob o apelido de Notch, constitui o melhor exemplo, com mais de 30 milhões de unidades vendidas. Caracterizado por um grafismo rudimentar, o game permite que os jogadores deem asas à imaginação. Armados de algumas ferramentas como picaretas, pás e machados, fabricadas por eles mesmos, os praticantes podem virar de ponta-cabeça o mundo que os circunda. O universo é constituído de cubos de diferentes materiais (areia, pedra, carvão, diversos minerais etc.) que podem ser retirados, depois modificados para fabricar outros materiais e outros blocos que os jogadores montarão, a seguir, segundo seu gosto pessoal. Em torno desse jogo, dito “de mundo aberto” ou “caixa de areia”, agregou-se uma imensa comunidade que se dedica às criações mais espantosas, desde a confecção de autômatos musicais utilizando tijolos do jogo até a reconstituição, bloco por bloco, da Roma antiga…
Essa proliferação da criação independente contextualiza a dialética entre propriedade privada e criação colaborativa que sempre caracterizou a história da informática. Os videogames servem de exemplo de bem cultural produzido fora do mercado, segundo uma lógica de código compartilhado e de inovação cooperativa, durante mais de quinze anos, nas universidades e nas escolas de ensino médio norte-americanas nas décadas de 1960 e 1970. Os primeiros jogos comerciais apareceram na esteira do sucesso do Pong, em 1972. A moda das salas de fliperamas, com Space Invaders ou Pac-Man, substituiu no primeiro modo de produção hackeras exigências de rentabilidade financeira e de proteção da propriedade intelectual. Entretanto, a história dos videogames permanece marcada pela importância das práticas amadoras, seja no caso dos mods (modificações de jogos existentes) ou dos machinimas (filmes realizados em tempo real com computação gráfica, usando videogames). Para além dos independentes, é possível perguntar-se, na linha do manifesto de Anna Anthropy, Rise of the videogame zinesters, se um futuro possível não se situaria ao lado da criação não profissional, cada um podendo construir jogos do seu jeito, mais curtos, mais simples, porém igualmente mais íntimos, mais políticos, à luz do modelo da cultura dos fanzines das histórias em quadrinhos, tomando emprestado os tijolos dos aplicativos existentes.
Onipresente, hoje o videogame extravasa o contexto lúdico e influencia setores que até então não tinham ligação com ele. Os jogos servem, principalmente, de ferramenta de comunicação em todas as direções, para as causas e os atores mais diversos (ver artigo na pág. I). Assim, os pesquisadores de administração Byron Reeves e Leighton Read imaginaram “gameficar” as tarefas de uma funcionária de central de telemarketing: ela chega pela manhã ao terminal de trabalho, conecta-se a seu avatar, seleciona as missões do dia, como numa dinâmica on-line, reúne sua equipe em função das competências atribuídas no tutorial e acumula experiência virtual a cada tarefa executada.4 A utopia fun dissimula bem mal aqui o desejo de aumentar sem limite a produtividade, tornando a informatização do terminal de atendimento o suporte do “jogo”.
Stephen Kline, Nick Dyer-Witheford e Greig de Peuter tinham proposto definir o videogame como a “mercadoria ideal” do capitalismo contemporâneo,5 quer dizer, aquela que concentra não apenas as propriedades técnicas e organizacionais de um modo de produção, como também seus valores e afetos privilegiados. O automóvel ou a casa individual padronizada do subúrbio norte-americano desempenharam esse papel em relação ao fordismo. O videogame, objeto ostensivamente digital, resultado de uma cadeia de produção mundial, atravessado pelas lógicas voláteis do marketing e da publicidade, constitui um excelente representante do capitalismo contemporâneo.
Ele produz formas de experiência originais por meio de máquinas de calcular e telas. Tal relação de intimidade com a ferramenta de informática e com seus universos simulados constitui uma de suas características mais originais. Na pior das circunstâncias, os videogames não passam de uma intimação ao poder da informática, de repetição debilitante das mesmas tarefas, plagiando o trabalho padronizado sob as velhas roupagens do fun. Na melhor, eles trazem consigo uma capacidade ímpar de questionar e neutralizar nosso investimento nos dispositivos digitais.
Mathieu Triclot é Professor da Universidade de Tecnologia de Belfort-Montbéliard, é autor de Philosophie des jeux vidéo [Filosofia dos videogames], Zones, Paris, 2011, e curador da exposição “Jeux vidéo” na Cité des Sciences et de l’Industrie (2013-2014).