Syriza e as armadilhas do poder
Humilhado pelas autoridades europeias, mas determinado a não deixar o euro, o primeiro-ministro Alexis Tsipras – que renunciou em 20 de agosto – justificou a escolha dizendo seguir a vontade do povo. Ele alegou ausência de quadros para construir uma alternativa; porém o Syriza não soube mobilizar sua baseBaptiste Dericquebourg
Atenas, 30 de julho de 2015. Sob um calor esmagador, em uma cidade meio desertada por seus habitantes, o comitê central do Syriza teve uma das reuniões mais importantes da sua história. O partido, que obteve 36,34% dos votos e 149 deputados nas eleições legislativas de janeiro, formou o primeiro governo grego determinado a acabar com a austeridade e com a tutela da Troika – Comissão Europeia, FMI e Banco Central Europeu (BCE). Em 13 de julho, contudo, o primeiro-ministro Alexis Tsipras aceitou assinar um terceiro memorando que, em troca de 86 bilhões de euros em empréstimos suplementares para os três próximos anos, que vão permitir uma recapitalização dos bancos do país, exauridos, impõe novas medidas de austeridade e um vasto plano de privatizações.
Ao mesmo tempo deixando claras as reservas que esse novo arranjo inspira, Tsipras e sua comitiva defenderam certos aspectos dele. O ministro da Economia, Giorgos Stathakis, declarou, por exemplo: “Ainda que diversas medidas contidas nesse acordo tenham um efeito recessivo, em nenhum caso podemos compará-lo aos dois primeiros memorandos, que incluíam um ajuste orçamentário de 15% do PIB no período de quatro anos e reduções das aposentadorias e dos salários compreendidas entre 30% e 40%”.1 No entanto, em 15 de julho, na votação de urgência das “medidas preliminares” exigidas pelas instituições antes de qualquer desembolso de uma parte dos 86 bilhões de euros de empréstimo prometidos, 32 dos 149 deputados do Syriza se opuseram a um plano que julgavam contrário ao programa de seu partido; seis se abstiveram e um não participou da votação. O texto só pôde ser aprovado com o apoio de uma parte da oposição. Desde então, o Syriza está à beira da implosão. As duas tendências, uma favorável à assinatura do plano, e a outra, principalmente no seio da Plataforma de Esquerda (PE),2 que a recusa, se acusam pela responsabilidade da ruptura.
AUSÊNCIA DE COMPETÊNCIAS ADMINISTRATIVAS
Na reunião de 30 de julho, Tsipras pediu àqueles que o criticavam que propusessem uma solução alternativa para o acordo que tinha acabado de fechar. Segundo ele, uma saída do euro equivaleria a uma catástrofe, sem necessariamente permitir à Grécia uma mudança política: “Não há solução fora do euro; aplica-se também uma austeridade severa nos países que estão fora da zona do euro”.3 De maneira ainda mais urgente, o vice-primeiro-ministro Yannis Dragasakis estima que, em caso de crise aberta com seus “parceiros” europeus, o partido seria incapaz de prover as necessidades do país em termos de bens de primeira necessidade, em particular petróleo e medicamentos. Panos Kosmas, da PE, replica: “Quem, senão o primeiro-ministro, tinha o dever de dispor de tal solução alternativa? Por que ela não foi elaborada?”. Seria essa toda a diferença entre uma saída do euro completamente sofrida e um “Grexit” em parte controlado, sobre o qual havia refletido, entre outros, o economista e deputado do Syriza, Costas Lapavitsas?4
Para explicar certos obstáculos contra os quais se chocou o governo de esquerda, essa questão da preparação retorna com frequência às discussões com os altos dirigentes do partido e os membros do governo. Depois de seu congresso fundador em julho de 2013, a coalizão de esquerda Syriza se tornou um partido unificado, contando de 30 mil a 35 mil membros,5 que em seguida se organizou em três níveis: local, profissional e temático. Os comitês locais reúnem a base do partido. Cerca de um terço dos inscritos comparece às reuniões mensais para discutir a linha política, prever e organizar ações de solidariedade com os grevistas. O partido também se dotou de organizações que reagrupam seus membros por profissão, o que lhe permitiu se engajar de forma mais eficaz nas lutas setoriais. A elaboração de um programa de governo, enfim, foi confiada a comissões temáticas que recrutavam por cooptação. Não era necessário ser membro do partido para participar. “Depois do movimento dos ‘indignados’, aderi a uma associação pela reforma da Constituição. Foi por isso que me propuseram entrar na comissão sobre esse tema, e eu fiz a minha carteirinha. Assim renovei minha relação com a política, depois de trinta anos de desinteresse”, explica Vassilis Sidias, professor de Religião em Atenas.
Uma constatação retorna com frequência: o partido careceu de competências técnicas que poderiam ter lhe permitido passar dos eixos gerais do seu programa para medidas concretas. Apesar das novas adesões que se seguiram ao sucesso eleitoral de 2012, a chefia do Syriza permanece a mesma desde 2009. Com as conquistas obtidas nos últimos anos, centenas desses dirigentes acumularam novas tarefas, e por vezes era difícil constituir equipes: 76 deputados foram eleitos em junho de 2012, seis parlamentares europeus em maio de 2014, assim como, no mesmo mês, 927 conselheiros municipais e 144 eleitos regionais, depois, enfim, em janeiro passado, 149 deputados… Em seu gabinete do Parlamento, Dimitris Triandafyllou, psicólogo, nos confia: “Voltei da Inglaterra para me tornar adido parlamentar em janeiro. Precisei aprender tudo na hora”. A deputada para quem ele trabalha, Chrisoula Katsavria, deu seus primeiros passos no Parlamento em janeiro.
Também foi preciso formar as equipes governamentais. Claro, como nos lembra Stathis Kouvelakis, membro da PE, “o partido está cheio de jovens que fizeram uma tese, inclusive sobre Economia ou Econometria”. Mas, acrescenta um alto funcionário do Ministério da Economia, que prefere permanecer anônimo: “Uma coisa é ter ideias gerais e conhecimentos; outra coisa é dispor de competências técnicas em nível estatal. É preciso saber fazer funcionar uma equipe, identificar os cargos-chave para os quais devemos nomear pessoas de confiança, saber em que escritório podemos deixar as coisas, que obstáculos jurídicos vão aparecer etc., para conseguir fazer o que queremos. E a experiência adquirida nas administrações locais não ajuda em nada no nível nacional”. Em suma, o partido conta com poucos funcionários administrativos operacionais.
Resultado: constatamos em todos os lugares um enorme atraso nas designações, na tomada de decisões e em suas execuções. Exemplo claro: o da lei sobre as grandes mídias de informação. Depois de anos de não intervenção, ao longo dos quais a oligarquia grega se apropriou da totalidade dos grandes canais de televisão, de rádio e da maior parte da imprensa escrita,6 o ministro Nikos Pappas prometeu impor a adoção de uma lei regulamentando a atribuição de frequências. Em preparação desde março, o projeto só foi apresentado ao Parlamento duas semanas após o referendo que tinha permitido a essas mídias uma nova oportunidade de organizar uma campanha feroz contra o governo.
Esses atrasos também deixaram no lugar o antigo pessoal, com suas práticas antigas. Na polícia, as redes de extrema direita, que não foram desmanteladas, deixam no ar um perigo permanente.7 Na saúde, Panayiotis Vevetis, psicólogo e militante do Syriza na Tessalônica, dá um testemunho da mesma imobilidade: “Esperamos em vão que os administradores dos hospitais sejam substituídos”. Estes últimos tinham a reputação de ser frequentemente corrompidos e de ter acompanhado o desmoronamento do sistema de saúde grego.
Consciente desses problemas, a direção explicou suas escolhas. Segundo ela, os critérios meritocráticos agora devem prevalecer, ainda que os recrutamentos fossem até o momento determinados principalmente pelo pertencimento à família política da maioria no poder. Isso permitiria acabar com as práticas do Partido Socialista e da direita.8 “Esses partidos se isolaram da sociedade e serviam ao funcionamento de uma rede de relações clientelistas”, lembra Tasos Koronakis, secretário-geral do Syriza.9 A mudança dos critérios de recrutamento se integrava bem no ambiente que a equipe dirigente gostaria de estabelecer para as relações entre partido e governo, pois permitia prevenir as agitações que uma mudança muito ampla de substituição do pessoal teria provocado. “Eles queriam evitar dar a impressão de se vingar dos partidos precedentemente no poder”, explica o jornalista Nikos Sverkos. Tsipras e sua comitiva (principalmente Pappas, Dragasakis e Alekos Flabouraris, ministro de Estado para a Coordenação Governamental) estavam, de fato, convencidos de que poderiam chegar a um melhor compromisso com as instituições europeias criando uma relação de confiança com elas e utilizando as divergências entre as instituições e os Estados: o FMI contra a Comissão Europeia, os Estados Unidos contra a Alemanha etc. Para isso, mais valia evitar um aumento das tensões na Grécia e uma agitação na base do partido.
Por vezes, essa moderação teve consequências surpreendentes. Assim, o diretor do Banco da Grécia, Yannis Stournaras, ex-ministro das Finanças do governo de Antonis Samaras, não foi substituído. Mesmo o jornal econômico francês Les Échos se espantou com a brandura de Tsipras para com um homem casado “com uma biologista ligada à opulenta indústria farmacêutica” e que “presidiu no início dos anos 2000 aos destinos do banco Emporiki, cujo fracasso custou mais de 10 bilhões de euros ao banco Crédit Agricole”. Além disso, “como conselheiro do Tesouro grego, [Stournaras] teve um papel importante no processo de adesão da Grécia ao euro, endossando a maquiagem dos números que impediram a Europa de tomar consciência a tempo do estado real de sua economia”.10 Desde a chegada ao poder do Syriza, o diretor do Banco Central não parou de criticar sua estratégia de negociação, em particular ao longo da semana que precedeu o referendo.
O PODER SE DISTANCIA DE SUA BASE
Nesse caso, no entanto, candidatos à substituição não faltavam: a organização do partido para o funcionalismo do setor bancário conta “com mais de quinhentos membros, entre os quais diretores e gerentes de estabelecimentos bancários, com uma experiência técnica”, indica um dos membros protegido pelo anonimato. “Tínhamos elaborado um plano de nacionalização dos bancos e um para os empréstimos não reembolsáveis. Depois das eleições esperávamos medidas, ainda por cima porque os capitais já tinham começado a fugir. Mas nada foi feito, e Dragasakis não convocou nenhum de nós.” Segundo Tsipras, foram a asfixia financeira provocada pelo BCE e a iminência de um desmoronamento do sistema bancário que levaram à assinatura do acordo de 13 de julho.
Desde janeiro, os moradores do bairro popular da Vila Olímpica não viram nenhum representante do partido vir lhes informar ou solicitar algo. Alguns reconhecem que a formação de um governo do Syriza lhes deu “uma alegria imensa”, mas estimam que seus integrantes permanecerão tão longe do povo quanto no passado e não compreendem a assinatura do último acordo. Contrariamente às expectativas da PE, no entanto, eles não se mobilizaram para se opor a isso. Os cartazes pelo “não” no referendo, ainda visíveis nas paredes, dão testemunho de um interesse muito variável segundo os bairros de Atenas. “Foram principalmente os comitês onde nós [a PE] éramos majoritários que fizeram a campanha”, garante Kouvelakis.
De acordo com essa tendência, a equipe de Tsipras se autonomizou muito cedo do partido e recusou-se a preparar a população para uma eventual saída do euro. Devemos nos espantar? “Como afirma o slogan ‘Nenhum sacrifício pelo euro’, a prioridade absoluta para o Syriza é acabar com a catástrofe humanitária e satisfazer as necessidades da sociedade”, podemos ler nas declarações do congresso fundador do partido. Contudo, diversas vezes, antes mesmo das eleições de janeiro, Tsipras e Dragasakis preveniram que nunca tirariam a Grécia da zona do euro. Segundo os opositores do acordo de 13 de julho, a ideia de que “a sociedade grega não está pronta” seria apenas um pretexto: uma opção só existe realmente quando é apresentada, argumentavam. De qualquer forma, ainda hoje, as pesquisas garantem que 80% dos gregos continuam a favor da moeda única, essencialmente porque temem um desmoronamento do sistema bancário. Dragasakis admitiu: Berlim estava mais bem preparada que Atenas para um “Grexit”.11
Durante uma reunião organizada em 27 de julho passado pelo site da PE, Iskra.gr, a respeito do slogan “O ‘não’ não foi derrotado”, a proposta de um retorno à moeda nacional formulada por Panagiotis Lafazanis, ministro da Reestruturação da Produção, da Energia e do Meio Ambiente no primeiro governo Tsipras, foi acolhida por uma salva de palmas. No entanto, Tsipras repetia que o “não” de 5 de julho não significava um “sim” à dracma.12 Agora, esse debate atravessa o conjunto da sociedade. Será sem dúvida uma das questões centrais do congresso excepcional que acontecerá até o final de 2015: que armas a esquerda grega está pronta a se dar para resistir à chantagem das instituições europeias?
*Baptiste Dericquebourg é professor de Letras Clássicas em Atenas.