Intermitentes e imprevidentes
O governo terceirizado de Temer não conseguir finalizar a devastação. Foi um intermitente “bem sucedido”, mas inconcluso. Deixou para seu imprevidente sucessor
Neste país muito macunaímico, tragédias, farsas e comédias frequentemente se mesclam e se confundem, convertendo-se assim em mecanismos vitais de obliteração de nossas mazelas. E assim la nave va…
Faz muito que aprendemos que, “se tal coisa não for feita”, o país soçobra. Para não voltarmos muito no tempo e na história, Collor dizia que, com sua eleição, tudo iria mudar e teríamos “o fim dos marajás”, proposição que ludibriava a população trabalhadora, visto que sua vitória eleitoral foi uma impostura para ampliar o vilipêndio.
Depois do curto interregno Itamar, FHC veio para colocar em prática o neoliberalismo com charme. Privatizou a “joia” da Vale (que se converteu em um cemitério a céu aberto) e saiu pela porta dos fundos ao final de seu segundo mandato. Lula apregoou o sonho da conciliação total e imaginou-se como um benefactor pairando ileso sobre um solo social totalmente fraturado. Saiu com a popularidade nas nuvens. Dilma, com a ampliação da crise econômica a partir de 2014, somada à avalanche de denúncias de corrupção nos governos do PT, viu desmoronar sua base política e sofreu impeachment por um “crime” praticado por quase todos os seus antecessores recentes.
Temer veio, então, para exercitar a devastação social. Talhado pela vida parlamentar, capaz como poucos de operar nas sombras do pântano, reorganizou a base conservadora no Congresso e conseguiu, em pouco mais de dois anos, iniciar a implosão da Previdência, da educação e da saúde publicas, através da PEC da demolição. E foi além…
Avançou na terceirização total, vilipêndio que arrebentou com o que restava do trabalho como valor, reduzindo-o a simples labor. Aprovou a contrarreforma trabalhista, afetando indelevelmente a espinha dorsal do sistema de proteção do trabalho no Brasil, que fora resultado de uma luta secular do operariado. Dentre tantos pontos nefastos, a “reforma trabalhista” do governo “terceirizado” de Temer legalizou o trabalho intermitente. E, nos estertores de seu governo, estendeu a terceirização ao setor público. Desse modo, flexibilização, terceirização, desregulamentação e intermitência tornaram-se o novo elixir da vida empresarial “moderna”.
Estava desenhado o novo quadro social. Tudo isso, diziam, era para criar muitos empregos e o país voltar a crescer. Todos os representantes da ordem e suas mídias repetiam, como papagaios, que aprovada a reforma trabalhista, os empregos voltariam a crescer. E hoje, o que de fato temos é o exato inverso: enormes contingentes de trabalhadores e trabalhadoras desempregados (13 milhões sem nenhum trabalho, mais 5 milhões no horroroso “desemprego por desalento”), além de um contingente imenso na informalidade, todos rodopiando em um “mercado de trabalho” de tipo indiano, no qual, repetimos, a intermitência é o novo vilipêndio.
E o que significa o trabalho intermitente, aprovado e legalizado pela contrarreforma de Temer? Que muitos e muitas ficam em disponibilidade total para o trabalho (e assim “desaparecem” das estatísticas do desemprego), mas não encontram o que fazer, senão esporadicamente. E se não têm empregos estáveis, de fato não podem contribuir para a Previdência. E se não contribuem para a Previdência, não podem se aposentar. Uma vez mais, o círculo perverso da tragédia com cara de comédia. Mas o governo terceirizado de Temer não conseguir finalizar a devastação. Foi um intermitente “bem sucedido”, mas inconcluso. Deixou para seu sucessor.
A reforma de Bolsonaro/Guedes, este último com larga experiência e conhecimento do regime de imprevidência do Chile ditatorial de Pinochet, quer dar a tacada final. Num solo onde milhões de trabalhadores e trabalhadoras se encontram cada vez mais à margem da regulação e dos direitos sociais, vivenciando trabalhos cada vez mais escassos e rarefeitos, não fica difícil perceber o futuro que atingirá os jovens de hoje (que, aliás, têm os maiores índices de desemprego).
Como sabemos, se a proposta da “Nova Previdência” de Bolsonaro for aprovada será preciso trabalhar 40 anos para se aposentar integralmente, com a idade mínima de 65 para os homens e 62 para as mulheres. Teremos, numa só tacada, a desconsideração da dupla jornada de trabalho das mulheres e a penalização ainda maior dos trabalhadores rurais. E teremos também excluídos da Previdência praticamente todos daqueles que hoje vivenciam a condição nefasta do trabalho intermitente. Lhes restará optar pela capitalização, isto é, aplicar os recursos (que não lhe permitem sequer sobreviver com um mínimo de dignidade) na previdência privada. Seria cômico, se não fosse trágico.
Aqui é importante recordar o modelo que inspira a reforma de Bolsonaro/Guedes: trata-se do que no Chile se denomina como AFP (Administradoras dos Fundos da Pensão). Somente os trabalhadores e as trabalhadoras contribuem. O Estado não contribui e o empresariado também não. Estranho, não? Trata-se de uma espécie de poupança que cada trabalhador terá que fazer, se quiser tentar viver depois da aposentadoria.
O resultado chileno é catastrófico: a assistência capitalizada (pois isso não é previdência) se resume, na média dos últimos anos, a um terço do que recebiam os assalariados quando trabalhavam. A grande maioria recebe menos do que o salário mínimo vigente no Chile, e as mulheres são ainda mais penalizadas. Não é por outro motivo que a população do país andino repudia o sistema de capitalização da ditadura de Pinochet, tão admirado no Brasil pelo governo-de-tipo-lumpen que aqui gorjeia.
Assim, a perversidade, então, é de monta. E as indagações continuam sem resposta, pelos proponentes da “Nova Previdência”: se o labor se resume a trabalhar poucas horas por semana, com salários irrisórios e inconstantes, como os pobres pagarão a previdência, se sequer têm recursos para sobreviver? Como serão contabilizadas as horas dos trabalhados intermitentes, de modo a lhes permitir o usufruto da aposentadoria integral? Se a “capitalização” para esses segmentos sociais é um embuste, eles encontrarão outra saída que não seja a sua exclusão da previdência pública?
A reforma de Bolsonaro-Guedes tem a resposta: restará aos mais pobres uma esmola de R$ 400 ao mês (ou indecorosidade similar), ao completarem 60 anos, e um salário mínimo depois dos 70. Difícil imaginar maior insensibilidade frente aos trabalhadores em geral e às mulheres em particular.
A proposta que quer “acabar com os privilégios”, uma vez desconstruído o seu invólucro místico, evidencia seu real significado: os mais ricos terão previdência privada e “capitalizada” (para regozijo catártico dos bancos, que ganharão fortunas além do que já recebem) e os assalariados pobres serão excluídos da previdência pública, restando-lhes tão somente um assistencialismo acintoso, o dos R$ 400 para os sexagenários.
Enfeixa-se a tragicomédia. E, como a devastação é ilimitada, só faltará aprovar a carteira de trabalho “verde e amarela” (ou será cinzenta?), na qual “o contrato individual prevalecerá sobre a CLT” para os jovens. Eis a que se resume a proposta de um governo de intermitentes e imprevidentes.
*Ricardo Antunes é professor titular de Sociologia no IFCH/Unicamp e autor, entre outros, de O privilégio da servidão (Boitempo) e Os sentidos do trabalho (Boitempo, publicado também na Itália, Holanda/Inglaterra, Portugal, Estados Unidos, Índia e Argentina).